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20 de julho de 1944: Hitler escapa por um triz de ser assassinado

A tentativa de assassinar Hitler ficará na história pelo nome de Operação Valquíria, foi organizada por um conjunto de oficiais do Exército alemão profundamente descrentes com a condução da guerra, era preciso eliminar o ditador e preparar um acordo de paz com as potências ocidentais.

Sorte do Diabo, A história da Operação Valquíria, pelo historiador Ian Kershaw, Publicações Dom Quixote, 2020, é o texto que foi retirado na monumental biografia que o reputado historiador britânico dedicou ao senhor do Terceiro Reich, um relato admirável, composto pelo histórico de várias tentativas para liquidar o senhor absoluto da Alemanha nazi e focado no refluxo da guerra, naquele verão de 1944 já não havia ilusões de que só restava uma estratégia defensiva perante a tenaz de, a Leste, os Exércitos Soviéticos se revelaram imparáveis e, a Ocidente, a muralha do Atlântico cedera, os Aliados rumavam em direção ao Reno. Hitler mudava de comandantes, culpava-os dos desaires; rejeitava qualquer tentativa de chegar a uma solução política. Completamente lunático, Hitler culpava a fraqueza ou a insuficiência de quem comandava, partindo do princípio ilógico de que outro comandante com uma atitude superior oferecia um resultado diferente. Os desaires a Leste sucediam-se, Hitler rejeitava evacuações, o avanço soviético posicionara o Exército Vermelho já na Lituânia. No início de julho, Hitler deixou as Montanhas Bávaras e voltou ao seu velho quartel-general na Prússia Oriental, a Toca do Lobo.

O atentado encabeçado pelo coronel Claus Schenk, conde de Stauffenberg, ocorreu ao fim da manhã numa sala de reuniões da Toca do Lobo, o historiador britânico recapitula os elementos fundamentais que constituem o pano de fundo da conspiração e deixa claro que os oficiais envolvidos estavam crentes de poder fazer uma paz separada com os Ocidentais e manter grandes parcelas da Alemanha, desde a Alsácia até à Silésia.

Como se se tratasse de uma narrativa empolgante, vemos toda esta agitação, onde se entremeavam repúdios éticos e o conhecimento de que os recursos alemães caminhavam para o esgotamento. A Operação Valquíria suscitava naturalmente problemas, a tomada do poder político-militar e a neutralização dos principais dirigentes nazis. Stauffenberg era um oficial gravemente sinistrado, fazia parte do Exército de Reserva, passou a ter acesso a reuniões convocadas por Hitler. O plano passava por levar numa pasta dois engenhos explosivos que, deflagrando, destruiriam completamente aquelas instalações, provocando um morticínio. Quando é chamado para a reunião com Hitler, Stauffenberg, na precipitação, não conseguiu acertar o mecanismo de detonação da segunda bomba. “Foi o momento decisivo, mesmo sem ter sido armadilhado, tivesse sido posto na pasta de Stauffenberg juntamente com o primeiro, teria sido deflagrado pela explosão, mais do que duplicando o efeito. É quase certo que ninguém teria sobrevivido. O conspirador entra na sala, encostou a pasta junto da perna direita maciça da mesa, arranjou uma desculpa para sair. Entra num carro e procura sair da Toca do Lobo em direção ao aeródromo, pretende ir para Berlim para o novo círculo do poder.

Dá-se a explosão. “As janelas e portas fragmentaram-se com o impacto. Formaram-se nuvens de fumo espesso. Estilhaços de vidro, pedaços de madeira e uma chuva de papéis e de outros detritos voaram em todas as direções. Foi um pandemónio. Havia 24 pessoas na caserna, na altura da explosão. Algumas foram lançadas ao chão ou para o outro lado da caserna. Outras ficaram com o cabelo ou a roupa em chamas (…) Extraordinariamente, Hitler sobreviveu com ferimentos superficiais. Após o choque inicial da explosão, verificou que estava inteiro e podia mexer-se. Depois, dirigiu-se à porta por entre os destroços, sacudindo as chamas das calças e do cabelo pelo caminho”. A conspiração descurara aspetos fundamentais como foi o caso das comunicações. Hitler julgava que a bomba fora posta pela Organização Todt, o grande organismo de construção, teriam sido trabalhadores os responsáveis. Mas rapidamente as suspeitas viraram-se contra o desaparecido Stauffenberg.

No quartel-general dos conspiradores em Berlim reinava o caos, a conspiração deixara muitas pontas soltas, faltava coordenação. “Não se tomaram medidas para controlar imediatamente as estações de rádio de Berlim e outras cidades. Os putschistas não fizeram nenhuma emissão de rádio. Os líderes do partido e das SS não foram presos. O mestre da propaganda, Joseph Goebbels, foi deixado à solta”. Na Toca do Lobo ficou claro que a tentativa de assassinato fora o sinal para uma insurreição política e militar contra o regime, Hitler muda algumas das pedras fundamentais, prontamente procurou-se jugular o ninho dos conspiradores.

Ian Kershaw tem o poder narrativo de um quase suspense literário de todos estes episódios pungentes, de volte-face. Monta-se a tese de que houve uma salvação providencial, será tónica do discurso transmitido por Hitler pouco depois da meia-noite. O ditador dá corpo ao móbil da conspiração: o Estado-Maior Alemão estava contaminado, procurava levar o país para a derrota, queria destruir o Reich, era um ninho de traidores, havia que erradicar estas criaturas desprezíveis, a recuperação militar seguir-se-ia à recuperação moral.

Em Berlim, o coronel-general Fromm, que teve sempre uma atitude dúbia até se passar declaradamente para o lado do vencedor, mandou executar imediatamente Stauffenberg e os outros líderes do atentado. Os outros conspiradores foram apresentados ao Tribunal Popular, o juiz, Roland Freisler, um nazi fanático, irá ter um papel hediondo na farsa dos julgamentos. Houve muita gente destituída, serão executados já no fim da guerra, caso do general Fromm ou do almirante Canaris. A vingança sobre a família dos conspiradores foi terrível, uns presos outros assassinados.

As explosões deixaram sequelas em Hitler e os efeitos psicológicos foram graves. “A sua sensação de desconfiança e de traição atingiu níveis paranoicos. A segurança no quartel-general do Führer tornou-se imediatamente mais apertada. A Alemanha entrava no abismo, Hitler compreendeu muito bem o desembarque com êxito dos Aliados na Normandia e o colapso dramático da Frente Oriental. A Força Aérea Alemã tornara-se insignificante, os bombardeamentos Aliados eram incessantes, a toda a hora chegavam notícias da escassez crítica de combustível. Os oficiais-generais mais prestigiados, como Kluge e Rommel, apelaram a Hitler para pôr termo a uma guerra que não podia vencer, mas ele rejeitou liminarmente qualquer hipótese de procurar um acordo de paz, justificava que a situação ainda não estava pronta para uma solução política. É certo que Hitler recebeu manifestações de apoio, mesmo organizadas pelo regime, mas a popularidade do homem que se julgava providencial ia diminuindo todos os dias.

O historiador deixa no ar o que teria acontecido se a conspiração de Stauffenberg tivesse tido êxito. “O regime foi desafiado desde o seu interior. Mas o golpe que sofreu no coração não foi mortífero. Na altura, ainda conseguiu reagrupar-se e reconsolidar-se, atrasando o fim por mais alguns meses, prolongando a agonia de milhões de pessoas. Mas já não havia volta atrás no caminho auto-destrutivo em que se tinham lançado (…) Para o alemão comum, também não havia saída. Era dado como adquirido que o regime estava acabado. A única esperança era que os britânicos e os norte-americanos conseguissem suster os bolcheviques. As reações mais vulgares,quando se anunciava mais um inverno de guerra, era a apatia, a resignação e o fatalismo”.

Uma descrição de enorme vivacidade no tratamento da documentação, mais uma prova acabada da mestria de que goza um dos maiores historiadores do nosso tempo.

Mário Beja Santos

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