A Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo (CIM) vai realizar um seminário sobre violência doméstica em Mação. A iniciativa é louvável, desde logo em termos geográficos, pois não esquece a fronteira do Distrito[1].
Além disso, também no Cartaxo haverá uma exposição para sensibilização do tema, promovida pela APAV[2]
O tema é bastante complexo, quer em termos políticos, jurídicos, ideológicos, existindo um geral consenso na sua censura social, pelo menos em termos públicos.
Pessoalmente, gosto de tentar ir fundo nas questões, e esta questão começa nas relações amorosas, e nas dinâmicas da sedução, particularmente naquilo a que se denomina de relações “hetero-cis”, e nos limites das várias correntes feministas.
Historicamente o Poder nunca foi neutro, ele sempre foi masculino e branco, e alicerçava-se na “heteronormatividade” (excluindo a homossexualidade), e na monogamia para se manter, aliás, juridicamente o casamento surge como forma de celebrar tratados internacionais, em que um rei apresentava a sua filha ao príncipe do reino vizinho.
Se repararmos nos casos em que terminam com a morte da vítima, o agressor, na sua maioria das vezes o homem, devido a todas as relações humanas serem relações de poder, está muitas vezes a não aceitação do fim da relação, por vezes da infidelidade, ou seja o outro como propriedade.
A Dominação é um fenómeno complexo, e as coisas não são tão simples como “ele não presta, deixa-o”, aliás, a PSP tem no seu site uma imagem bem ilustrativa sobre o assunto[3]. Em Portugal apenas no ano 2000 este crime passou a ser público, muito devido ao trabalho da agora vereadora do Bloco de Esquerda em Torres Novas, Helena Pinto, na altura deputada, que deu a cara juntamente com diversas ativistas, e foram sempre sempre incansáveis nesta luta.
Falamos de um crime em que o medo é usado como ferramenta de controlo, e não sendo polémico como referido supra, onde “há sedução, há manipulação”, e não há relações amorosas 100% democráticas por variadas razões. Ou seja, deixar a decisão nas mãos da vítima, era na verdade deixar a decisão nas mãos do agressor , pois ele é que “controlava” a vítima.
Curiosamente acontece algo muito similar na violação que ainda não é crime público, um crime que sociologicamente tem o mesmo “animus” do agente, ou seja, o controlo e a dominação.
Os argumentos para manter a violação enquanto crime semi-público prendem-se com a “vergonha” e com o facto de a vítima “querer esquecer”, exatamente os mesmos que eram usados na violência doméstica (era uma coisa do casal, a sua vida intima).
Em março do ano passado tivemos uma notícia curiosa, Santarém era o Distrito com menos casos de violência doméstica do país[4]. Os pessimistas dirão que tal se deve à maioria dos casos permanecerem não reportados, a tal questão da vergonha, e o velho “consenso” , ao “casal o que é do casal”.
“Já no que diz respeito à PSP, o Comando Distrital de Santarém registou um decréscimo de 13% em relação a 2017 mas o número de detidos mais que duplicou no mesmo espaço de um ano” , ou seja menos casos mas com maior gravidade, sabendo nós que a pandemia amplifica os conflitos conjugais.
Em Benavente, uma mulher tentou matar o marido com um machado no ano passado[5], em Abrantes, uma professora matou o marido[6], e em Alpiarça, um homem matou a esposa, suicidando-se de seguida[7]. Bastavam estes casos para envergonhar o país e o distrito, e basta morrer uma pessoa para que nunca exista justiça, pois justo era essa pessoa não ter perdido a vida, mas são os limites do Direito Penal na sua função reparadora, e de prevenção geral e especial.
Juridicamente o Estado não pode ser neutro numa relação de poder, se não o é nas relações laborais, porque o seria nas relações sexuais/amorosas? Digo isto, porque por vezes ouvimos alguns “libertários” dizerem “tirem o Estado da nossa cama”, bem como religiões que a caucionam. Quer a Bíblia quer o Corão falam no assunto, dando sempre primazia ao casamento como sacramento, e que o marido é para “honrar”.
Se repararmos, muitas vezes o agressor suicida-se, fenómeno curioso, um ato de um egoísmo extremo, e que em meu entender vem de um sistema cultural que nos vende desde míudos a fábula da Disney “vais crescer, vai aparecer a pessoa certa e perfeita, casar e ser feliz para sempre”, e essa fantasia polui a nossa vida, pois passamos a vida a tentar alcançar o impossível, o que invariavelmente vai levar a frustração, que é má conselheira.
Tudo isto não se desconstrói de um dia para o outro, nem a solução é toda jurídica, passa pela educação, de não haver tabus sobre os temas, incluindo no humor. Não é porque um tema é trágico, que fica vedado ao humor, como dizia Charlie Chaplin “É saudável rir das coisas mais sinistras da vida, inclusive da morte. O riso é um tónico, um alívio, uma pausa que permite atenuar a dor”. Não é a criar bolhas anti-opressão que a resolvemos, nem a desconstruimos.
André Breton no seu livro “Anthologie de l’humour noir”, em 1940 tocava no assunto, e foi censurado pelo regime de Vichy, tendo sido o humor negro uma arma de resistência ao nazismo, algo pouco falado, e que mostra que tal como a fronteira entre amor e ódio é muito ténue, também podemos transformar a luta emancipatória em opressão, desde logo porque a coisa mais difícil para um ser humano, é meter-se no lugar do outro.
A música dos Ornatos Violeta “ouvi dizer”, diz-nos “Para nos lembrar que o amor é uma doença, quando nele julgamos ver a nossa cura!” https://www.youtube.com/watch?v=d_uIe7S0T4k&feature=emb_title , analisa bem um tema que devia inspirar mais arte, e menos crime.
Luís Martinho
[1] https://maisribatejo.pt/2020/10/08/macao-recebe-seminario-sobre-violencia-domestica/
[2] https://maisribatejo.pt/2020/10/08/imagens-que-marcam-30-anos-de-apoio-a-vitima-no-centro-cultural-do-cartaxo/
[3] https://www.psp.pt/Pages/atividades/programa-violencia-domestica.aspx
[4] https://www.rederegional.com/index.php/sociedades/25332-santarem-e-o-distrito-do-pais-com-menos-casos-de-violencia-domestica
[5] https://maisribatejo.pt/2019/10/10/mulher-suspeita-de-tentar-matar-o-marido-com-dois-golpes-de-machado-presa-preventivamente/
[6] https://maisribatejo.pt/2019/08/17/professora-de-abrantes-condenada-a-19-anos-de-prisao-por-matar-o-marido/
[7] https://maisribatejo.pt/2019/06/01/alpiarca-mulher-queimada-pelo-marido-que-se-suicidou/