Estamos no quarto dia do Apocalipse que os especialistas em escatologia denominaram de greve dos motoristas dos transportes de matérias perigosas. Um Apocalipse daqueles pequeninos e fofinhos, que destroem o mundo, mas só o quanto baste, porque estamos de férias e não queremos ser incomodados enquanto molhamos as fungosas unhas dos pés nas águas salgadas do Atlântico.
Dir-me-ão que as perturbações foram mitigadas pela declaração de estado de crise energética, à qual se sucedeu a definição de serviços mínimos, seguida da requisição civil, seguida da intervenção do exército e das polícias, seguida de mais qualquer coisa publicitada, com pompa, circunstância e algumas ameaças de ordem penal, pelo Executivo de António Costa. Talvez. No entanto, é evidente que estamos a ser confrontados, de novo, com uma dissonância arrasadora entre os efeitos sociais e económicos antecipados pelos órgãos de comunicação social dominantes e a realidade quotidiana.
Como já devem haver notado, brinco um pouco com a situação, porquanto não sei o que pensar sobre todos os factos que enleiam esta greve do azeite que põe a funcionar popós (é a escassez de combustíveis que nos preocupa). No meio de tanto barulho causado por sindicatos, empregadores e agentes políticos, fico confuso e não sei em quem acreditar; porém, manifesto enjoo e desagrado por ouvir as atoardas alarmistas do incendiário André Matias de Almeida, o canto desafinado do pardaleco espertalhão e os revezantes porta-vozes do Governo de Portugal que, com um cinismo jocoso, garantem não compreender como as suas decisões abalaram, agressivamente, os alicerces de um direito fundamental.
Não serei portador de novidades se afirmar, perante os leitores, que os direitos não são absolutos, o que inclui o direito à greve. Ora, a confirmar tal asserção, podemos olhar para a legislação que rege o assunto e perceber que esta estabelece formas de amenizar as propriedades danosas de um realidade jurídica que, por natureza, é lesiva dos interesses de terceiros. Assim, explica-se haver profissões impedidas do seu exercício (militares e forças de segurança pública, por exemplo), bem como se entende a viabilidade de, justificando-se, se concretizarem serviços mínimos e de se recorrer à requisição civil se aqueles forem relevantemente violados (apesar de ser uma tese frágil e circunscrita a casos de excepção em que, antecipadamente, se sabe que os serviços mínimos serão total ou parcialmente ignorados, há quem defenda a admissibilidade da requisição civil preventiva).
Disto tudo, para mim, emerge um conclusão meridianamente clara: se a lei autoriza uma específica categoria profissional a dar uso ao direito à greve, pois então, não será legítimo que, na prática, se transformem os serviços mínimos numa efectiva a proibição desse uso. Os serviços mínimos são limitativos, não haja tartamudas hesitações, sendo que o vigor das restrições impostas varia consoante as necessidades, o que não é sinónimo de serem fixáveis em 100% para certos ofícios e funções (sim, eu sei que minha posição não goza de unanimidade nos recintos do Direito).
Alguns leitores, muito provavelmente, cogitarão: “estes serviços mínimos foram fixados entre 50%, 70% e 100%, pelo que a sua crítica exsuda falta de fundamento.” Discordo! E discordo, visto que este tipo de contenção do direito à greve não se pode materializar numa integral supressão do exercício desse direito ao preciso grupo de trabalhadores que, no âmbito das actividades sujeitas a serviços mínimos, tem de continuar a laborar a 100%. Desde que subordinada ao respeito pelo princípio da proporcionalidade, por exemplo, considero de maior conformidade com o direito à greve a fixação em 90% de serviços mínimos em todas as sub-áreas do transporte de mercadorias perigosas.
Podemos debater se, a par das acima enunciadas, o transporte de mercadorias perigosas abrange um conjunto de profissões incompatíveis com o “fazer-greve”. Todavia, os argumentos que sustentam um corolário de incompatibilidade compelem a outras reflexões que dificilmente agradarão aos maiores proponentes do fim do direito à greve neste campo de notório interesse público.
Teremos, por conseguinte, de escrutinar se este subsector deve estar, ou não, nas mãos de privados e – assentindo-se a essa hipótese – se não se exige uma superior ingerência do Estado na condução dos destinos das empresas de transporte de mercadorias perigosas, uma vez que se está a optar por eliminar direitos dos trabalhadores.
A discussão pública coloca sempre os ónus e encargos na força laboral, quando a economia é feita dos factores capital e trabalho. Porque é que, em similares contextos, as actuações opressivas raramente incidem sobre as empresas?
E é aqui que o agir musculado, eleitoralista e imprudente do Governo, sem medir as consequências de actos e palavras, feriu o direito à greve de um modo inquietante. Ninguém nega que esta greve, pela conjugação da sua indeterminabilidade (este é o elemento nevrálgico) com o impacto da insuficiência de combustíveis numa sociedade como a nossa, reclama por serviços mínimos robustos e por parcas complacências no ordenar da requisição civil.
No entanto, esta energia coerciva e sectária do Executivo de António Costa, em constante anúncio público das suas façanhas caceteiras, nunca se olvidando de relembrar que existem sanções de índole criminal por não se adimplir com a requisição civil, chamando o exército e as polícias, criou um ambiente extremamente propício para o levantar de pescoço daqueles que, surgindo a oportunidade, logo clamam pelo profundo câmbio da legislação concernente ao direito à greve, afiançando que esta não se acomoda ao século XIX. De idêntica maneira, ajudou propagar a noção de que este direito fundamental é pernicioso e dispensável! E isso é um erro tremendo!
Mexer no direito à greve, nem que seja pelo respeito histórico-emancipatório que lhe devemos, jamais será conciliável com precipitações e objectivos sufragistas. Por isto, volto a aludir ao facto de que estamos como o touro, ou seja, focados em marrar em direcção ao vermelho, quando este tema merece um amplo diagnóstico que outrossim envolva os empregadores do sector, dado que o que ampara as condutas incisivas do poder político nas lutas laborais dos motoristas de transportes de mercadorias perigosas também escora quejanda intromissão na esfera empresarial.
Vamos lá procurar um equilíbrio!
João Salvador Fernandes