O Mundo Secreto, por Christopher Andrew, Publicações D. Quixote, 2019, é uma obra portentosa de um destacado investigador que teima, e com grande sucesso, inserir o estudo dos Serviços Secretos como vertente indispensável do entendimento histórico. Obra em dois volumes, vamos agora proceder a uma sinopse da história da espionagem da I Guerra Mundial à atualidade, mas há que chamar a atenção ao alerta do autor quando nos diz que a espionagem do século XXI sofre uma amnésia histórica de longo-prazo. Faltou sempre literatura séria ao estudo das informações e do modo de as obter, mesmo pelos canais diplomáticos, foi sempre a literatura de entretenimento que prevaleceu, com picos literários de altíssima qualidade, caso das obras de John le Carré. O autor lembra o papel das informações nas ameaças de invasões da Grã-Bretanha, faz uma súmula neste segundo volume do que se conhece e pode identificar como Serviços de Inteligência, e o autor adverte-nos que o intento do seu trabalho é recuperar parte da história perdida da espionagem dos últimos três milénios, para mostrar como ela altera a historiografia atual.
Enceta a sua narrativa com os segredos de guerra que preludiaram a I Guerra Mundial, recordando aquilo a que muitas poucas vezes tem o contexto merecido: um salto tecnológico pode alterar radicalmente um sistema de segurança, nas suas vertentes defensiva e ofensiva. Foi o caso do novo navio de guerra Dreadnought, em 1906, que tornou obsoleta uma boa parte da Marinha britânica e lançou o pânico de que os alemães fossem concorrer à construção de couraçados semelhantes ao novo vaso de guerra. Nascia uma mitologia em torno da suposta ameaça alemã, deu lucros a ficcionistas e contribuiu para a psicose que uma guerra estava próxima. O historiador analisa a morfologia de diferentes Serviços Secretos, do funcionamento dos códigos diplomáticos, entre o império russo e os ascendentes EUA. Logo um aspeto curioso do início do conflito mundial, antes e durante a Batalha de Tannenberg, na Prússia Oriental, ganha pelos Alemães aos Russos, os códigos militares destes estavam numa confusão total. O arquiteto da vitória alemã escreveu depois da guerra que uma das razões do sucesso foi conhecerem-se todos os planos do inimigo, os Russos enviavam todas as suas comunicações por rádio não codificadas. “Tendo descoberto as posições dos dois exércitos russos na Prússia Oriental através das escutas das suas comunicações de rádio, os Alemães cercaram e subjugaram cada um deles”. Na Frente Ocidental foi tudo muito diferente, os Serviços de Inteligência estavam muito mais adestrados, começou-se a fazer reconhecimento aéreo. A Alemanha fracassou totalmente na decifração de quaisquer comunicações diplomáticas britânicas, francesas ou russas. Christopher Andrew dá-nos relatos magistrais, a sua narrativa é um puro deleite, o leitor sente-se absorvido e inserido nos meandros deste mundo secreto onde uma importante operação de espionagem conduzida pelos Alemães levou Lenine até à Rússia e passados meses o governo bolchevique submetia-se a um tratado de paz, um dos mais humilhantes de todos os tempos, mas mesmo deslocando os exércitos da Frente Oriental para a Frente Ocidental, os Alemães tinham perdido a iniciativa, haviam conflitos internos gravíssimos, lavrava o descontentamento com a penúria e a alta do custo de vida e iam chegar em breve milhões de militares norte-americanos, o Kaiser capitulou, o mapa da Europa mudava. Entre as guerras mundiais os Serviços Secretos ganharam novo formato, Estaline dava mais relevo ao forjado inimigo interno e ao seu ódio a Trotsky, é bem conhecida a sua insensibilidade às informações que lhe chegavam de fontes seguras de que Hitler preparava uma invasão da URSS, nos primeiros meses foi devastadora para os Soviéticos, Estaline parecia paralisado perante o ímpeto e o gigantismo da ofensiva alemã. Depois corrigiu, a Batalha de Estalinegrado, momento de viragem do fluxo da guerra, já contou com os Serviços de Inteligência a funcionar. O autor descreve os mecanismos da espionagem durante esta II Guerra Mundial, incluindo na guerra travada entre os Estados Unidos e o Japão.
Estamos chegados à Guerra Fria, à reformulação dos Serviços de Inteligência, à nova tecnologia de comunicações e chama-se a atenção para disparidades de comportamento que têm peso na decisão histórica. Um exemplo: “No que respeita a recolha de informações políticas, o Bloco Soviético tinha uma vantagem inata sobre o Ocidente. Os sistemas políticos autoritários e secretistas de partido único são, pela sua natureza, alvos mais difíceis do que as democracias. Da mesma forma, no entanto, o Bloco Soviético tinha uma desvantagem inata na avaliação de informações. Em todos os Estados de partido único, a análise de informações políticas (ao contrário da maioria das informações científicas e tecnológicas) é necessariamente distorcida pelas exigências insistentes do politicamente correto. Deste modo, funciona como um mecanismo de reforço, e não de correção, das conceções erradas do regime sobre o mundo exterior”. Assistimos à evolução por toda a Guerra Fria, à dissolução do comunismo soviético, ao sucesso que marcou a identificação do armamento termonuclear num período delicadíssimo em que países-satélites podiam ter sido alvo de operações terroristas para capturar uma ou mais armas mortíferas. Faz-se uma descrição primorosa de espiões de relevo, de ambos os lados, Christopher Andrew colaborou com Mitrokhin que fez passar para o Ocidente toneladas de documentos da maior importância. Segue-se o “terror sagrado”, a ofensiva do fundamentalismo islâmico radical, havia muitas informações sobre o funcionamento destas redes, mas o assalto às Torres Gémeas foi completamente inesperado, os EUA acreditavam piamente na sua inexpugnabilidade. Em jeito de conclusão, o autor lembra-nos que os Serviços de Informação no estrangeiro têm demonstrado ser mais fundamentais em tempos de guerra e de grandes crises internacionais, quando as fontes abertas revelam muito menos do que o habitual. “Os Serviços de Informações encurtaram a II Guerra Mundial e contribuíram para evitar que a crise dos mísseis de Cuba resvalasse para uma III Guerra Mundial. Depois da crise dos mísseis, as informações disponíveis para ambos os blocos sobre a extensão e a implantação no terreno da força de ataque nuclear dos seus adversários tornaram-se um elemento essencial para a estabilização da Guerra Fria. Se os Serviços de Informação dos EUA e do Reino Unido tivessem estado tão bem informados sobre as armas de destruição em massa de Saddam como tinham estado sobre as da União Soviética, poderia não ter havido guerra no Iraque em 2003. Mas por muito bons que sejam os analistas de informações, haverá sempre surpresas”. E termina: “Quanto mais se descobrir sobre a história de longo-prazo da espionagem, mais difícil será, tanto para os responsáveis políticos como para os profissionais, ignorarem a experiência passada”.
Leitura imperdível.
Mário Beja Santos