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Nos labirintos do complexo escravocrata português

Se há facto sobre o qual a historiografia portuguesa tem vindo a produzir investigação séria, fundamentada e de indiscutível probidade é sobre o tráfico de escravos. Mas igualmente um vasto conjunto de historiadores de outras proveniências têm igualmente estudado com proficiência e rigor os negócios da escravatura. Dentro desta atmosfera de se andar a pedir perdão em torno das tropelias do passado, o esclavagismo é fenómeno sociopolítico recorrente.

Os historiadores não ignoram que a escravatura não foi uma invenção da Europa, tem milénios, e muito antes de portugueses, espanhóis, franceses, ingleses e outros andarem neste comércio entre as Áfricas e as Américas, já os muçulmanos através do Sara, do Egito e de Zanzibar movimentavam milhões. Reconheça-se o mérito aos Árabes de destilarem veneno sobre o esclavagismo europeu, pondo completamente na sombra o tráfico arabo-muçulmano e a sua componente intra-africana. É tabu falar nestas matérias, da escravatura perpetrada pelos Árabes na Península Ibérica, omitindo-se os escravos da Eslavónia (o tráfico de eslavos da Europa Oriental durou mais de mil anos, cativos provenientes da Ucrânia, da Polónia e da Rússia eram trazidos pelos esclavagistas muçulmanos de várias origens), na pirataria barbaresca no Mediterrâneo, na escravatura no Império Otomano, e muito mais haveria por dizer.

Combates pela verdade, Portugal e os escravos, por João Pedro Marques, Guerra e Paz Editores, 2020, é a recolha de um conjunto de artigos publicados por um investigador com pergaminhos em temas de História Colonial que na sua divulgação, de forma recorrente, procura clarificar os dados mais impressivos da história da escravatura, esgrimindo contra as opiniões que, de um modo geral, são destituídas de objetividade histórica. Ele tem razão quando denuncia que não se fez e desde há muito um debate sobre a escravatura e a função económica que teve em Portugal, em concreto foram os abolicionistas do século XIX quem deram os passos categóricos, e no século XX historiadores como Vitorino Magalhães Godinho, José Capela, Valentim Alexandre, Arlindo Caldeira e o autor deram significativos contributos. João Pedro Marques procura demarcar as questões históricas, desde o comércio aos valores, havendo convergência e interseção entre vários temas, a escravatura não é colonialismo, não é racismo e não foi pela escravatura no pós II Guerra-Mundial que os países colonizados atingiram a independência. É só de lastimar que um investigador tão abalizado precise de corporizar um adversário principal, a extrema esquerda, como se ele tivesse a certeza de que todas as críticas tenham única e exclusivamente esta proveniência, e se limite a dar exemplos daqueles que no século XIX andaram na luta antitráfico negreiro. Eu queria lembrar ao autor que António Saldanha da Gama, conde de Porto Santo, par do Reino, Grã-cruz de várias ordens, chefe da Esquadra da Armada Real, ministro plenipotenciário e embaixador em diversas cortes, e também governador e capitão-general do reino de Angola, no seu documento Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África, texto datado de 1814 mas publicado em 1839, era francamente apologista da escravatura: “Deslumbradas pelas descrições patéticas e ardilosas dos horrores do tráfico, descrições pelo menos exageradas, e calculadas para encobrir o verdadeiro motivo delas, correram a alistar-se sob as bandeiras da filantropia inglesa grande número de pessoas de boa fé, que cuidavam fazer grande serviço à humanidade combatendo a favor dos projetos interesseiros, mas arteiramente apregoados como puramente filantrópicos da Grã-Bretanha. Por que razão não merecem à Inglaterra igual zelo os escravos cristãos das regências barbarescas, os escravos do Egito, da Pérsia, da Turquia, os servos da Rússia, etc.? Será porventura porque a cor preta melhor excita as simpatias britânicas?

Quem viu de perto os povos negros de África, quem conhece a feroz crueza das suas leis e dos seus usos, a imensa quantidade de crimes e de contingências fortuitas que envolvem a perda da liberdade, não pôde deixar de reconhecer que o tráfico, ou como mais propriamente se dizia em outro tempo, o resgate dos negros, era um bem para a humanidade”.

Nem tudo é preto nem tudo é branco, e nisto das investigações temos que falar integralmente verdade. Se o autor se der ao trabalho de ler o romance de José-Augusto França Natureza Morta, que teve a sua primeira edição em 1949, e fruto da experiência que o insigne historiador de arte teve no mundo fazendeiro, caraterizado por uma tremenda brutalidade na mais alvar exploração do trabalho forçado, compreenderá que há sequelas, reconheçamos com associações indevidas, entre escravatura e colonialismo. O seu trabalho de denúncia de muita ignorância universitária tem méritos inequívocos. Dou um simples exemplo, pois é assunto mal assimilado pela opinião pública: “O tráfico transatlântico levou 12,5 milhões de pessoas de África para as Américas. Dos séculos XV a XIX, Portugal e o Brasil – convém não esquecer que, de 1822 em diante, o tráfico negreiro foi feito por e para um novo país chamado Brasil – transportaram cerca de 5,8 milhões desses escravos africanos. A Grã-Bretanha e os Estados Unidos terão transportados perto 3,6 milhões, França quase 1,4 milhões, e os outros países negreiros ocidentais, um pouco mais de 1,7 milhões. Os antigos portugueses e brasileiros foram, portanto, os maiores transportadores. Porquê? Porque, entre outras razões, foram os primeiros a envolver-se nesse terrível negócio transatlântico e dos últimos a sair dele”.

Como é evidente, há uma tremenda instrumentalização informativa sobre a escravatura e nem a Al Jazira deixa de colaborar na falsificação histórica, João Pedro Marques conta a história de uma série de programas sobre as rotas da escravatura em que não houve uma só palavra para o tráfico muçulmano, começou logo pelo tráfico dedicado aos portugueses, chocante, dada a fama de rigor e objetividade que gozava a Al Jazira.

A História é a Ciência do homem no tempo, na admirável definição de Marc Bloch. Daí perceber-se a insistência de João Pedro Marques quando nos deixa numa das badanas do seu livro uma lembrança a todos os títulos pertinente: “A criminalização da escravatura e do tráfico de pessoas foi uma das grandes conquistas políticas, jurídicas e morais dos últimos duzentos anos, algo que ficámos a dever a quem por isso se bateu. Mas antes de finais de Setecentos, nenhuma dessas coisas era crime em nenhuma parte do mundo. Podemos achar chocante que assim fosse, mas é essa a verdade histórica. Os homens justos e bem formados, de todas as cores e latitudes, considerariam a escravatura infeliz e lamentável, mas ela era admitida, quando não incentivada, pelo costume, pela religião, pela política e pela lei”.

Mário Beja Santos

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