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Luísa, um monumento de ternura de um prodígio da literatura infantojuvenil

 

Luísa Ducla Soares

Luísa, As histórias da minha vida, é uma das grandes surpresas (e muito bela!) deste acidentado ano literário, envolve uma conceituada autora, Luísa Ducla Soares, e uma ilustradora de truz, Ângela Vieira, Porto Editora, 2020. São instantâneos sobre os seus 80 anos de vida, tudo prima pelas expressões cristalinas, os traços de ternura de um poema da neta Leonor para a avó octogenária, o sentido de orgulho pela pertença familiar, e logo um dado precioso na noite do seu nascimento, a menina berrava desalmadamente: “Como não me conseguiam calar, o meu avô disse que ia usar um método infalível para calar crianças. Agarrou em mim e pôs-se a dançar uma dança da Estónia, sua terra natal: a dança do urso. O certo é que conseguiu reduzir ao silêncio a sua primeira neta. Segundo ele dizia, essas passadas rítmicas de um urso na neve ligavam para sempre quem nascia ao grande reino da Natureza. Talvez fosse verdade, porque a lua iluminou o silêncio e dele brotou, como por magia, o canto de um rouxinol”.

Ela recorda-nos que naquelas gerações brincar fazia-se com objetos simples, onde a inteligência manual tinha o seu peso, desde cordas para saltar passando pelos peões e berlindes, faziam-se aviões de papel e espadas de pau. A menina brinca ali perto da Torre de Belém, foi o seu parque infantil, regista que ali perto de casa, no Largo da Princesa, há um chafariz onde as mulheres pobres, com bilhas, se fornecem de água. “Foi aí que eu aprendi a saber que as pessoas se dividiam em duas categorias: as que tinham água canalizada e as que não tinham”. Há as recordações da II Guerra Mundial, a vibração da guerra na escola inglesa onde ela estudava. “Professoras e alunos viviam o drama de familiares mortos, casas bombardeadas, jovens em risco na frente de batalha. No Poppy Day, Dia da Papoila, púnhamos ao peito uma flor cor de sangue, em memória dos que tinham dado a vida por uma causa. Ainda hoje, a papoila, que parece a flor da alegria, tem para mim essa conotação de ferida a sangrar”. Há muitas mais recordações de infância, abarcando o circo, um coelhinho, correspondência de amor inocente. E é nisto que nasce o irmão mais novo, vem uma tocante lembrança do pai, de quem não esqueceu um comentário, a propósito de doentes em sofrimento e quando a medicina esgotara as respostas: “Às vezes a ciência já nada pode, mas nós podemos sempre oferecer duas coisas: a nossa presença amiga e uns pozinhos de alegria. Talvez daí me venha o humor que vou mantendo, mesmo quando tudo à minha volta parece desmoronar-se”.

Luísa entra no liceu, começa a inventar histórias, é brincalhona e amante de partilhas, lê que se farta, já está na Faculdade de Letras e vai estudar filologia germânica, faz amizades com futuros grandes escritores, caso de Fiama Hasse Pais Brandão e Luísa Neto Jorge. É presa na greve académica de 1962, em Caxias dá aulas de alfabetização e aprende cante alentejano. Casa com Mário Sottomayor Cardia, o dinheiro do casal é escasso, mas os preceitos sociais são de grande exigência, houve banquete no Palácio de Queluz e recebeu muitas pratas… Mas para quê contrariar os pais? “Confessámos aos nossos amigos íntimos que não tínhamos um único candeeiro, e recebemos com surpresa, nada menos que 13 para uma casa mínima”. Um casamento que durou 40 anos. Luísa foi tradutora, andou pelo Ministério da Educação e trabalhou décadas na Biblioteca Nacional, é uma das mais deslumbrantes descrições de tudo quanto nos conta, e parece mesmo uma história de encantar, pois nasceu o fascínio naquela convivência nas escolas, onde ela viu livros nascer, graças à iluminação de tanto sorriso dos mais novos.

Fala-nos da família, o que vai ficar para qualquer leitor de todas as idades é a dor contida pelo filho Francisco Miguel, o Mico, aos quatro anos surge-lhe um cancro, irradiava simpatia e otimismo, fazia das fraquezas forças. E pode imaginar-se o que uma mãe e escritora têm que fazer nessa dobadoira da dor, para confinar na secura de um parágrafo como a vida se rasgou e obrigatoriamente se vai recompor pelos anos fora, a isso chama-se ânimo ou coragem em viver: “Um ano e meio lutou; lutámos todos contra a doença, mas ele partiu, deixando um vazio na minha vida que nada nem ninguém consegue preencher. Nos momentos de desânimo e tristeza lembro-me sempre das suas palavras e procuro o que há de bom mesmo nos momentos maus. Mas não é fácil”.

Há os filhos e os netos, há o mundo dos livros, há o fadário das saudades, e é preciso ser-se uma grande escritora para fazer o saldo da vida e empurrar o leitor a seguir a sua para a frente: “Enchi páginas e páginas com personagens que tirei do filme da minha vida. E muitas delas foram vocês, crianças e jovens sem os quais não posso viver. Transformei-vos em figuras literárias. Não se zangam, pois não? Ter 80 anos significa também dar mais valor ao presente, que nos é dado como um verdadeiro presente. Significa apostar muito, muito no futuro, porque é a geração para quem eu escrevo que o vai inventar. E acredito, acima de tudo, na força, nos ideais da juventude!”.

De leitura obrigatória e muito cuidado com os empréstimos, é obra de consulta regular, seja qual for a idade de cada um.

Mário Beja Santos

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