Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

“Número zero” é um inesperado, controverso e chocante romance de Umberto Eco, Gradiva, maio de 2015. O famoso pensador, filósofo, medievalista e semiólogo enveredou pela denúncia do jornalismo como segunda realidade ou realidade de ficção, com a aparência de uma segunda natureza melhorada. Não é de hoje nem de ontem a utilização dos meios de comunicação social para provocar chantagem, para intrigar ou para servir uma ideologia. O que releva na atualidade é a possibilidade de manipular no quotidiano usando a trivialidade, o divertimento infindável, a infantilização e a vulgaridade. Um outro pensador e filósofo francês, Gilles Lipovetsky, na obra, “O capitalismo estético na era da globalização” (Edições 70, 2014) refere que com a estetização da economia, vivemos num mundo de mercado pela abundância de estilos, pela integração generalizada da arte, do visual e do afeto na esfera do consumo. Uma porta aberta para o exercício da estupidificação, da não-verdade, do ouvir dizer para abrir caminho à calúnia – tudo com a arte do visual e a potenciação das redes sociais.
Voltemos ao romance de Umberto Eco. O narrador é um homem de 50 anos, tradutor de alemão, um perdedor profissional. É atraído a um projeto jornalístico por alguém que se chama Simei, às ordens de outro alguém que é um Comendador que pretende entrar no salão reservado da finança, dos bancos, e mesmo dos grandes jornais. O projeto jornalístico chama-se Amanhã. Simei explica: “Doze números zero, publicados aos pouquíssimos exemplares reservados que o Comendador avaliará. Uma vez tendo o Comendador demonstrado que pode pôr em dificuldade aquilo a que se chama o salão reservado da finança e da política, é provável que o salão reservado lhe peça para desistir daquela ideia; então, ele renuncia ao Amanhã e obtém uma licença de entrada no salão reservado”.
Mas Simei, como num jogo de espelhos, também está atraído por outro projeto, irá escrever por via do narrador um livro que dará a ideia de um outro jornal em que ele se esforçara para realizar um modelo de jornalismo independente, ou seja, o livro dirá o contrário daquilo que aconteceu.
Como irá, então, funcionar toda esta redação delirante? Simei estabelece as regras: “Hoje em dia, o destino de um diário é parecer-se com uma revista semanal. Falaremos daquilo que poderia acontecer amanhã, com artigos de fundo e antecipações inesperadas” e assim se inicia a sua segunda realidade, e vamos mergulhar dentro de um grupo onde há paranoicos, especialistas em intrigas e até um agente secreto. Estamos em 1992, tudo se vai passar entre abril e junho desse ano. Todo o manual de procedimentos, todo o livro de estilo jornalístico se vai desbobinando: como um desmentido poderá ser perversamente achincalhado, como por meio de insinuações uma reportagem eventualmente inócua se transforme em lodo ou numa insinuação ignóbil, como se deve divertir o leitor dando-lhe entretenimento bronco… As notícias devem ser postas do avesso, miradas e remiradas, torcidas e distorcidas. Há poluição atmosférica? Mas para quê continuar a alarmar a opinião pública, tudo isso deve ser deixado para os ecologistas.
O ideal é entreter, pesquisar o absurdo. Por exemplo, as falsas Ordens de Malta. “Existem dezasseis, não confundir com a autêntica Ordem Soberana e Militar Hospitaleira de S. João de Jerusalém, de Rhodes e de Malta. Todas têm mais ou menos ou mesmo nome”. E enumeram-se entidades falsas, com conexões bizarras, aparecem escroques retintos, tarados encartados. O importante é fazer notícias, publicar horóscopos felizes, e nas entrelinhas deixar o lodo rescender. O dirigente desta manipulação em marcha também se engana. Atenda-se que estamos em 1992 e alguém na redação lhe sugere se faça uma reportagem sobre o fenómeno dos telemóveis, ele torce o nariz, é um fenómeno que não vai durar, os telemóveis são caríssimos, ninguém quer andar a telefonar a toda a gente a todo o momento, ninguém quererá perder a conversação privada, é uma moda destinada a esgotar-se no espaço de um ano…
O zénite de todo este carrossel de loucura é dado por um redator chanfrado que julga ter alcançado um dos grandes segredos do século XX: existia Mussolini, quem foi fuzilado no Como foi um sósia. A partir da Argentina, o ditador preparara o regresso e daí o enredo tenebroso: o Gladio, as odiosas lojas maçónicas como a P2, o assassínio do Papa João Paulo I, os enredos da CIA, as Brigadas Vermelhas manobradas pelos serviços secretos, todo isto podia ser mentira ou pura invenção, até que na transmissão da BBC parecia provar que era tudo verdade.
Então o jornalista aparece assassinado, Simei manda apressadamente desmontar o jornal que iria fazer os números zeros, o narrador encontra paz e junta os trapinhos com a menina que fazia os horóscopos.
Como se escreve na contracapa do livro de Umberto Eco, “este é o manual perfeito para o mau jornalismo que, gradualmente, nos impossibilita de distinguir uma invenção de um direto”.
É a realidade da segunda realidade, fabricada para manipular, aumentar as vendas ou as audiências, para ganhar as eleições com os ardis mais ignóbeis. Um livro avassalador, cáustico, surpreendente, daquele Umberto Eco que esteve sempre à frente do tempo, mesmo quando a sua ficção se embrenhava no passado.
Mário Beja Santos