Quinta-feira, Abril 18, 2024
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O Horror na Literatura Negra

As histórias fantásticas (ou ditas gore, de horror, sobrenaturais) adquiriram nos dias de hoje, formas tão diversificadas e criativas, que se podem, nuns casos, identificar como fábulas poéticas, contos herdados do folclore dos povos. Noutros, como ersatz sadomasoquista permanente ao consumismo frenético em que vivemos. A mesma designação, universos radicalmente diferentes.

Num caso, adornadas com vernizes explicativos, plagiando Grimm, Perrault  ou Münchhausen, com torres e elfos, que tentam superar em beleza o mundo real com os estereótipos da ficção fantástica clássica.

Oz, Alice, Hobbits ou Épinal, animais que falam, gatos que pensam…

Outros, apenas sempiternas repetições (pouco imaginativas, regra geral) de sangue e morte, sadismo gratuito, que, pelo seu verismo brutal, bestialidade latente e perversidade das descrições, tentam despertar o adormecido terror em mentes em geral já lobotomizadas pela televisão, jogos de consola ou bloguismo.

Embora mantenham (em geral) na sua trama o jogo de superstições, lendas e temas que estão ligados a folclores primitivos, fábulas locais e tradições de períodos pré-românticos de arte, já não se limitam (no plano das emoções suscitadas) a basear-se em” formas de produzir medo”, que a Humanidade (narcotizada pela violência quotidiana) de há muito deixou para trás.

Num mundo onde a ciência já desvendou enormes áreas de conhecimento que o planeta nos oferece; onde as leis das galáxias já nos não são desconhecidas e imprevisíveis de todo; cuja geografia já foi cartografada à exaustão; onde remanescentes de crenças religiosas e sociais de um animismo pagão, passaram para a mão de sociólogos e antropólogos sociais; é fácil de entender que os vitorianos (e pudicos) descampados, cemitérios e becos obscuros da noite, já não assustam a ninguém.

A não ser que os temperem com uma dose brutal de sadismo sexual, violência explicita, torturas imaginativas e, numa palavra, tudo o que reproduza (neste tipo de evasão) o mundo impiedoso em que hoje vivemos. É que os clássicos já estão fora do prazo de validade.

Os hediondos castelos de vampiros ou se converteram em ruínas ou são resorts de luxo; lobos e vampiros só nos preocupam por estar em vias de extinção na fauna terrestre (urgente apoiar a sua preservação pelo World Wildlife Fund); ogres, zombies, bruxas, são meros temas de baile de máscaras ou do Halloween…

O escritor britânico Montague Rhodes James, ao analisar a quase insanável contradição entre a racionalidade da obra (“a veracidade do fantástico”) e a sua evidente improbabilidade interna explica: “…nas histórias de fantasmas é necessário haver uma porta de saída para uma explicação natural, mas devo acrescentar: que essa porta seja tão estreita que nos não possamos servir dela…”.1

E assim, no campo da literatura, do cinema, da música, gerou-se, pouco a pouco, uma progressiva revelação de que se impunha uma nova demonologia. Mas Verbo, Imagem & Som ultrapassaram a encomenda.

Refizeram a ficção do terror esotérico recorrendo a novas realidades2, novas correntes de imagem, enredo literário ou mitos tradicionais acabaram por se manifestar, a partir de obras de alguns percursores (quase todos de primeira água), e assim, mesmo com mercenarismo consumista a dominar tudo, foram aparecendo criações, aqui e além, dignas de admiração e respeito.

Onde, da esfera de ousadas extrapolações da ciência atual, se podem elaborar mapas infernais de terror que ultrapassam (pelo menos em originalidade) os modelos românticos até há pouco dominantes.

Pense-se no interminável horror genético, aglomerado de milhões de gemidos de sofrimento, anos a fio, que emanam, por exemplo, da “Ilha do Dr. Moreau”, de H. G. Wells…escrito em 1896. Imaginemo-lo agora, após as experiências nazis do Dr. Mengele, das dos médicos japoneses de Tojo, do delírio das experimentações médicas militares do Macarthismo da Guerra fria. Extrapolemos, em pesadelo, Dolly e os ciborgues, às clonagens que nos esperam.

Outro britânico, Arthur Machen3, transforma Londres num sussurro que causa calafrios, burgo medieval e fétido, sob a chuva, os autocarros de dois andares e os táxis da Londres dos nossos dias, deslizando soturnamente, néon cadaverizando as faces de inquietantes transeuntes…

Ainda funciona?

Ou é já a transição para o terror do telescópio e dos mísseis, do conflito nuclear, do atentado terrorista cego, das estranhas pandemias e do computador ou robot animado por uma demoníaca vontade própria?

Os temas dos séculos anteriores mantêm-se (mas adaptados ao consumismo ultraliberal): vampirismo adolescente, em guerra de clã com os da licantropia; dragões bondosos tipo Avatar; fantasmas e aparições publicitando perfumes; zombies com AVC, maldições do Além, Satã e satanismos ”menores”, deuses pagãos, doppelgänger, monstros mecânicos criados pelo homem (paradigma:

Frankenstein); aberrações quase metafísicas nascidos com poderes não terrenos (paradigma: as doentias mitologias pessoais de H. P. Lovecraft); maldições, mundos paralelos, feitiçaria (da vudu à celta), elfos e entidades maléficas (da Irlanda à África, do Haiti à India), magia negra, bailes com o Demónio….

Mas concebidos em locais, perspectivas, abordagens, até Weltanschauung radicalmente diferentes.

O êxito das obras de terror reside em, de alguma forma, tentar exorcizar, de acordo com um hábito ancestral da humanidade, os demónios, as maldições, os monstros terroríficos que nos atormentam, dando-lhes publicidade aos olhos do “vulgo”.

O filósofo alemão Siegfried Krakauer (que também escreveu uma excelente “História da Literatura Policial”) analisou em detalhe o clima da Alemanha pré- hitleriana na origem do obsessivo cinema expressionista alemão dos anos vinte e trinta (“Matou !”; “Das Kabinett des Dr. Caligari”; “Nosferatu”), como sintoma do horror da recessão económica, da inflação monstruosa, do desemprego, acoplada à neurose da derrota ”injusta” e à crise de valores da burguesia urbana, arruinada e desempregada.

Como o boom do cinema de terror, no começo dos anos trinta nos E. U. A. é o reflexo da crise de Wall Street (1929-39), com obras, não ultrapassadas até hoje, como “Freaks”, de Tod Browning (1932) ou “Frankenstein”, de James Whale (1931).

A humanidade passa de novo por um período hostil, cujos meios de esconjurar desconhece. O fantasma da guerra generalizada, a crise, o

desemprego, o terrorismo, parecem-lhe tão aterradores como o trovão ou o nascer do sol para o selvagem primitivo…

E esta inquietude, este vago terror do futuro, favorecem as obras de arte (cinema ou literatura) que exorcizem o mal, o esconjurem….

Daí, por exemplo, o êxito de “O Exorcista”, de William Friedkin (1973), na  fase de agonia da guerra do Vietnam, dos filmes de Tim Burton que se sucedem, cada vez mais tétricos…

Mas atenção. O zombie, o robot enlouquecido e sádico, a pandemia de um vírus ativado, por um cientista esquizofrénico refletem os terrores de um consumismo ultraliberal que já criou “urban myths” que lhe são próprios.

Num mundo onde Drácula ou Hyde se tornaram meros ornamentos de bailes de Halloween, o terror está num ser humano ainda vivo, depois de ter apanhado com uma bomba de um terrorista ou ter sido torturado por um marine sádico.

O terror irracional pela ciência, “profanadora dos sagrados mistérios”, tão caro aos românticos, como o casal Shelley, lorde Byron, ou Alexandre Dumas, traduziu-se no êxito de obras que o exprimam, então como agora (em pleno século XXI e muito mais probabilidades de se tornarem realidade)…

As características do robot homicida (Terminator), do mutante radioativo (remember Fukushima), do monstro aniquilador de um lar tranquilo, não antecipam, nesta época e circunstâncias, os terrores latentes de um 11 de Setembro, da crise de 2009, dos atentados e decapitações do DAESH?

Do pavor de uma nova guerra generalizada?

Mas antes de continuar, façamos uma pequena História do género, nos três derradeiros séculos.

Ao contrário do que muitos defendem (com algum fundamento), a literatura impregnada do que chamamos “horror”, atinge a estatuto de autonomia e “independência” no decurso do Século XVIII4.

Deve-a, de facto, à obra (por vezes genial) de alguns escritores e artistas plásticos, sobretudo oriundos da Europa Central, Inglaterra e em muito menos grau, das terras da Flandres e França.

Os nomes de Horace Walpole5, Ann Ward Radclyffe6, M. G. Lewis7, William Beckford, entre tantos outros, difundem, a partir da Inglaterra mercantilista e pré-industrial da época, um culto simultâneo pelos “Gothick values”, pelas viagens educativas dos filhos família ricos por Itália e Alemanha, pelo terror, macabro e sombrio, numa literatura que em simultâneo venera a arquitetura, lendas e tradições medievais (face à “feia textura” das classes “pobres”, emergentes do nascente capitalismo industrial…) e que não tardará a surgir por toda a Europa, mesmo em Portugal, com Alexandre Herculano e “A Dama Pés de Cabra” e “O Bispo Negro”, ambas passadas nos século XI, incluídas no segundo Tomo de “Lendas e Narrativas” (1851).

Mas, verdade seja dita, é com a chegada das primeiras obras do romantismo alemão primevo que os modelos de horror, em toda a sua pujança, alcançam plena maturidade, profundidade nos temas, nível estilístico e originalidade.

A visão do mundo das camadas eruditas alemãs, passa, numa transição suave (séculos XVIII e XIX), do iluminismo e do Stürm und Drang ao classicismo (Herder, Winckelmann, Schiller, Kant, Gotthold Ephraim Lessing8 e Goethe, entre tantos outros), base de uma filosofia, arte e política, suportadas por uma crescentemente próspera classe média, visando, através de uma respeitosa análise do passado da Humanidade, dos Gregos a Shakespeare, num honesto desejo de libertação racional das peias de uma sociedade absolutista, decadente, sem liberdades, criar novas fronteiras de progresso, liberdade e criatividade artística.

O Romantismo que se lhe segue, pretende ir mais longe, proclamando a inalienável liberdade do ser humano, sem peias ou restrições objectivas, senão as que o seu autor entenda colocar-lhe (Ludwig Tieck, Friedrich Schlegel, Weber, Von Kleist, Herder, Novalis, os músicos Schubert e Mendelsohn-Bartholdy).

As lendas populares (algumas horrendas), os contos de fadas, elfos ou demónios, inspiram a música, a literatura, a renovação filológica de línguas (“nacionais”) quase mortas, a pintura.

Os irmãos Grimm foram geniais, em quase todos os campos onde se moveram9, mas sem uma posição decadente ou medievalista (Byron, Mary Shelley), antes de reforço de um burguesia protegida por uma Constituição liberal (veja-se a sua posição em Frankfurt, em 1847, face aos socialistas e a à facção ultraconservadora, chefiada por Bismarck)…

Podemos dizer, sem exagero, que a literatura fantástica mais marcante nasceu na Alemanha e manifestou-se (em prosa, poesia, música, pintura) desde os primórdios do romantismo.

E daqui surgirão obras fundamentais da literatura de terror, misturando racional e irracional em bizarras e geniais combinações, na pena inspirada de Schlegel, Hoffmann, Adalbert von Chamisso, Friedrich de La Motte-Fouqué… E em pouco tempo surgem, nas pujantes burguesias que emergem e se reveem nos tempos de Napoleão, movimentos idênticos ao germânico, do Império Russo à Escócia, dos países escandinavos à arrogante pátria do mais desapiedado capitalismo: a loira Albion, de Tackeray e Dickens.

Comecemos pelo menos saliente dos países que cultivaram o género. A França.

Claro que se pode argumentar que na “Nouvelle Héloïse” (1761), Jean- Jacques Rousseau conduz a sua heroína Claire ao cemitério, onde estabelece uma longa conversa com o cadáver da sua prima Julie. E que Hugo (“L’Homme qui Rit”), Balzac (“L’Élixir de Longue Vie”), Alexandre Dumas (“Les Mille et Un Fantômes”, “Histoire d’ Un Mort, Racontée par Lui-Même ») até Georges Sand (“Contes Rustiques”) fazem ocorrer, em obras suas, cenas de horror sobrenatural, deletério, passeios por cemitérios, com fantasmas torturados, demónios evanescentes em climas opacos e purulentos, seres deformados, mórbidas e decadentes paixões. Decadentes, sim.

Que, na geração seguinte se acentuarão com Guy de Maupassant (“L’ Horla”, “La Morte”), Villiers de l’ Isle Adam (“Fleurs de Ténèbres”), Anatole Le Braz (“Histoires de L’ Ankou”), mais tarde ainda com Jean Lorrain (“Narkiss”) ou Marcel Schwob (“Les Embaumeuses”).

Mas em todos eles ressalta uma retórica pomposa, uma ironia que parece dizer (sou um racionalista: não acredito nestas tretas…), uma falta de sinceridade que lhes retira muito mérito.

Só muito mais tarde a geração dos franceses Claude Seignolle, Marcel Béalu, André de Lorde, assim como dos belgas Jean Ray, Michel de Ghelderode, atingirão real valia.

Mas é no Reino Unido (com destaque para a Irlanda) e nos E.U.A. que o género crescerá em maturidade, atinge a grandeza, o rasgo de génio a pujança que o afirmarão para os séculos vindouros.

Existem mesmo percursores10 como o proteico Daniel de Foe (1661-1731), autor de grandes clássicos entre os quais o aterrador “Mrs. Veal”.

Aliás a história começa com a publicação do “The Castle of Otranto” de Horace Walpole, em 1764, cujo enorme sucesso faz surgir sem demora as pertinentes sequelas: os romances ditos “góticos”. De Mrs. Ann Radcliffe (“The Mysteries of Udolpho”); “The Monk” de 1796, a obra-prima de Matthew Gregory Lewis; “Melmoth, The Traveller”, do irlandês Charles Robert Maturin; “The Last of the Barons”, de Clara Reeves; “Vathek”, de William Beckford e até, já nos distantes idos de 1847: “The Castle d’Ehrenstein”, de G. P. R. James.

Na geração que se segue, britânicos (e alguns americanos de grande valor) mudam o estilo, os temas de preferência, a profundidade psicológica das personagens a variedade e criatividade da trama.

Os irlandeses Fitz-James O’Brien e Joseph Sheridan Le Fanu; os americanos Edgar Allan Poe (este Homem genial destacava-se em todos os géneros, da ficção científica ao crime e mistério, da poesia ao humor…), Nathaniel Hawthorne, Charles Brockden Brown, Washington Irving, Henry James (autor duma das maiores obras-primas do género, “Turn of the Screw”).

O escocês Sir Walter Scott, inspirador reconhecido por vários grandes escritores: Wilkie Collins, Charles Dickens, Lorde Bulwer-Lytton; Bram Stocker, William de Morgan. Destaco os gigantes Robert-Louis Stevenson (“Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, “Will”, por exemplo), Rudyard Kipling (“The Ghost-Rickshaw”), James Grant, R. H. Benson, que demonstram a sua inspiração retratando horizontes de matriz muito mais vasta11.

Já adiantado o século XX, a tradição mantem-se, graças a nomes como (sem ser exaustivo), Vernon Lee, Frederic George Loring, Clemence Dane, Maurice Baring, Algernon Blackwood, E. F. Benson, Arthur Machen, Lord Dunsanny e, sobretudo, Montague R. James. Deixo para o fim (embora o melhor da tradição do relato fantástico seja inteiro mérito seu), a inumerável série de escritoras que marcaram mais de três gerações das épocas vitoriana, eduardiana e dita ”entre-duas-guerras” e que tantas obras primas escreveram, como Mrs. Gaskell, Mrs.Oliphant, Mrs. Henry Wood, Mrs. Molesworth, Catherine Crowe, Marion Crawford, George Eliot, Miss Braddon, Mrs. Edith Wharton, Amelia B. Edwards, May Sinclair, Ann Bridge, Virgínia Wolff.

Aprofundando, melhorando o domínio da escrita, criando temas ousadamente inéditos, o século XX dar-nos-á um sem número de valores reais do género, deslocando para os Estados Unidos a hegemonia incontestável do romance (e do filme). Como H. P. Lovecraft, cuja inegável genialidade gerou diversos “apóstolos”: Augustus Derleth, Brian Lumley (este britânico), Frank Belknap Long, Clark Ashton Smith, Donald Wandrei, Fredric Brown, William Harvey, Robert Howard. Não podemos deixar de referir também os ingleses William Hope Hodgson, Margaret Emma Irwin, Hester Holland, os belgas Jean Ray e Thomas Owen, os franceses Maxime Chattam e Franck Thilliez, os produtos E.U.A. do nacional consumismo Reagan: Stephen King, Graham Masterton, Carl Jacobi, Shirley Jackson, Clive Barker.

Podemos talvez, agora, atrever-nos a começar a desenhar um primeiro esboço (dar vida e consistência ao “horror”) do que imaginamos “fantástico” (na literatura, pintura, cinema…)

Jorge Luis Borges manifestamente exagera quando o faz: “para mim, diz-  nos 12 ,toda a literatura é essencialmente fantástica, dado que a ideia de literatura realista é falsa; dado que o leitor sabe que o que lhe contam é uma ficção”.

De tanto ser abrangente, Borges nada adianta para o conhecimento da questão.

Ele, que tem obras, dentre as melhores que produziu, situadas dentro destas fronteiras, não hesita em classificar, por exemplo, Ramon Gomez de la Serna com escritor fantástico…

Mas filiar as origens do género, como tenta fazer, no religioso, no sagrado e no mundo do mágico, tem a meu ver, cabimento. Considerar que há esplêndidos textos (adulterados ao longo da história, como sabemos, por inúmeros bárbaros castradores de bafientas ortodoxias) nas várias Bíblias e Evangelhos ou nas Mil e Uma Noites (versões A. Galland ou R. Burton, lá está…), concedo-lho sem dificuldade.

Mas a partir dessa, digamos, legitimação ab origine , considerar que toda a ficção escrita é fantástico ou é uma boutade ou uma fuga a uma resposta séria. Numa palavra, um meio de não avançarmos um passo sequer na caracterização deste género literário (ou cinematográfico…).

Ortega y Gasset disse sempre que para compreender um conceito era necessário conhecer a sua etimologia ; Alcibíades,13 que “é por intermédio de comparações que se chega á verdade”.

Talvez por essa via consigamos ir um pouco mais longe….

O maravilhoso mundo angelical, descrito pelo teósofo Immanuel Swedenborg é “literatura fantástica”, ou livro–base de um religião mística ?

Para o autor, sem dúvida que não era ficção…

Os símbolos sempre presentes na obra de Borges /sempre ele): os espelhos, as espadas desembainhadas, os labirintos, as máscaras, são uma alegoria  que lhe é particularmente cara e banha de uma forma “fantástica” a sua obra (poética e em prosa), as consequências da sua cegueira anunciada ou problemas que a psicanálise poderia resolver?

Quando se pensa no descrença generalizada dos concidadãos de Jules Verne ou H. G. Wells, sobre a concretização futura de submarinos transoceânicos, viagens espaciais ou televisão, podermos classificar as suas obras de fantásticas ou, como o futuro provou, de antecipação profética ?

Tudo depende da opinião (positiva ou pessimista) que tenhamos sobre as possibilidades infinitas de desenvolvimento da espécie humana.

Alguns livros de John Dickson Carr, um de Agatha Christie, quase toda a obra de G. K. Chesterton (tidos universalmente como “policiais”) são, afinal, do mundo da ficção dita fantástica? E se sim, porquê?

E “Peter Pan” ou “Through The Looking Glass”14, literatura para crianças? Howard Philips Lovecraft está entre os cinco melhores autores de fantástico do século XX.

Ou escreveu uma espécie de ficção científica cosmogónica, onde Deuses sediados em distantes galáxias ou em guaritas, no fundo dos oceanos terrestres, tentam (com uma futilidade oligofrénica, aliás) torturar, aniquilar, escravizar os pobres humanos (e até procriarem com eles…) ?

Cinquenta furos abaixo, o mesmo se poderá dizer da mais conseguida série televisiva do género (X-Files), de Chris Carter, que durou mais de doze anos e onde ocasionais episódios (fora do mainstream do folhetim…) tentavam legitimar o seu carácter fantástico-policial com histórias de vampiros, lobisomens, serial killers de poderes estranhos, etc.…

De tudo isto decorre o método que escolhi e talvez não seja o pior.

O núcleo primevo deste género literário (artístico, fílmico…) baseia-se no medo da morte e da natureza incontrolável de certos poderes da natureza que a comunidade humana não compreende e (ou) não sabe controlar.

Nas religiões mais antigas, que a História nos vai revelando, nascem constantemente mitos (em geral violentos e quase sempre arbitrários) que decidem, em última análise, da felicidade ou sofrimento dos pobres humanos. O Universo (da Deusa-mãe suméria ao culto mariano católico de Fátima e Lourdes) é um feixe de forças do Bem e do Mal, lutando sem fim, num  eterno conflito no meio do qual o ser humano rasteja, lutando pela sua sobrevivência.

Veja-se a Bíblia, esse soberbo romance sensacionalista (Umberto Eco dixit) que fervilha com uma coleção interminável de monstros, demónios, de Lúcifer a Shaitan (encarnação última do mal absoluto), sátiros incestuosos, assassinos de comunidades inteiras, discos voadores em chamas, dragões, violadores e assassinos.

No livro de William Hallahan, “The Search for Joseph Tully”, de 1974, diz-nos uma das personagens que o fantástico não tem de depender do linguajar confuso de religiões e filosofias, nem de mitos ou explicações esotéricas. Mas apenas de um facto que desafie as explicações racionais, pelo menos em aparência

Mas os nossos dias criaram um novo género de horror, genuinamente contemporâneo, que ultrapassa e supera até, meras atualizações (tão comuns em escritores, autores de bestsellers ou êxitos de bilheteira, mas medíocres em inspirações) que clonam, copiam e fazem reviver o conde Drácula e Lobisomens, Ancient Evils e vagos arcanjos, aparentemente de péssimo feitio…

Já se não tenta criar histórias “inexplicáveis” ou “assustadoras”, mas sim criações que suscitem o nojo, o medo animal, a exploração do que que possa haver de sádico na espécie humana…

Começa (e de forma explosiva, em livros, TV, cinema, BD, até música de conjuntos “Góticos” ou “Heavy Metal”) a surgir, da segunda guerra mundial para cá, uma nova forma de fantástico, nos temas e na sua “invenção”, baseada no sensato pressuposto que, com uma melhor consciência crítica de que seus avós, o leitor/espectador já não se comove ou aterra facilmente15

No mundo atual, o terror impregna-nos, cola-se ao nosso quotidiano, às estruturas sociais em que nos movemos, cerca-nos a cada momento, em situações de que a habituação e o conformismo induzido nos levaram a aceitar como naturais, cúmplices e vitimas em simultâneo.

Este novo terror mais “racional”, menos emotivo que o que dominou na

As histórias adolescentes de tribos de vampiros e lobisomens feitas para um público adolescente banalizaram-se, os jogos de computador banalizam o assassinato, o extermínio de raças inteiras, o culto do “sangue e tripas”…veja-se  o caso Breivick (na pacata Noruega)… literatura gótica ou na romântica, ligou-se intimamente à ficção científica16, que lhes proporciona o necessário distanciamento (agora temporal) do espectador/leitor, técnicas ainda não existentes, novos simbolismos e recursos especulativos.

Tem percursores. O terror de H. G. Wells, com parte da humanidade tornada em gado (“Time Machine”); o angústia de uma concretização (em curso) das distopias de G. Orwell e Aldous Huxley (“1984”, “Brave New World”); o pavor de uma sociedade esquizofrénica maniqueísta, do “Omega”, de Robert Sheckley; o terror acusador e implacável do tipo de sociedade (na aparência apenas, a melhor “arma” da ficção de horror) liberal e permissiva em que vivemos. E já somos os zombies, os licantropos, os espectros, sem sequer o sabermos.

Carlos Macedo

Notas

1 “Ghosts and Marvels”, Oxford University Press, 1924, Ed. V. H. Collins.

2 Efeitos especiais em cinema, televisão, jogos de computador, enredos que se excedem, dia após dia, na transgressão das mais elementares regras da decência, respeito por religiões ou filosofias, etnias ou sexos….

3 Galês (Caerleon), 1863-1947.

4 Tenho consciência das aterradoras aventuras escritas em épocas anteriores, da Epopeia de Gilgamesh (2200 A.C.), da Odisseia de Homero (800 A. C.), da “aparição” que Plínio, o Jovem relata, em carta a Sura e do próprio velho Testamento (anterior em parte, pelo menos), com batalhas contra monstros aterradores e hostis, saídos dos maiores terrores ancestrais da humanidade, monstros indefiníveis e demónios, encarnação derradeira do mal, do pavor para além da própria morte, do dragão do profeta João Evangelista ao Leviatã. Sem falar de Satã, múltiplo como a tentação, cruel como a peste, perverso como o negro da morte…

4 Tenho consciência das aterradoras aventuras escritas em épocas anteriores, da Epopeia de Gilgamesh (2200 A.C.), da Odisseia de Homero (800 A. C.), da “aparição” que Plínio, o Jovem relata, em carta a Sura e do próprio velho Testamento (anterior em parte, pelo menos), com batalhas contra monstros aterradores e hostis, saídos dos maiores terrores ancestrais da humanidade, monstros indefiníveis e demónios, encarnação derradeira do mal, do pavor para além da própria morte, do dragão do profeta João Evangelista ao Leviatã. Sem falar de Satã, múltiplo como a tentação, cruel como a peste, perverso como o negro da morte…

A De Nugis Curialum (1193) de Walter Map, a Historia Regis Anglicorum (1196), e os seus cadáver sanguisugus (vampiros); Divina Comédia (1310, de Dante Alighieri), com as descrições horrendas dos estratos infernais; as visões de pesadelo dos pintores Bosch e Brueghel; a lenda do Golem, de origem judaico-Chassim, do século XII; o lobisomem Bisclavret, de Marie de France; o necromante Fausto, da Renascença alemã, levado ao teatro pelo espião elisabetano Christopher Marlowe; o Macbeth, Titus Andronicus e The Tempest, de William Shakespeare; os sonhos premonitórios de morte e danação, alucinações, os inquietantes segredos de Apuleio a S. Alberto Magno, do Dr. Dee dos Elisabetanos aos Vrykolakas gregos são sinais anunciadores do que será a literatura de horror dos três últimos séculos da História da Humanidade.

5 Autor de a primeira novela do “Gótico” inglês (“The Castle of Otranto”, 1764, “The Mysterious Mother”, 1768), foi igualmente o criador do famoso conceito de serendipity e o primeiro defensor (quase cento e cinquenta anos antes de Josephine Tey, o fazer, com mais engenho, em “The Daughter of Time”) da inocência do rei Ricardo III, no assassinato dos seus sobrinhos, legítimos herdeiros do trono, na Torre de Londres. Foi feito Conde de Orford em 1791.

6 Sobretudo “The Mysterys of Udolpho”,1794; “The Italian”, 1797.

7 “The Monk”, 1796; “The Castle Spectre”, do mesmo ano.

8 Que “Nathan der Weise” e “Die Erziehung des Menschengeschlechts”, de Lessing exprimem magistralmente.

9 O romantismo alemão atinge tal diversidade e riqueza, que se distinguem várias escolas, totalmente originais: a de Iena (Tieck, Wakenroder, irmãos Schlegel, Novalis, Schleiermacher, Jean Paul Richter); Heidelberg (Goerres, Clemens Brentano, Von Arnim, irmãos Grimm, Caroline von Günderode, Schubert); Berlim (La Motte-Fouqué, Chamisso, Hoffmann, Fichendorff, Kleist, Werner, Müller); a escola de Schwabenland (Uhland, Möricke, Heine, Lenau) e muitos, muitos outros…

10 E não estou sequer a pensar no espectro de Macbeth, em Shakespeare, no génio medieval Chaucer, e tantos mais…

11 Aliás, Jorge Luiz Borges (“Nouveaux Dialogues avec Osvaldo Ferrari”, 1985), cita Paul Valéry para dizer que a literatura (toda) tem a sua origem no fantástico, dado que o género literário mais antigo é a cosmogonia, o que vem a dar no mesmo.

12 “Nouveaux Dialogues » avec Oswaldo Ferrari – Presses Pocket, Paris 1985

13 “O Banquete”, Platão, Ed. Século.

14 Respectivamente, de Sir James Barrie e Lewis Carroll.

15 Decorreram duas guerras mundiais, um Vietnam, vários genocídios, do Sudão ao Camboja, da Líbia ao Iraque, da Síria à Nigéria, uma nova “guerra de Espanha” nos Balcãs, pandemias, sismos e tufões de dimensão inédita e imensos serial killers (muitos quase crianças), com mais tempo de antena que as estrelas do espetáculo…

16 Lembremos a série, hoje de culto, “Alien” (I, II, III, IV); os filmes “Christine” e “The Thing”, “Halloween” de John Carpenter; “The Sixth Sense”, de Shyamalan; “Dead Zone”, “eXistenZ”, “Dead Zone”, “The Fly”, “Videodrome”, de David Cronenberg; “Hellraiser”, os “Terminator”, etc.

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