Tornou-se um lugar comum dizermos que a pandemia deixou a vida de milhões de pessoas suspensa, e que o vírus obrigou a humanidade a fechar a economia, a fim de salvar vidas e de evitar o colapso dos sistemas nacionais de saúde. As repercussões deste confinamento obrigatório não são as mesmas para todos os cidadãos, apesar das medidas compensatórias de apoio aos trabalhadores, às famílias e às empresas.
Os profissionais da área da cultura, das artes, das industrias criativas e do entretenimento foram os primeiros a fechar e serão os últimos a poder iniciar a sua atividade. Falamos de milhares de trabalhadores que, pela natureza intermitente das suas práticas profissionais, não têm garantida uma robusta rede de proteção. Muitos deles estão verdadeiramente na pobreza e, para não passar fome, alguns recorrem mesmo a doações de alimentos. Alguns deles passaram bruscamente de uma situação de confortável autonomia financeira para uma situação de enorme incerteza, com grandes dificuldades em cumprir as suas responsabilidades financeiras para bens essenciais como habitação, água, eletricidade, entre outros. São atores e atrizes, técnicos de som, de luz, de artes cénicas, cantores, instrumentistas, encenadores, bailarinos, produtores e programadores culturais, entre outros.
Muitos deles haviam sido convidados a apresentar propostas de projetos de capacitação para a inclusão social, no âmbito da medida 9.1, do programa “Cultura para todos”, quando se viram impedidos de trabalhar e de contribuir para um território mais capacitado, mais inclusivo e menos desigual, uma vez que a proteção da saúde e da vida é a prioridade. O programa “Cultura para todos” é uma ferramenta de combate à exclusão social e tem como destinatários as minorias, os migrantes, os desempregados, os deficientes, os doentes mentais, as crianças e jovens provenientes de famílias desestruturadas, visando a sua inclusão e evitando a sua estigmatização.
Quando retomarmos a normalidade possível, este grupo de destinatários será previsivelmente maior, por se prever um enorme aumento de desempregados, por serem expectáveis as consequências desta crise sanitária na saúde mental de muitos até aqui sem problemas, e por se esperarem enormes dificuldades nas famílias mais vulneráveis.
Apesar de, na pirâmide das necessidades de Abraham Maslow, estarem em primeiro lugar as necessidades básicas, nomeadamente satisfação da fome e de abrigo, o ser humano distingue-se dos demais animais pelas necessidades superiores relacionadas com aspetos sociais e pessoais relacionadas com os conhecimentos, emoções e inter-relações. E nesta medida a cultura e a arte são essenciais para a capacitação e inclusão dos cidadãos.
A cultura e a arte têm o poder de desenvolver e potenciar a capacidade de nos relacionarmos com os outros e com o mundo. A cultura e a arte têm um enorme potencial de mediação entre o indivíduo e o meio que o rodeia. A cultura e a arte são uma ferramenta que potencia na humanidade atitudes de contemplação e de reflexão, promotoras da compreensão do mundo.
A cultura e a arte são, muitas vezes, um meio para espoletar a atividade de pensar, e, como disse Hannah Arendt, de nos dar “capacidades para prevenir catástrofes nos raros momentos, na hora da verdade”. Na contemplação e no discernimento entre o bem e mal e entre o belo e o horrendo, a cultura tem o poder de nos salvar dos horrores que, em momentos sombrios da história, as sociedades de massas, acríticas e motivadas pelo medo e pelas emoções primárias, são capazes de perpetrar, como nos tem mostrado a história.
Num momento em que a incerteza e a falta de perspetivas profissionais se abatem sobre os profissionais da cultura, das artes e do espetáculo, sabemos que o seu papel é essencial para que as nossas comunidades reflitam sobre este momento sombrio na história do último século. Sabemos também que, mais do que nunca, será essencial capacitar os mais vulneráveis para as dificuldades e desafios destes novos tempos.
O recrudescimento do medo e das reações primárias, o aumento das dificuldades sociais e o risco de uma sociedade crescente de excluídos e, não menos importante, a oportunidade de capacitação dos territórios são de um enorme desafio para o desenvolvimento de programas territoriais de capacitação e inclusão. Mais do que nunca, o programa Cultura para Todos pode fazer das fraquezas forças.
Ainda que seja necessário reajustar o programa Cultura para Todos a novos timings e a medidas preventivas redobradas, este pode – e deve ser – uma oportunidade de apoiar os territórios, os mais vulneráveis, os profissionais da área cultural e a capacidade de todos nós, enquanto coletivo, de pensarmos na cultura enquanto oportunidade de compreensão das nossas circunstâncias e de capacitação para nos fortalecermos enquanto comunidade e território.

Elvira Tristão
Vereadora com o pelouro da Cultura na Câmara Municipal do Cartaxo