Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.
Guardo religiosamente a segunda edição, foi de 1968 como a primeira, acompanhou-me para a Guiné e não ficou incinerada numa brutal flagelação que o meu aquartelamento sofreu em março de 1969 porque me acompanhou ao hospital militar, onde estava a fazer uma intervenção ortopédica.
O livro marca a usura das viagens e das leituras sem conta a que foi sujeito, era uma história que me enchia a imaginação, com as suas parábolas, metáforas e alegorias, anexins e provérbios, uma aldeola com padre velho e padre novo, muitos caçadores prontos a avançar para a Lagoa, não distante da Gafeira, a dita aldeola, também não muito longe da Vila, onde, aí sim, há já uma pequena indústria, entre a aldeola e a vila reparte-se o engenheiro Tomás Manuel da Palma Bravo, de ancestral descendência, bem comprovada na monografia da Gafeira, escrita pelo Abade Saraiva.
Fiquei sempre com dúvidas se estava diante de uma arrojada arquitetura da escrita romanesca ou de um exercício sincrético, a todos os títulos memorável. Alegórico entre o Portugal antigo, dado pelos usos e costumes da Gafeira, aquele engenheiro marialva, entalado como porta-estandarte dos valores consuetudinários e suficientemente libertário na sua revelação iconoclasta, e com olho bem aberto entre o presente e o futuro.
Uma narrativa onde se misturam ingredientes talvez de crime e mistério, que o escritor-caçador apimenta em permanência para manter o leitor numa difusa ebulição – o que levou a mulher de Tomás Manuel, Maria das Mercês, menina educada em colégio de freiras, bem prendada, a fugir espavorida e a morrer afogada na lagoa? Porque apareceu Domingos, o mestiço maneta, reeducado pelo casal, morto na cama do mesmo casal? O leitor que se acautele, porque para cada um de nós é possível uma verdade.
Até o título da obra, O Delfim, o último dos ancestrais, sem sucessor, a sua forma de estar no mundo é já uma caricatura, o livro de José Cardoso Pires surge na década de oiro do desenvolvimento português, há as remessas dos emigrantes (que têm impacto na Gafeira), num ponto distante do Sul incrementa-se o turismo, discretamente democratiza-se o ensino, espalham-se as indústrias, algumas delas destinadas a alimentar a guerra colonial, e desta não se fala na Gafeira.
Chocam-se a todo o momento a permanência e a alteração, o discreto burburinho que atravessa o largo onde se situa a pensão onde o narrador-caçador se lança como mirone: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro”. O autor não nos ilude, é escritor e será mesmo questionado por Palma Bravo quanto aos enredos que urde.
Autor meticuloso, não só nos vai falar da monografia da Gafeira, como descreve o largo, a dona da pensão, a criadita, o engenheiro que se faz acompanhar dos seus cães, Lorde e Maruja, e também Domingos, há o Regedor, e os dois padres que ajudam a distinguir, de certo modo, que já houve o Vaticano II, há o Velho-dum-Só Dente, o Batedor, o Cauteleiro, o leitor é instado a procurar a metáfora, enquanto se enfeitiça com este criador de atmosferas, os exemplos são como as cerejas: “Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada-criança, como é hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de montanha. E seios. Seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço, pelas nádegas”.
Toda uma magnífica encenação para um dos melhores livros de toda a literatura portuguesa, andará o leitor sempre numa corrediça entre o que se passou há um ano e uma história de crime e mistério, muitíssimo pouco decifrável, talvez um dia o Padre Novo debite ao escritor uma versão dissipadora.
O escritor-caçador vai conviver com Tomás Manuel e Maria das Mercês, trocam-se diálogos, aborda-se a genealogia, insinuam-se lendas, aparece o Portugal maravilhoso e mítico, estamos na Gafeira, bem marcada pelo passado, os operários partem de bicicleta para a vila, regressam à noite ao ambiente aconchegador de passado, lagoa com galeirões e alça-cus, não muito longe do oceano, aliás Lisboa não é longe.
Tomás Manuel é uma enciclopédia viva, veja-se o exemplo que ele dá sobre os dentes: “Numas gengivas pode ler-se um passado de fome ou as atenções dos dentistas; nas luzidias coroas de ouro, o aventureiro ou o emigrante; nos dentes mal distribuídos, uma infância sem cuidados. Os dentes são uma autêntica certidão para quem aprenda a decifrá-los, e o próprio Tomás Manuel acabara por fazer esse treino nas raparigas dos clubes. ‘Abre a boca, filha’. Pelos dentes, calculo os anos de fado, calculo a proveniência social, calculo a idade das tipas (não estou a gozar, palavra), calculo o raio que as parta a todas e mais a mim que ainda lhes dou confiança”.
Bebe-se muito, do uísque ao carrascão da pipa, percorre-se a lagoa à procura da caça, há conversas desbocadas, com volteios catárticos, há os cheiros locais que impõem a ruralidade do Portugal antigo, um só exemplo: “E aqui cortam-me o caminho nuvens de um fumo quente, carregado de ternura e de recordação, que vêm de um pátio à entrada da aldeia. Faço um desvio, mergulho nelas, vou dar a um forno de pão, chamado pelo maravilhoso aroma da rama de pinho a arder. Labaredas calorosas, masseiras de tábua raspada, a ladina pá da forneira e a brancura do linho que cobre a branca farinha, tudo se afoga em névoa, em alvura – e eu também. Os olhos ardem-se, e nem assim deixo de estar preso ao conforto hospitaleiro, ao segredo e às seduções que há num forno de pão”.
As conversas são como as cerejas neste passado-presente, as imagens sempre poderosas: “A aldeia foi-se aconchegando na névoa, é uma confusão de vultos a formigar em torno de uma gruta de luz – o café. Por baixo desta vigia, deste meu posto sobre a Gafeira, por baixo da loja que a dona da pensão transformou em sala de estar, e mais fundo ainda, 30 ou 40 palmos mais fundo, tenho aquedutos subterrâneos, pegadas de um tribuno ocupador que se assinava Octavius Teophilus, varão consular. Estou cercado por famílias e por casebres implantados num ossário da História. Os ciclistas e as viúvas-de-vivos passeiam sobre ele, sobre mil glórias sepultadas”. E há a sensualidade, mesmo a bestial, esta é inultrapassável pelo seu poder vernacular: “Vêm de algures, de dois cães em desespero, dois unicamente, que estão numa clareira, cercados por gente e por neblina. Há risos na assistência, e os animais, um macho e uma fêmea, arrastam-se miseravelmente pegados um ao outro pelo sexo, o cão levando a cadela atrás, às arrecuas, parando agora à espera, gemendo mais adiante – mas cada qual voltado para seu lado, sem se olharem nem se sentirem aliados pela menor recordação do amor que estiveram a viver. Dois estranhos, dois corpos que se ignoram e que se encontram comprometidos por um nervo intumescido, mais nada”.
O escritor-caçador veio antes e um ano depois, vai fazendo perguntas sobre o tal crime e o tal mistério, a casa de Tomás Manuel e de Maria das Mercês definhou (será esta uma parábola do Antigo Regime?), volta-se à lagoa num passeio que ocorreu no ano passado, a lagoa, a Gafeira, ganham tons fantasmáticos, o escritor-caçador está em modorra, insone, ainda volta ao lugar onde apareceu afogada Maria das Mercês, há sinais do amanhecer, o escritor não sairá da Gafeira sem comparecer ao festim das enguias, com tachos de cebolada a crepitar ao ar livre, vinho e concertinas. Espera, entre a noite e o dia.
Romance insuperável, ele próprio um festim da escrita, o clássico dos clássicos de José Cardoso Pires.
Mário Beja Santos