Mario Vargas Llosa reaparece com sete ensaios biográficos de pensadores que ele dá como determinantes na sua história intelectual e política – O Apelo da Tribo, por Mario Vargas Llosa, Quetzal Editores, 2019. Não é propriamente uma obra de ensaística, vamos encontrar sempre uma prosa a que ele nos acostumou, possuidora de uma pirotecnia muito própria, onde o que se enuncia é taxativo, eloquente, apaixonado. Esses sete pensadores com quem ele vai dialogar dão pelo nome de Adam Smith, Ortega Y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel. Mas o génio do romancista está sempre por detrás, o que torna a leitura destes ensaios sempre cintilante, um exemplo:
“Para estar dotado de poder de persuasão, todo o romance deve impor-se à consciência do leitor como uma ordem convincente, um mundo organizado e inteligível cujas partes se interligam num sistema harmónico. Aquilo a que chamamos o génio de Cervantes, de Tolstói, de Conrad, de Proust, de Faulkner, não tem só a ver com o vigor das suas personagens, com a prosa subtil ou labiríntica, com a poderosa imaginação, mas também, de forma destacável, com a coerência arquitetónica dos seus mundos fictícios, da solidez com que os apresentam, de como estes estão bem entretecidos. Esta ordem rigorosa e inteligente, onde nada é gratuito nem incompreensível, onde a vida flui por uma via lógica e inevitável, onde todas as manifestações do humano são acessíveis, seduz-nos porque nos tranquiliza, devolvendo-nos a confiança a que o ser humano não se resigna a renunciar: saber o que somos, onde estamos e, sobretudo, para onde vamos”.
Em jeito introdutório, Vargas Llosa desvela a sua juventude fascinada pelo marxismo e pelos movimentos revolucionários latino-americanos e como a doutrina liberal se foi imiscuindo na sua vida, aproveitando para ser pedagógico, explicando que há liberais que tomam atitudes por vezes mais reacionárias que os conservadores, e exemplifica com Reagan e Tatcher que em questões sociais e morais recusavam o casamento homossexual, o aborto, a legalização das drogas ou a eutanásia. O grande escritor aí opôs-se-lhes, mas considera que estes dois desbloqueadores de sistema o ajudaram a converter-se num liberal, tal como ele se posiciona: “Nós, os liberais, não somos anarquistas e não queremos suprimir o Estado. Pelo contrário, queremos um Estado forte e eficaz, o que não significa um Estado grande, empenhado em fazer coisas que a sociedade civil pode fazer melhor que ele num regime de livre competitividade. O Estado deve garantir a liberdade, a ordem pública, o respeito pela lei, a igualdade de oportunidades”. É durante os comentários aos sete pensadores de quem ele se sente altamente credor que o Prémio Nobel da Literatura se revela altamente incómodo com as posturas das direitas, mesmo europeias, ele não esconde os perigos da submissão intelectual, a demagogia, o chauvinismo e o nacionalismo, recorda a todo o instante que empreender e investir se faz com ética, tal como Max Weber consagrou em obra clássica. Ele é a favor de um liberalismo que ofereça a todos os jovens um sistema educativo de alto nível, opõe-se aos conúbios entre os políticos e os grupos económicos, é apologista da regulação no mercado. Reserva a Adam Smith um ensaio muito impressivo, conquanto nem sempre aprofunde alguns aspetos medulares do seu pensamento, dizendo que os beneficiários da sua teoria são os consumidores, é bonito dizer, mas é socialmente impraticável, não vivemos num mundo organizado em tubos digestivos ambulantes, o fator da coesão pesa nas esquerdas, no centro e nas direitas. Exalta Ortega y Gasset por na sua obra A Rebelião das Massas defender uma Europa unida, a ultranação, como ele proclamou. “Só nesta união é que Ortega vê uma possibilidade de salvamento para um continente que perdeu a liderança histórica de que gozava no passado”. Convida a estudar Ortega, sobretudo àqueles que se empenham em reduzir o liberalismo a uma receita económica de mercados livres, despesas públicas controladas e privatização das empresas e esquecem a coexistência com o outro, pois a liberdade é motor do progresso material, da ciência, das artes e das letras, a liberdade económica não é a única peça fundamental da doutrina liberal. Discursará com o mesmo arrebatamento falando de Hayek e Popper. Distingue claramente que um liberal não é um conservador e cita Hayek: “Um conservador não oferece alternativa à direção em que avança o mundo, enquanto para um liberal é essencial para onde é que nos movemos. O desígnio de um conservador é ditado pelo medo da mudança e do desconhecido, pela sua tendência natural favorável à autoridade e que em geral sofre de um grande desconhecimento das forças que movem a economia”. O talentoso romancista, insista-se, nunca está ausente desta incursão com sete notáveis pensadores liberais, é o caso do que ele nos conta do encontro entre Isaiah Berlin e Anna Akhmatova, a grande poetisa russa, em Leningrado, em novembro de 1945, a poetisa tinha 56 anos, mais vinte que Berlin. “Caíra em desgraça, desde 1925, Estaline não a autorizava a publicar uma linha nem a dar recitais. A sua trágica odisseia é uma das mais penosas daqueles anos terríveis: o regime soviético fuzilou o seu primeiro marido e deixou o terceiro a elanguescer em vida num campo de trabalho forçado siberiano; o seu filho Lev foi mandado por Estaline para o Gulag durante treze anos, e, com a chantagem de não o matarem, os comissários soviéticos obrigaram Akhmatova a escrever odes abjetas de adoração ao ditador que a martirizava”. Terá sido um encontro inesquecível. O KGB enviou um relatório a Estaline daquela conversa que o ditador descreveu ao comissário cultural: “Quer dizer que agora a nossa freira se consola com espiões britânicos”. Isaiah Berlin introduziu os conceitos de liberdade negativa e positiva. “A liberdade está estritamente ligada à coação, isto é, àquilo que a nega ou limita. Somos mais livres na medida em que encontramos menos obstáculos para decidirmos a nossa vida como quisermos. Quanto menor foi a autoridade exercida sobre a minha conduta, enquanto esta puder ser determinada de forma mais autónoma pelas minhas próprias motivações, sem interferência de vontades alheias, mais livre eu sou. É este o conceito negativo de liberdade. Enquanto a liberdade negativa quer sobretudo limitar a autoridade, a positiva quer apoderar-se dela, exercê-la. Esta noção é mais social do que individual, pois fundamenta-se na ideia (muito justa) de que a possibilidade que cada indivíduo tem de decidir o seu destino está em grande medida subordinada a causas sociais, alheias à sua vontade”.
Este esplêndido trabalho combina com a análise do pensamento de Jean-François Ravel, um republicano ateu e antigo clerical, defensor do laicismo e do racionalismo, é um escrito memorável de alguém que andou por vários ofícios, vocações e aventuras, privilegiando de a escritor e jornalista e que desapareceu da cena em 2006 deixando um vazio intelectual em França que, no imediato, ninguém preencheu.
De leitura obrigatória, sobretudo para quem tem dúvidas de que o liberalismo e o conservadorismo são almas gémeas ou aparentadas.
Mário Beja Santos
