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Leituras inextinguíveis (16): Quando uma fotografia vale por mil palavras

Decorreu em 2007 na Fundação Mário Soares uma exposição com fotografias de Américo Estanqueiro, da qual se publicou um álbum. O historiador de fotografia José Pessoa apresenta-o nos seguintes termos:

“Américo da Conceição Estanqueiro nasceu em 15 de abril 1947, na aldeia de Vendas de Maria, concelho de Alvaiázere, distrito de Leiria. Quando completou o 1º ciclo, e devido às dificuldades económicas da família, empregou-se numa fábrica de lanifícios onde durante dois anos ganhou o dinheiro necessário para voltar a estudar, tendo completado o 2º ciclo, com 21 anos de idade.

Em 1968, fez a recruta nas Caldas da Rainha e a especialidade de atirador em Tavira. Pediu para fazer a especialidade em Foto-cine, o que não lhe foi concedido. Foi mobilizado no Regimento da Infantaria de Abrantes e embarcou para a Guiné em 24 de abril de 1970.

O seu primeiro contacto com a fotografia foi através do irmão António, na altura empregado da Kodak. Este tinha acabado de fazer a sua comissão em Moçambique, durante a qual ganhou dinheiro fazendo fotografias dos companheiros de armas. Este deu-lhe esse exemplo e ensinou-o a dar os primeiros passos. Parte da formação profissional do Américo Estanqueiro foi feita através da leitura de livros e revistas, pela sua iniciativa.

Começou logo a concretizar o seu objetivo durante a recruta, revelando as imagens na sua casa em Lisboa. Era tudo a preto e branco. Logo que embarcou montou um laboratório a bordo. O negócio aumentou significativamente quando chegaram ao aquartelamento na Guiné, com solicitações constantes de retratos, mais ou menos compostos com elementos locais. Trabalhava com uma câmara Minolta 6×6 cm e imprimia papel Agfa lustroso. Os rendimentos desta atividade paralela valeram-lhe umas abastadas férias em Bissau, tirou a carta de condução e enviou 85 contos para casa, graças ao pré que descansava intacto.

Um mês antes de regressar, deu todo o material ao soldado Adriano Francisco, que o tinha ajudado nos trabalhos fotográficos e vendia as fotografias (não ficava bem um furriel proceder à venda e à cobrança direta aos soldados). Infelizmente, o Adriano acompanhou as malas e veio a falecer em Bissau, vítima de uma crise súbita de tuberculose.

Américo Estanqueiro regressou a Portugal e montou uma casa de fotografia na Estrada da Damaia, que não veio a ter sucesso. Voltou à terra, e montou um estúdio fotográfico em Figueiró dos Vinhos. Em 1977, recebeu um convite para ir para a Venezuela, onde se empregou no maior estabelecimento do ramo, em Caracas. Dali saiu para arrancar com dois novos laboratórios, como responsável técnico. Porém, a desvalorização da moeda venezuelana levou-o a regressar à pátria. No regresso, abriu o Centro Fotográfico de Alcobaça. Ao tempo em que se realizou a exposição era empregado da firma Foto Industrial 2.

O que aconteceu, entretanto, aos cerca de 6 mil negativos realizados durante o serviço militar? Deitou-os os fora logo que perdeu contacto com os camaradas e considerou que se tinham tornado inúteis. Nem um sobreviveu para a amostra. Resolveu então conservar, das provas impressas em África, um conjunto de imagens que mostrasse às suas filhas a viagem que começou no Cais da Rocha”.

Agora é a minha vez de falar, esta geografia de Américo Estanqueiro foi-me muito próxima, embora em tempos diferentes. No decurso da minha comissão (1968/1970) a região de Dulombi era sossegada, guerra a sério era a uns bons quilómetros dali, no Xitoli. Havia a pressão do PAIGC é certo, raptos, intimidações, Quirafo, povoação local, foi várias vezes atacada. Daqui a Bambadinca, nesses tempos, era um simples passeio, levava-se a arma por precaução. Na intervenção em Bambadinca, uma das tarefas rotineiras que nos coube, a mim e aos meus caçadores nativos, era levar mantimentos, munições e material de engenharia a esta região, tarefa menos espinhosa não havia. Folheio o álbum da exposição de Américo Estanqueiro e tudo me parece convencional até ao porto do Pidjiquiti. Mas subitamente surge uma imagem suficientemente impressiva que me permite dizer que substitui folgadamente mil palavras.

A foto a bordo da LDG (Lancha de Desembarque Grande) “Montante” não deixa de impressionar, por um amontoado de gente encostada às malas, o sossego vem das duas armas, há pessoal placidamente encostado à amurada, o fardamento a cheirar a novo. Quem ali vai é a CCAÇ 2700. E embrenhamo-nos em Dulombi, Américo Estanqueiro mostra gente sorridente em tempos de pausa, simulações de guerra, bom material para mandar à família e deixá-la descansada. E depois surgem os sinais da guerra, imagens de minas, interpoladas com o folclore das lavadeiras de peito à mostra e nosso militar em tanga, perfilado com elementos da população local.

Há imagens dos estragos causados por um tornado, em 25 de Abril de 1971, e legenda não houvesse e bem podíamos pensar que houvera para ali um bom foguetório. Do simulacro, da atmosfera de bonomia salta-se, e com que dureza, para a tragédia: um Unimog com soldados mortos; um outro Unimog que acionou uma mina anticarro, morreram dois soldados, o que há de incomum é a máquina ferida que parece dar um urro e saltar da esquadria da fotografia; o fotógrafo escolhe o ângulo, temos agora um ferido em combate atravessado na maca, levanta a cabeça como que para assegurar a quem o vai ver que está vivo a despeito da farda esfarrapada, dos pensos e da sua face marcada por sequelas várias; e há um soldado africano morto, o fotógrafo cuidadosamente escolhe um ângulo que não escandalize mas que faz vibrar o coração, um outro soldado africano toca-lhe delicadamente no antebraço, pela expressão pesarosa parece querer ressuscitar quem ali jaz em chão térreo, sob o mosquiteiro. Não menos doloroso é uma outra fotografia de um outro soldado morto em combate, jamais saberemos se é branco ou africano, está tudo concentrado no seu corpo sofrido, a cabeça entrapada em gaze, não faltam ligaduras até aos pés, há corpos inclinados, não têm direito a mostrar consternação; até uma imagem de urnas ganha humanidade, são caixões alinhados com corpos embrulhados em mantas, alguém se despede ou procede a reconhecimento, levantando a manta junto ao rosto.

A CCAÇ 2700 substituiu a CCAÇ 2405, a que pertenceu o meu amigo Paulo Raposo, que vivenciou o desastre do Cheche, em 6 de fevereiro de 1969. A CCAÇ 2700 teve sete mortos e quatro feridos e meia centena de baixas por doença. E os tempos tinham mudado, a região já não dispunha de serenidade, como durante a minha comissão, naquele período de 1970: Dulombi sofreu flagelações, emboscadas, minas antipessoais, mina anticarro. Em 1971, a região sofria o impacto de ter o Boé e a outra margem do Corubal com uma nova agressividade. Agora a guerra era outra coisa.

As fotografias de Américo Estanqueiro são eloquentes pela vibração da paz que se quer manifestar às famílias e pela contenção de uma guerra que parecia, naquele ponto do mapa, inimaginável. Felizmente o acervo fotográfico da guerra da Guiné é vastíssimo, estou à vontade para dizer que o blogue em que colaboro, Luís Graça e Camaradas da Guiné, possui o maior acervo, as centenas de membros entregam todas as imagens que possuíam, doravante serão elemento subsidiário, mas de grande influência, para a historiografia da guerra da Guiné.

Olho detalhadamente a carga humana alojada na lancha “Montante”, sabemos que é a caminhada para a guerra, há serenidade e gravidade naquele trouxe-mouxe, precisamos de olhar detidamente as peças de fogo para perceber que aquele elenco de homens corre virtualmente perigo. É de todas as imagens de Américo Estanqueiro a que mais me impressiona, mas confesso que este álbum devia ser conhecido pelas novas gerações, a História não se põe em tribunal mas deve ser compreendida e bom seria se aproveitassem os figurantes que ainda cá estão para que os mais novos avaliassem como há memórias da guerra que não se apagam, sobretudo quando se revela que aquelas guerras não deviam ter existido, porque já vieram fora de tempo.

Mário Beja Santos

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