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A compaixão de braços abertos de um génio sueco da Estatística

Hans Rosling tornou-se uma personalidade de reconhecimento mundial quando num Fórum de Davos explicou a gente muito poderosa como a factualidade desmente mantras e preconceitos que mantemos acerca do desenvolvimento e dos caminhos para a igualdade. Já conhecedor que tinha pouco tempo de vida devido a um cancro do pâncreas, este popular investigador resolveu passar a escrito as suas memórias que abarcam uma Suécia que caminhou de uma extrema pobreza para um Estado social, ainda hoje farol para muitas políticas públicas, passando pela sua cooperação em Nacala, Moçambique, onde aprendeu que qualquer valor de Ciência Aplicada precisa de ir ao encontro, com o maior respeito, a cultura do outro; e como a investigação lhe mudou o olhar sobre a educação na Saúde Pública, e daí, gradualmente, como se gerou o seu pensamento revolucionário que o levou à construção da factualidade.

São de facto memórias comoventes e divertidas. Espírito otimista, o seu legado é conservado e desenvolvido sobretudo através da Fundação Gapminder, onde se procura promover uma facilmente compreensível visão do mundo baseada em factos. Fala dos seus ancestrais, logo o trabalho do pai numa torrefação, em cujo tapete ele recolhia moedas provenientes de países produtores, que tanto podiam ser o Brasil como a Guatemala ou Quénia, foi assim, pensa Rosling, que cresceu o seu desejo de entender o mundo através da sua profissão de médico. Analisa as condições de vida dos avós e dos pais, quer fazer-nos perceber como a Suécia era um país atrasado e trabalhou para se transformar num país avançado:

“A minha avó Berta contou-me que, em 1915, ela e o avô Gustavo, recém-casados, se mudaram para a sua primeira casa alugada no campo, perto de Uppsala. Tinha soalho de madeira, mas só um quarto e uma cozinha. A sua simples fonte de luz era um candeeiro a petróleo, e a minha avó tinha de ir buscar água a um poço lá perto. Ao fim de 12 anos e 5 filhos, finalmente conseguiram mudar-se para mais perto de onde Gustav trabalhava, mas a sua segunda casa também era muito pequena: uns meros 24 metros quadrados. Contudo, tinha eletricidade e água canalizada. Berta deu à luz o seu sexto filho nos três anos em que lá viveram. Ela, Gustav e dois dos seus filhos dormiam na cozinha e os outros quatro partilhavam o único quarto. A família tinha de usar latrinas exteriores nas duas primeiras casas.

Em 1930, quando se mudaram para a casa que o meu avô construiu, havia uma latrina escavada na cave. A nova casa tinha quatro divisões, todas com luz elétrica. Todavia, ainda em 1952, quando vivi uns tempos com os meus avós, a minha avó continuava a usar o fogão a lenha para cozinhar e aquecer água para lavar loiça e roupa”.

Fala da infância dos pais e dirá que a história da família o ajudou a perceber a evolução de um mundo mais vasto, como os serviços socais do Estado que revolucionaram a civilização e a cultura do povo sueco.

Hans, ao contrário dos seus ancestrais, soube o que era fazer férias em família, viu chegar uma lambreta, uma bicicleta tandem. E começou a viajar, entrou para a universidade, lembra a visita que Eduardo Mondlane fez à Suécia para angariar apoios e a conferência que fez a estudantes. “Mondlane ajudou-nos a perceber a tragédia de ter de ir para a guerra para conquistar a independência, e que a sua guerra era travada contra o estado colonizador e não contra as pessoas que tinham ido colonizar o seu país. O que ele disse ficou comigo. Começou por ir a Bangalore na Índia, já acompanhado por Agneta, com quem viveu cinquenta anos de amizade e casamento, esteve no Nepal onde voltará décadas mais tarde, é um regresso emocionante. 1978, quando estava a fazer preparativos para a sua missão em Moçambique, surgiu-lhe um cancro, tratou-o e no ano seguinte ruma para Nacala, aqui viverá o casal com dois filhos, é toda uma descrição de uma luta sem tréguas e com escassíssimos meios para tratar de doenças terríveis, é uma narrativa que prende do princípio ao fim.

“O estado psicológico de escassez generalizada ensinou-me lições sobre mim mesmo. Antes pensava que a minha vida era guiada por determinados valores inabaláveis. Acreditava, por exemplo, que não se deve matar um ladrão. Até ser levado a perder o controlo. Uma noite, alguém desaparafusou as lâmpadas dos faróis das nossas ambulâncias e roubou as lâmpadas. Essa ambulância parou de poder ser utilizada à noite. Aquele roubo encheu-me de um ódio explosivo”.

Começa a tratar das epidemias, é também parteiro, trata de fraturas expostas, sempre a matutar se estava ali para curar doentes ou para melhorar a saúde de toda a comunidade. Houve que controlar um surto de cólera, e subitamente surge uma nova doença que o obriga a investigar, dá-nos conta do trabalho desenvolvido, dos inquéritos, da investigação laboratorial, era uma estranha doença paralisante até se descobrir que tinha havido um ano de seca e ao mais pobres comiam as raízes da mandioca, havia uma substância tóxica que provocava imensas vítimas, começaram-se estudos e da investigação Hans Rosling passou para o ensino, irá tornar-se num universitário de gabarito, visitará Cuba, descobrirá supostos incorretos e preconceitos ao nível universitário.

“Demasiados estudantes partiam do pressuposto que a mortalidade infantil era sempre mais baixa na Europa do que em países asiáticos em rápido crescimento. Contudo, em 1999, a Coreia do Sul tinha menos de metade da mortalidade infantil da Polónia, o que também se aplicava ao Sri Lanka comparado com a Turquia e à Malásia comparada com a Rússia”. Os cuidados de Saúde estavam a melhorar em todo o mundo, mas gente altamente responsável pensava que era uma treta. Hans, com o auxílio da família, começa a trabalhar afanosamente na Estatística, ganha acesso às redes sociais, os seus estudos chegam à UNESCO, ao Banco Mundial e à UNICEF.

Volta a Moçambique, retorno emocionante, apoia depois uma equipa de investigação devido a um surto de ébola que surgira em Conacri e em Monróvia.

A sua presença num programa da CNN ajuda-o a passar a sua tese de que é indispensável desmistificar os factos. E no Fórum em Davos, ele provoca a atrapalhação dos grandes do mundo quando faz preguntas com o seguinte título: “Nos últimos 20 anos, a percentagem de pessoas que vivem na pobreza extrema… a) Quase duplicou; b) Manteve-se inalterada; c) Desceu quase para metade”. 61% dos delegados de dados deram uma resposta certa, era a alínea c). Iam-se pondo questões elementares, a surpresa era imensa: “Perguntar qual a percentagem de todas as crianças de um ano de idade que foram vacinadas contra o sarampo é o equivalente a perguntar qual a percentagem de todas as crianças que têm acesso a cuidados de saúde básico. Qualquer resposta que não 80% revela que o inquirido está 30 anos atrás do seu tempo.

E assim começou a mudar a compreensão dos factos que ajudam a explicar a maneira como o mundo funciona, na Suécia pobre e na Suécia rica, num hospital moçambicano e entre os poderosos que comparecem ao Fórum Económico Mundial em Davos. É um incomparável prazer ouvir este génio que contribuiu para mudar o pensamento sobre o desenvolvimento social e a Saúde Pública. De leitura obrigatória.

Mário Beja Santos

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