Sexta-feira, Abril 19, 2024
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Como o Sol

Um amigo transmite-me a notícia da morte do querido Eduardo Lourenço, e eu, atónito, deixo cair uma lágrima de silêncio sobre as palavras e apenas me ocorre que o sol obscureceu, num eclipse momentâneo, para logo voltar a brilhar. Eduardo Lourenço era uma espécie de sol que irradiava luz, uma luz fecunda, iluminadora do nosso pensamento e da nossa vida coletiva. A sua obra é essa luz solar que se abre em cada página, convocando-nos sempre à leitura do prazer da descoberta, à inovadora análise da realidade, ao labirinto das ideias que fazem o caminho da nossa relação com o mundo. Sábio que era, sem nunca se mostrar como tal, menos oráculo e mais homem comum, ele decifrava pacientemente, à conversa ou à escrita, o labiríntico universo da cultura, mostrando que o chão nosso do mundo é um processo de persistente aprendizagem, que todos os dias recomeça nos desafios que a sociedade coloca no meio do caminho, como a pedra do poema de Drummond.

Das coisas boas que me aconteceram na vida foi conhecer Eduardo Lourenço e ser seu amigo. Pude partilhar momentos singulares à volta do Mestre. Às vezes, era o nó de terra originário, S. Pedro de Rio Seco (o seu “Paris-Texas”, como escreveu um dia nas páginas de um diário desaparecido), outras a memória da Guarda “sideral” e “crepuscular” na metáfora de um “navio de pedra ao alto de uma montanha”, ou a Beira do altar e do arado, “terras de funda memória” no seu sono arcaico e profundo. A mesa era sempre boa para os pensamentos e o Eduardo, de facto, mostrava como “quem vê o seu povo, vê o mundo todo”. A sua prática era de comum humanidade. Não gostava de torres de marfim, tão ao gosto de algumas academias, e, quando as havia, descia delas para uma cidadania do saber sobre a emergência do quotidiano. Falava de tudo: dos fenómenos sociais, da sociedade do espetáculo, do futebol e da política à escala nacional ou planetária. Encarou sempre a cultura como questão primordial e não poucas vezes, como um dia confessou, falando do mundo dos grandes autores, estava a falar de si, como se o memorialismo pessoal e imediato lhe estivesse vedado.

Foi polémico e desmistificou questões de “vacas sagradas” da literatura portuguesa, desfazendo mitos, sempre com a elevação da força dos argumentos em detrimento das ideias em estado de sítio e do ajuste de contas pessoal. A sua formação filosófica (fazia sempre uma vénia ao seu Mestre de Universidade, Prof. Joaquim de Carvalho) e um pensamento aberto ao mundo faziam-lhe ter razão antes do tempo, como aconteceu logo com as primeiras obras, Heterodoxia I e II, e, mais tarde, pela forma como articulou a relação com a Europa (Nós e a Europa) ou pensou a contingência histórica portuguesa, com as suas quimeras ou os despedaçados sonhos imperiais, na configuração lusófona.

O que aprendemos com Eduardo Lourenço! A sua introspeção a um Pessoa Revisitado, a sua forma de medir o tempo dentro da poesia (Tempo e Poesia), o seu pensamento crítico (Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista), a crítica dentro da crítica, quando nos explica como a crítica literária morreu (O Canto do Signo), o seu contributo para nos pensarmos a nós próprios como pátria, pondo a nu as angústias da nossa complexa matriz identitária (O Labirinto da Saudade).

Terei sempre comigo a honra de ter recebido o Prémio Eduardo Lourenço, em 2017. E sou tributário de gratidão, que só pagarei com o coração, pela sua amizade, pela atenção que dedicou aquilo que eu era  como jornalista e como escritor. Não esqueço o prefácio que escreveu para o meu primeiro livro de ficção, Os Fantasmas Não Fazem a Barba, de ter apresentado Crónica do País Relativo, em Lisboa, e do que disse sobre mim, na cerimónia da Guarda.

Todos lhe devemos muito. É ele o autor da ideia, o criador do Centro de Estudos Ibéricos (olá, Rui Jacinto!), que tem já história assinalável na cooperação cultural ibérica.

Estou a ver Eduardo Lourenço em S. Pedro de Rio Seco, com o seu sorriso aberto, com a sua solidária relação com toda a aldeia do planalto beirão. Com o seu passo miudinho, evocava os lugares e os tempos dentro do tempo. Afabilidade do comum dos homens, que era sábio. E que me dizia a sorrir: “Chamam-me filósofo, mas o que sou é ensaísta. Ser discípulo de Montaigne, já não é nada mau!”

O sol volta a brilhar. As palavras de Eduardo Lourenço refletem luz.

Fernando Paulouro Neves

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