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Era uma vez… Um bebé judeu que escapou a Auschwitz, uma história de dor e encanto

A Mais Preciosa Mercadoria, por Jean-Claude Grumberg, Publicações D. Quixote, 2020, pode ser uma fábula como pode ser um misto de narrativa juvenil ou relato memorial, tudo bate certo e o seu contrário, a verdade é que pode ser lida por gente de muitas idades, basta o leitor saber que houve genocídio e que uma criança destinada a um forno crematório escapou porque um pai desesperado a atirou para a floresta, depois de ver uma lenhadora, ali bem perto. Diz-se que pode ser uma fábula porque tudo começa assim: “Era uma vez, numa grande floresta, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador”. Floresta onde reinava a fome e o frio, no inverno, e um calor sufocante no verão. Penúria porque se estava na II Guerra Mundial, o lenhador fora requisitado para serviços de interesse público, a lenhadora procurava catar na mata coisas para comer, não tinham filhos para alimentar mas também não tinham filhos para amar. Nunca saberemos em que país, exatamente, se situa esta floresta, admitamos que é a Polónia. Por ali passa um comboio, era uma via única, supunha-se que era um comboio de mercadorias. Há um comboio que partiu de Drancy, França, levou o pai de Jean-Claude Grumberg, terá sido a inspiração para esta história de uma horrível viagem de comboio em que vai um casal com dois filhos gémeos. Viajam nas condições mais desumanas que imaginar se pode. Apercebendo-se, em definitivo, que aquela viagem não tem retorno, aquele pai embrulha a menina num xaile de lã dos Pirenéus, o comboio abrandou, a lenhadora, ajoelhada na neve, corre, pensa que é um presente. “E então surge, oh maravilha, o objeto, o objeto que ela há tanto tempo pedia nas suas orações, o objeto dos seus sonhos. Mas eis que, mal o embrulho foi aberto, o conteúdo, em vez de lhe sorrir e de lhe estender os braços, como fazem os bebés nas imagens piedosas, agita-se, berra, com os punhos cerrados e elevados bem alto, no seu desejo de viver, torturado pela fome”.

A lenhadora é uma mãe sem leite, ela procura alimento, engana-lhe a fome, a criança acalma-se nos braços da nova mãe. À noite, chega o lenhador, pede explicações, ela diz que foi uma oferta dos deuses do comboio, o lenhador barafusta, sabe muito bem o destino das mercadorias que vão para os crematórios de Auschwitz, aquela criança é um sem-coração, eles podem correr riscos de vida, se forem descobertos com aquela criança que vem de um povo que matou Deus e são ladrões. Os lenhadores discutem, a nova mãe está em fúria, vence, a criança fica com eles. Fábula ou narrativa trágica, ficamos a saber que aquele comboio que partiu de França chega a 5 de março de 1943 ao coração do inferno, mãe e criança foram rapidamente para o forno crematório, vai começar o calvário daquele homem que parece que perdeu tudo exceto a esperança de que a filha se salvou.

Como numa história de encantar, a lenhadora procura um homem de maus fígados, precisa de leite para o bebé e ele tem uma cabra, ela propõe um contrato, todos os dias que os deuses fizerem, há de lhe trazer um molho de lenha em troca de dois golos de leite, contrato aceite. “E foi assim que aquela pobre e pequena mercadoria, miserável e tão preciosa, resistiu e sobreviveu graças àquele homem da floresta e à sua cabra”. Em Auschwitz, o pai da mais preciosa mercadoria sobrevive a rapar e rapar milhares de crânios, a aproveitar tudo aquilo que do corpo humano pode dar lucro por ter utilidade, desde o ouro à gordura.

Como nas fábulas, o lenhador ganha afeto à menina, passaram três a partilhar um grande feixe de lenha de felicidade. Mas o pobre lenhador, num excesso de álcool, irá dizer que há uma criança lá em casa, vislumbra-se uma tragédia, virá gente com espingardas, lenhador e criança fogem, vão parar à casa daquele homem de maus fígados. Os Soviéticos chegam a Auschwitz, e um jovem com uma estrela vermelha cujos olhos quase fora das órbitas testemunhavam o horror que acabara de descobrir, vê o mundo mudar, ele está a ouvir um pássaro a cantar a plenos pulmões o hino do regresso à vida, o mesmo sente aquele pai que perdera tudo menos a esperança. “Como arranjou ele forças para se levantar, para andar, e andar, e andar mais? Seria o cântico de rouxinol suficiente para fazer nascer nele a ideia de que a sua filha, aquela sua filha tão pequenina, adorada e em paradeiro desconhecido, talvez também tivesse sobrevivido?”. Esta fábula, ou história de encantar ou desencantar, passa por um breve encontro que não pode ter consequências, que não se podia mudar o destino, aquele sobrevivente de Auschwitz deu um grito de alegria, de dor, de vitória, mas que não lhe saiu da boca, ao ver aquela menina que lhe lembrou a sua filha atirada de um comboio, a caminho de Auschwitz.

É tempo do autor perguntar ao leitor se este quer saber se a história é verdadeira. Não, de maneira nenhuma. Porque não houve comboios de mercadorias nem campos de concentração nem campos de extermínio. Nem verdadeiros são a pobre lenhadora e o seu pobre lenhador, assim como os sem-coração. Nem a libertação das cidades e das aldeias, que afinal não existiam. Nem a dor dos pais e das mães à procura dos filhos desaparecidos.

E aqui sim, entramos no domínio eletivo da fábula, a única coisa verdadeiramente real da história, foi que uma menina, que não existia, foi atirada pela lucarna de um comboio de mercadorias, foi atirada para a neve, aos pés de uma pobre lenhadora sem filhos para amar, e que essa pobre lenhadora, que não existia, a apanhou, alimentou, cuidou e amou mais do que a qualquer pessoa ou coisa. Mais do que à própria vida.

Era uma vez uma história em que o amor triunfou.

Mário Beja Santos

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