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No descalabro britânico, um admirável laboratório de novas formas de fazer políticas

O título do ensaio, a própria capa da obra, são uma chamada de atenção, há qualquer coisa em movimento que nos aponta para situações que parecem ter o condão de poder moldar o mundo nas próximas décadas.

Jack Shenker, autor de Já Estão a Prestar Atenção, Como se Fará a Política de Amanhã

Em Já Estão a Prestar Atenção, Como se Fará a Política de Amanhã, Jack Shenker, Bertrand Editora, 2020, vai percorrer alguns pontos da Grã-Bretanha que são territórios fraturantes, é uma viagem por um país em crise, o autor faz-se de caminhante, conversador, entra em locais de construção e fábricas em ruínas, vai a conferências, é confrontado com um desapontamento em massa, um desgosto profundo com as políticas convencionais, regista novas formas, alternativas, de agir no sindicalismo, no protesto dos jovens contra os empregos da treta que os arrastam para a precarização permanente onde até alugar uma casa pode ser inviável, o neoliberalismo gerou um sistema em que se cavaram as desigualdades sociais.

O que se passou com o Brexit tem uma forte associação com a corrente migratória, mas há outros fatores que foram mais determinantes, com destaque para o capital global, este apostou a sério na especulação imobiliária, foi ascendendo uma forte corrente de hostilidade ao imigrante, o livro recolhe relatos pungentes de pessoas residentes na Grã-Bretanha há largas décadas, casados com britânicos, obrigados a perder tudo, e mesmo quando ganham os processos judiciais uma boa parte da sua integridade fica danificada. Os adolescentes mexem-se, aderem a manifestações, eles próprios já fazem parte dos sem-abrigo, sofreram cortes nos apoios, deixaram de acreditar no modo de agir dos principais partidos políticos.

O autor viaja até Tilbury, a menos de trinta quilómetros a leste do centro de Londres, é a imagem dessa derrocada e exemplifica: “Hoje, quase todos os grandes empregadores ou instituições locais que Tilbury possa ter em tempos reivindicados como seus foram privatizados, encerrados ou ambas as coisas. A grande central elétrica a carvão que se ergue sobre o Forte Tudor está a ser desmantelada. A fábrica de sapatos Bata, está parada e vazia. As docas foram vendidas a uma companhia de Edimburgo em 1992. O quartel dos bombeiros fechou em 1997. O Railway Club, em tempos o eixo da vida social de Tilbury, é uma ruína carbonizada, os escombros escondidos por painéis grossos de madeira preta cobertos de grafiti”. É um território carenciado, quase uma em cinco pessoas em idade ativa está desempregada, baixaram os índices de saúde, para já não falar dos níveis de rendimento e os de educação. “Quase metade das crianças de Tilbury cresce na pobreza, mais do dobro dos valores nacionais”. Já foi um bastião trabalhista, inevitavelmente muitos eleitores votaram pela saída da União Europeia, acusada de todas as responsabilidades pelo descalabro de Tilbury.

O futuro é pouco promissor. “Ao longo das próximas duas décadas, calcula-se que entre 10 a 15 milhões de empregos britânicos serão substituídos pela automação. Há já quem anteveja uma nova era de feudalismo económico em que a pequena minoria que detém os robôs colherá as recompensas. O autor observa que a despeito do descalabro muitas instituições aguentaram-se no meio das tempestades do mercado livre em Tilbury, ainda há gente carregada de positividade, mesmo neste país em que fecham muitos pubs por semana e onde caiu a pique o número de discotecas e de centros de juventude e de bibliotecas.

Vai aparecer uma guineense, Fátima Djaló, que veio de Sonaco e que vive em Londres num trabalho praticamente precário, trabalha desalmadamente, vive nas condições mais degradantes, descobriu a cooperação, juntou-se a outra gente, formaram um novo tipo de sindicalismo, granjeiam bons resultados, o autor conta a história das lutas dentro da Amazon e lembra-nos que esta empresa tem a patente de umas pulseiras ultrassónicas que quando ligadas aos trabalhadores conseguem seguir todos os movimentos das suas mãos e graças às vibrações detetam que o trabalhador está a executar as tarefas de modo inferior a ótimo. Mas novos processos de escravatura e condicionamento fazem caminho, já se pode inserir um micro-chip  num trabalhador para o localizar 24 horas por dia. Mas há respostas, como o autor recorda quando observa que a subversão das novas tecnologias de gestão e vigilância é uma vulnerabilidade clandestina no atual sistema económico. O sistema tem uma densa infraestrutura física constituída por fábricas, armazéns, entrepostos de camionagem, hospitais e escola, toda esta rede é suscetível de ações grevistas e o autor fala-nos dessas lutas e como nalguns casos se revelam exemplares.

Pode ler-se este estimulante ensaio como o retrato de um país poderoso que está cada vez mais sujeito a fraturas tectónicas, onde ressurge o racismo, o nacionalismo e a mais descarada xenofobia.

E o autor faz a leitura do Brexit: “O resultado do referendo e o seu rescaldo mostraram apenas o quão falaciosa é realmente qualquer narrativa unificada da Grã-Bretanha e da identidade britânica. Somos um país sem colagénio: fragmentado pelo conceito de nação, região, educação e classe, dividido entre áreas rurais e urbanas, entre jovens e velhos, ricos e pobres. E embora as ilusões da grandeza imperial tenham sido a principal razão para a vitória do Brexit, o uso dessa linguagem não deixa de ser muito importante. Permitiu aos políticos à direita desvalorizar essas fragmentações para apresentar o Brexit como um projeto nacional único, o Brexit que reconquistaria o país iria encontrar outra vez a voz da Grã-Bretanha no mundo”.

As ilusões estão à vista e este magnífico trabalho passa em revista as experiências que dão esperança a que uma nova participação no sistema político fará renovar a esperança deste país que aprovou a Magna Carta em 1215.

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