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O verão quente de 75 e os Açores ao rubro, o retorno, a descolonização: Tragédia e apaziguamento

Livro de Vozes e Sombras, por João de Melo, Publicações D. Quixote, 2020, um belíssimo romance que aproxima ou supera o autor das suas obras mais credenciadas. Rebuscou e acertou uma estrutura febril e avassaladora, puxou para a literatura a história da FLA – Frente de Libertação dos Açores mediante uma entrevista a uma das suas figuras icónicas de uma jornalista vinda de Lisboa, umas boas décadas depois. Há memórias de uma guerra da Guiné, chega o 25 de Abril com os seus ventos de independentismo insular, salta-se para a Angola colonial e depois a descolonização, aqui João de Melo legou páginas que passarão para a posteridade, tal o vigor emprestado àquela turbulência, ao espetáculo das fugas, ao desmoronamento de vidas. Vozes e sombras a atestar que o tempo passa e o bicho humano se adapta.

Há um incontestável esmero na arquitetura desta obra. Logo o encontro entre a jornalista Cláudia Lourenço e o lendário agente da FLA, Mariano Franco, partem do porto de Ponta Delgada para as Capelas, João de Melo está em casa, daí a vivacidade de nos falar do incenso, dos canaviais, cedros, ciprestes, dragoeiros e criptomérias, e aquele vento forte, desalmado, que atravessa lameiros, córregos e canadas. É pela voz do lendário insurreto que se começa a falar do colonialismo, do império, ele estivera na Guiné, experiência duríssima. Diga-se de passagem, é o episódio mais canhestro deste belíssimo romance, só mesmo quem não andou pela Guiné e não lhe conhece a orografia é que pode falar em precipícios e abismos. Mariano conta e torna a contar, assistiu à revolução em Lisboa, meteu-se mesmo nas manifestações, jurou a si próprio que iria travar todo aquele delírio proletário na sua terra. Surge Manuel Cristóvão, um sindicalista que um dia será forçado a vir para o continente, descobrirá uma companheira, uma retornada de Angola a quem caberá o discurso final da reconciliação pós-Império. Este Manuel Cristóvão será alvo de sevícias, o tempo se encarregará de atirar a FLA para o caixote do lixo da História, a normalização far-se-á sentir após os acontecimentos do 25 de novembro.

E saltamos para Angola, para a Casa Grande de Munakala, mergulhamos a sério no colonialismo, personificado pelo granjeiro Custódio Pinto, o 25 de Abril chegou a África, onde se esperava compromisso entre os diferentes movimentos de libertação, estala a demência, começam as fugas, os assassinatos, as destruições, mata-se selvaticamente o gado, Custódio manda a mulher e uma das filhas para Nova Roma, incendeia a casa. Aqui se encetam páginas literárias de grande qualidade, até porque a narrativa cabe à menina cega transformada no oráculo daquela curva da história, Ângela conta igualmente a chegada a Lisboa, a vergonha de serem chamados colonialistas, racistas, reacionários, exploradores e assassinos dos africanos. E depois a vida em Lisboa, o pai perde a saúde mental, a vida de três mulheres muda radicalmente.

Mariano Franco retoma a conversa com Cláudia Lourenço, muito cedo se apercebe que a CIA também veio ajudar a atear o fogo, fazia jeito a subversão dos Açores contra Portugal, para dar dinamismo à FLA foi mesmo dissolvido o Movimento para a Autodeterminação do Povo Açoriano, percebeu-se que era na brutalidade e no bombismo que convinha intimidar. Mariano conta mesmo um episódio dessa brutalidade que o leva ao remorso. Tem o maior interesse a descrição que João de Melo faz deste interior da FLA, o que motiva os seus membros.

Tudo se normaliza então, Mariano é expulso como expulso fora o sindicalista Manuel Custódio. Nesta trama literária de diferentes retornos vamos encontrar pessoas à deriva como a própria jornalista e o entediado representante do jornal na ilha, um tal Gil, que não sabe bem quem ama, que corre de uma paixão para outra.

A jornalista regressa a Lisboa e ouve das boas do chefe da redação, falta nervo ao material da entrevista, havia para ali muita mentirinha doce e heroísmo bacoco, ela que trabalhasse mais, é nisto que Cláudia Lourenço tem inspiração de saber por onde anda o sindicalista Manuel Cristóvão, chegou a hora de grandes revelações, a tal menina ceguinha da Casa Grande de Munakala tem muito para contar, dirá coisas como: “Um dia, ouvia um militar – que lá esteve a defender os bens e a pátria dos colonos – que a experiência dessa guerra lhe entrara nos ossos como um veneno, e não mais saíra. Sei o que isso é. Uma enfermidade do espírito e da consciência, para sempre. Fomos os demónios da memória portuguesa. De lá, desse continente histórico, regressou connosco uma ferida para a qual não há remédio nem cura possível”. Os desabafos não se ficam por aqui: “Não encontro as palavras certas para falar da minha mágoa histórica. Gostava de ser filha de um país primitivo, anterior à loucura da sua expansão para o exterior. Tivessem os portugueses visto no mar o prolongamento simbólico do território, e já não teriam complexos quanto à pequenez do seu país. Foi o passado que determinou o meu destino. Por isso me queixo dele e dele me lamento”.

Manuel Cristóvão também tem muito para contar. “Descobrira algo de novo no seu trabalho: a dignidade da vítima. Ninguém como a vítima nos mostra a sua própria realidade de baixo para cima, do chão para a cabeça dos homens, e destes para o céu dos deuses ou para a terra fria dos vivos e dos mortos”. Lisboa, Açores, Guiné e Angola. Projetos derrubados, vidas recomeçadas neste esplêndido romance marcado por retornos e pelo amor aos lugares, deem eles pelo nome de Campo de Ourique ou a ilha de S. Miguel.

Mário Beja Santos

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