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Grandes nomes da literatura de crime e mistério (1) Ruth Rendell

I Ruth Rendell

BARBARA VINE (Pseudónimo)

(BARONESA RENDELL OF BABERGH)

                                          (Londres, Reino Unido, 1930-2015)

Uma jornalista (1948-1952) que aprendeu (“profession oblige” …) a escrever sempre bem, concisa e atraentemente. Mas que viu constantemente recusados os seus escritos pelas editoras, até tentar a ficção policial. Assim, para bem deste género, deu início a uma carreira que a coloca entre as dez maiores Senhoras de sempre no campo da literatura policial. E que se inicia com “From Doon with Death”, em 1964.

Desde então, obteve o Prémio da Crime Writers Association, de 1976, pelo seu livro “Demon in my View”, o Arts Council National Book Award, em 1980, por “Lake of Darkness”, dois Edgars da Mystery Writers of America (“New Girl Friend”), a Silver Dagger, em 1985, por “The Tree of Hands”, a Gold Dagger, por “Live Flesh” e, sob o pseudónimo de Barbara Vine, outras duas Gold Dagger, uma, em 1987, por “A Fatal Inversion”, outra, em 1991, por “King Solomon’s Carpet”.

Ainda em 1991, é-lhe atribuída a Crime Writer’s Association Diamond Dagger, no ano anterior, recebera o Sunday Times Literary Award. Recebe ainda o Edgar Poe Award, o Prix de Roman d’Aventures, de 1982, o Palle Rosenkrantz.

Em 1996, é-lhe outorgada a qualidade de DAME (Commander of the British Empire) do Reino Unido, pela rainha. Em 1997, obtém o Pariato, na qualidade de Baronesa Rendell of Babergh. Na Câmara dos Lordes, votava trabalhista.

Nada mau, obrigando a dar inúmeras voltas no túmulo, de pura inveja, à maldosa assassina de Hercule Poirot (Rendell já é traduzida em vinte e oito línguas).

Lady Ruth Rendell tem uma escrita que nos faz observar o mundo de uma forma completamente diferente, plena de empatia lucidez (macabra ou deprimente q.b.).

Única escritora policial que tive o privilégio de conhecer e com quem conversar, achei-a de uma simpatia inigualável.

A sua maior qualidade (que muito raros escritores conseguiram):  a habilidade de fazer com que o banal se nos mostre como extraordinário; com que que vejamos que todos os frutos da terra, mesmo os mais repulsivos, tem facetas positivas.

Há na sua prosa uma espécie de poesia subjacente, um respeito pelas fragilidades que o meio social e certos traumas psicológicos impõem a alguns seres humanos, que converte o (seu) quotidiano ficcional num mundo que nos traz à memória Charles Dickens.

Mas um Dickens retratista de outra época bem mais cruel: a neoliberal de Margaret Thatcher, com computadores, rave parties, velhos empobrecidos, modestos reformados da segurança social, eco terroristas, sem abrigo, drogados, frívolos ícones da TV e do cinema. Mostrando o individualismo feroz dos anos oitenta, revelado aos nossos olhos com um profundo sentido terno, poético, irónico, quase sempre temperado, em simultâneo, com horror gótico e inquietante…

Sem alarde, sem estilismos especiosos.

O Chief-Inspector, depois Superintendant Reginald Wexford, da polícia Criminal de Kingsmarkham, no Sussex, é o protagonista do ciclo de novelas policiais de grande valor.

Criou (entre outros) um ciclo centrado num polícia, o mais popular e a meu ver, o mais conseguido dos heróis do ROMPOL[1].

Uma figura que aparenta ter algo de Jules Maigret (não é verdade, supera-a em verosimilhança…): o Chief-Inspector, depois Superintendant Reginald Wexford, da polícia Criminal de Kingsmarkham, no Sussex (Rendell vive, ela própria, em Suffolk).

Com ele, esta notável romancista (porque o é, de facto) criou um ciclo de novelas policiais de grande valor, em todo o sentido da palavra. E extremamente bem aceite pelos leitores e crítica[2], o que quase sempre é inconciliável.

Reginald Wexford, como membro do CID de Kingsmarkham, no Sussex, é um híbrido de rural (a cidade é pequena) e de urbano (as empresas de alta tecnologia fogem de Manchester, Liverpool ou Londres).

Acompanhando-o, no dia a dia, convivemos diariamente com o seu Adjunto, o Inspetor Michael Burden, o seu Sargento, o compassivo e humano Camb, a sua mulher Dora, figura adorável, magistralmente descrita e caracterizada, a sua filha, tonta e vivendo (em reality show) de e para lugares comuns, casada e mamã (convertida aos prazeres do consumismo descoberto pela odiosa Thatcher), a sua outra filha, Sheila, célebre (e milionariamente bem paga estrela de cinema e televisão), fascinante, sedutora, bonita. E a ecoterrorista e progressista da família.

Tudo isto num cenário idílico (ainda…) de pequena cidade inglesa, com um rio que a atravessa, jardins por tudo o que é sítio e uma bela igreja antiga.

Reg é um cinquentão avançado, de rosto irregular e assimétrico, como que talhado em madeira. Bastante corpulento, sem ser gordo. Nasceu e foi criado em Pomfret, pequena aldeola não longe de Kingsmarkham. Padece, em partes iguais, de excessivos colesterol e lucidez. Nasceu e foi criado em Pomfret, pequena aldeola, não longe de Kingsmarkham. Adquiriu e mantém, por gosto, uma cultura geral, muito acima da média da sua profissão. Mas que não exibe. Grande leitor de Anthony Trollope (enfim, são gostos…) é politicamente um liberal, razoavelmente progressista e mais compreensivo para com as idiossincrasias da humanidade, do que dois ou três Maigret, alérgico a preconceitos ou ideias fixas.

Michael Burden, um jovem viúvo, seu adjunto, é um reaccionário puritano e severo, que adoraria voltar aos tempos do “cat’o’nine tails” e à pena de morte. Mas, marcado por uma profunda necessidade de afectos, viúvo, casado de novo com uma mulher mais nova (e profundamente mais liberal que o marido), começa por fim a modificar-se. Visceral amigo e admirador de Wexford, invejando-o, mas sendo demasiado honesto para o apunhalar profissionalmente, passa cada investigação em discussões, por vezes muito violentas, com ele. Pois, como é óbvio, a sua concepção ideológica de crime e criminoso, difere totalmente da de Wexford.

Os problemas do divórcio de sua filha Sheila, a favorita de Reg; do segundo casamento de Michael (viúvo consolável) e sua modificação radical na forma de vestir (até passa a usar jeans…), comportamental e até ideológica, por influência da jovem mulher com que casou; o crescimento das netas de Reg e os problemas da mãe, bastante mais tonta que a irmã; a chegada dos atentados terroristas a Stowerton (que, por engano, quase matam Reg); as lutas ecológicas e de cariz racista, tudo isto cria um fresco imperdível da Inglaterra atual.

Aliado a um conhecimento profundo das tragédias humanas e sociais, ou meros comportamentos desviantes, que levam, por vezes, ao crime, mesmo de morte (analfabetismo, lesbianismo, eonismo, chantagem, particularidades fisiológicas, pedofilia, ecoterrorismo, vidas despedaçadas por ancestrais tirânicos, passados ocultos, muito, muito mais…).

Com Wexford, temos uma “comédia humana”, anos setenta-noventa, digna de um Dickens com formação policial…

Wexford sou eu”, diz Rendell.

Nós, leitores, acompanhamos com deleite o desenrolar lento e claudicante do inquérito, sob a direção tenaz de Reg, que, pouco a pouco, vai reconstituindo o “puzzle” sempre muito complexo, dos crimes que, por sorte, lhe foram atribuídos…

Rendell interessa-se muito menos na descoberta do culpado do que nas suas motivações, nas razões que levaram a acontecer o que aconteceu.

A banalidade das relações familiares quotidianas, uma ida ao supermercado ou à tabacaria, o casamento num meio pequeno-burguês, a bisbilhotice de um reformado idoso, fechado em casa, alimentando-se a bolachas baratas, os problemas da segurança urbana, tudo é pretexto para a construção de soberbas análises da vida na Inglaterra dos oitenta.

Pelo seu lado mais sombrio, é certo.

Mas desposando os temas atuais á medida que vão surgindo, atingindo por vezes, um subtil sentido de tragédia grega, que não é fácil de conseguir…

Os romances da série Wexford-Burden são típicos “procedural detection books”.

Que, ultimamente, até chegaram a situações de serial killing (“Kissing the Gunner’s Daughter”, 1992).

Diogenes Verlag - Barbara Vine
Barbara Vine é a “segunda Ruth”, a partir dos anos 80, com romances de suspense muito sofisticados e subtilmente cruéis.

A “segunda Ruth”, Barbara Vine, apresenta romances de suspense muito sofisticados e subtilmente cruéis, a que chama “mistérios psicológicos” (melhor que Who done it será Why done it).

Inovando na temática e na abordagem, em inusitadas “novas” formas de apresentar o policial, como “Live Flesh”, por exemplo, levado ao cinema pela mão de Pedro Almodóvar ou “Dark-Adapted Eye” (também “cinematizado”) onde o mais profundo dos sentimentos humanos é dissecado com sageza.

Esta faceta foi a sua favorita, a partir de fins dos anos oitenta, embora os editores preferissem ver os livros publicados como Ruth Rendell, muito mais do agrado dos leitores.

Criou ainda um terceiro pilar da sua obra, com temas de temática psicopatológica (“A Judgement in Stone”, “Lake of Darkness”), com imenso interesse.

Os estilos são distintos, sempre elegantes, sempre geradores de inquietação. Pessoalmente, gosto das obras que escreveu na pele de Barbara Vine.

Aliás, há mesmo (o que é absurdo, por a ultrapassar em muito, a meu ver…) quem a compare (como Barbara Vine), a Patricia Highsmith.

O que Ruth não merece.

Podemos é dizer que, na segunda geração das grandes Damas do policial britânico, ela é a mais merecedora da distinção, ombreando (atrever-me-ia a dizer, superando) outros grandes nomes como Minette Walters, Ellis Peters, P. D. James, Patricia Cornwell ou Anne Perry[3].


[1] Romance policial, na expressão expressiva de Fred Vargas, de que também falarei.

[2] Ou melhor, os membros votantes da sociedade em decomposição, a que o Reino Unido foi deixado chegar, aceitando, sem reservas, Thatcher e Johnson, desregulamentação da banca e bolhas imobiliárias, Farages e submissão humilhante às diretrizes políticas dos norte-americanos.

[3] OBRAS PUBLICADAS

FROM DOON WITH DEATH, 1964

TO FEAR A PAINTED DEVIL, 1965

VANITY DIES HARD, 1966

A NEW LEASE OF DEATH, 1967

WOLF TO THE SLAUGHTER, 1967

THE SECRET HOUSE OF DEATH, 1968

THE BEST MAN TO DIE, 1969

A GUILTY THING SURPRISED, 1970

ONE ACROSS, TWO DOWN, 1971

NO MORE DYING THEN, 1971

MURDER BEING ONCE DONE, 1972

SOME LIE AND SOME DIE, 1973

THE FACE OF TRESPASS, 1974

SHAKE HANDS FOREVER, 1975

A DEMON IN MY WIEV, 1976

THE FALLEN CURTAIN AND OTHER STORIES, 1976

A JUDGEMENT IN STONE, 1977

A SLEEPING LIFE, 1978

MAKE DEATH LOVE ME, 1979

MEANS OF EVIL AND OTHER STORIES (WEXFORD’S), 1979

THE LAKE OF DARKNESS, 1980

PUT ON BY CUNNING, 1981

THE MASTER OF THE MOOR, 1982

THE FEVER TREE, 1982

THE TREE OF HANDS, 1982

THE SPEAKER OF MANDARIN, 1983

THE KILLING DOLL, 1984

AN UNKINDNESS OF RAVENS, 1985

A WARNING TO THE CURIOUS, 1986

THE DARK – ADAPTED EYE, 1986 B.V.

LIVE FLESH, 1987

HEARTSTONE, 1987

TALKING TO STRANGE MEN, 1987

A FATAL INVERSION, 1987 B.V.

THE HOUSE OF STAIRS, 1988 B.V.

THE VEILED ONE, 1988

THE BRIDEMAID, 1989

GOING WRONG, 1990

GALLOWS GLASS, 1990 B.V.

KING SOLOMON’S CARPET, 1991

THE COPPER PEACOCK AND OTHER STORIES, 1991

KISSING THE GUNNER’S DAUGHTER, 1992

THE CROCODILE BIRD, 1993

ASTAS’ S BOOK, 1993 B.V.

NO NIGHT IS TOO LONG, 1994 B.V.

SIMISOLA, 1994

BLOOD LINES, 1995

IN THE TIME OF HIS PROSPERITY, 1995

THE KEYS TO THE STREETS, 1996

THE BRIMSTONE WEDDING, 1996 B.V.

ROAD RAGE, 1997

A SIGHT FOR SORE EYES, 1998

THE CHIMNEY SWEEPERS BOY, 1998 B.V.

HARM DOLE, 1999

GRASSHOPPER, 2000

PIRANHA TO SCURFY, 2000

THE BLOOD DOCTOR, 2002

ADAM AND EVE AND PINCH ME, 2001

THE ROTTWEILER, 2003

THIRTEEN STEPS DOWN, 2004

N.B. OS LIVROS COM “B. V.” NO FINAL APARECERAM SOB O NOME DE BARBARA VINE

Carlos Macedo

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