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Guerra e Terebintina: uma obra-prima absoluta, de um flamengo para o mundo

Stefan Hertmans

Guerra e Terebintina, por Stefan Hertmans, Publicações Dom Quixote, 2019, é uma obra notável, um romance memorial centrado num heroico militar flamengo que viveu em cheio os horrores da I Guerra Mundial e deixou ao neto dois cadernos contando a sua vida desde criança, as suas recordações da vida duríssima do fim de século, o amor extremado, incondicional, pelos pais, a vida em pardieiros, como se suplantava a miséria amando a música erudita, a violência do trabalho numa fundição, a admiração pelo trabalho do pai, pintor em igrejas, a não menos admiração pela extremosa mãe que o irá visitar num campo de batalha; a descrição inultrapassável da ofensiva alemã, a crueldade daquele exército que executava civis sem dó nem piedade, os atos heroicos descritos com uma tocante discrição, as trincheiras geladas, os gritos dos feridos, os corpos desfeitos pelo fogo dos canhões ou saído dos ninhos de metralhadoras; e o regresso para viver um drama de amor, comovente pela sua sinceridade, a sua apaixonada a morrer devido à gripe espanhola e o seu casamento com a irmã, uma relação calma e companheira, tudo baseado no dever e no respeito à moda antiga; e se já houve miséria, já se experimentaram os horrores da guerra, a que se seguiu aquele coração dilacerado pela perda do amor, há a pintura como cautério e expressão sublime desse homem religioso, convencional, disciplinado e sempre preparado para arrostar as maiores provações e sem um queixume.

Imperdoável não ler este clássico da literatura mundial.

Cadernos que nos permitem uma viagem pela História, por saltos de civilização, por um modo de vida flamengo que caminha para a sua identidade, e o belo e insólito título de Guerra e Terebintina para sintetizar o itinerário deste herói apagado que deambulou entre provações de toda a espécie entre a infância e a guerra, educado para a arte que o acompanhou como catarse e cultivo do espírito e uma permanente história de amor, que recebeu no berço e misteriosamente passa para o neto através de dois cadernos, laboriosamente escritos em 17 anos.

Urbain Martien nasceu em 1891, este seu neto vai percorrer os diferentes locais da sua vivência na região de Gand, e dá-nos quadros inesquecíveis, apontamentos de pormenor da maior delicadeza. Por exemplo: “A Estação Sul, a estação ferroviária do outro lado do parque, era o orgulho da cidade de então, um edifício tipo palácio com uma praça ampla em frente onde, num canteiro de flores ao lado de uma fonte, se erguia a estátua em bronze de um gladiador. Nas tardes de domingo, que tinha livres – trabalhava-se também aos sábados, a semana de trabalho contava seis longos dias – o meu avô vagueava por aqui com o filho dos vizinhos, observando os comboios a entrar e a sair de uma plataforma superior, divertindo-se a serem aspergidos com nuvens de fuligem e cinzas que esguichavam das chaminés das locomotivas. O interior da Estação Sul era deslumbrante: o átrio central, assente em vigas de aço, o teto inclinado com janela, ao estilo da época, um impressionante canteiro onde cresciam palmeiras e toda a espécie de arbustos ornamentais, preenchendo o espaço sob a cúpula de vidro. A estação foi demolida em 1930 (…) Para as gerações mais novas nem sequer existe uma sensação de perda, a evidência é um subproduto do esquecimento. Tento imaginar como era há um século uma fila de coches, os cavalos aguardando pacientemente com um saco de aveia á volta do pescoço; os cocheiros, com bigode aparado a rigor, bebendo cerveja de um caneco de barro; o odor omnipresente a bosta de cavalo em todo o lado; passageiros a entrar e a sair sob o imponente frontão da fachada; talvez um reelejo a tocar em fundo; e, no elmo do gladiador de bronze, um pombo”.

O neto que questiona os objetos do avô, desde seixos a relógios, o amor deste avô pela música, a morte dolorosa do bisavô, as tensões entre os católicos e os socialistas, a gradual aproximação de Urbain à mãe viúva. E este visita um primo no local onde se faz gelatina, é dos episódios mais escabrosos, horripilantes e nojentos algumas vez passados à escrita. Urbain, naquele meio de estrita miséria, alista-se no Exército, a mãe casa segunda vez, de má vontade e sem amor, à procura de aconchego para os filhos. Finda a tropa chegam os horrores da guerra, o poder narrativo de Hertmans toma conta do leitor, este fica avisado que vai participar em carnificinas e testemunhar a solidariedade que a tragédia consente. E no rescaldo, há um comentário do autor: “Todas as virtudes antiquadas sucumbiram no inferno das trincheiras da I Guerra Mundial. Houve soldados premeditadamente embebedados antes de serem mandados para a linha de fogo; havia cada vez mais prostíbulos clandestinos onde os soldados eram encorajados a satisfazer os seus frustrados desejos sexuais. As atrocidades e as chacinas modificaram definitivamente a moral, a filosofia de vida, a mentalidade e as normas éticas dessa geração. Dos campos de batalha a cheirar a pastagens espezinhadas, dos moribundos que ainda batiam continência na hora da morta, dos cenários campestres repletos de colinas e arvoredo das pinturas militares do século XVIII, restava uma ruína mental asfixiada pelo gás mostarda, campos a abarrotar de corpos despedaçados, e assim uma antiquada espécie humana foi literalmente dilacerada”.

No regresso deste inferno, Urbain apaixona-se pela bela Maria Emelia, será uma das vítimas da gripe espanhola. Inconsolável, aceita a proposta do futuro sogro, que não abandonasse a família. “Assim, em 1920, o primeiro sargento-mor Urbain Joseph Emile Martien, agraciado com a Cruz de Fogo e três vezes portador de insígnias da Ordem de Leopoldo, das quais uma vez a Cruz com três palmas e outra a Ordem da Coroa com uma palma, assim como a Cruz de Cavaleiro por mérito excecional, a condecoração militar com fita às riscas, a Cruz de Guerra com três palmas e dois leões, a Medalha Yser da Ordem de Leopoldo, para além de outras condecorações e insígnias, casou-se pouco antes de completar trinta anos com a tímida Gabrielle Ghys, três anos mais velha, que seria sua mulher durante quase 40 anos e por quem sentia um sincero afeto, como ele mesmo poderia ter dito”. O autor interroga: “O que significará uma pessoa viver a vida inteira ao lado da irmã da sua grande paixão?”. Pouco importa, é uma vida de cuidados, um crente piedoso e depois reformado lança-se na pintura, o autor dedica-lhe páginas de grande candura. Enviúva, mantém-se ativo, e morre pacificamente durante o sono o herói temerário da frente do Yser que inúmeras vezes arriscara a vida debaixo de fogo inimigo.

E o neto dedica-lhe um final retumbante, mais comovente não podia ser:

“Assim, ele próprio tornado um fragmento numa floresta da memória, ergue-se e sobe menos do que uma nuvem de fumo ao vento. Chegado à porta do céu tão longamente esperado, ansioso por aí reencontrar os seus entes queridos, põe-se em sentido, bem aprumado, à espera da demissão como se estivesse de novo perante o médico militar no quartel.

Sergent-Major Marsjèn?, pergunta finalmente S. Pedro, folheando a interminável lista de nomes dos portadores da Cruz de Fogo.

Non, mon commandant. Je m’appelle Martien, pas Marsjèn, à vous orders.

E bate continência”.

Imperdoável não ler este clássico da literatura mundial.

Mário Beja Santos

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