Sócrates, o grego, dizia-nos que “o amigo deve ser como o dinheiro cujo valor já conhecemos antes de termos necessidade dele.” E também nos ensinava que “é preciso que os homens bons respeitem as leis más, para que os homens maus respeitem as leis boas.” Parece-me que Sócrates, o português, aprendeu algumas lições do seu homónimo helénico, todavia, desconsiderou outras tantas.
Antes de me crucificarem, alegando que estou a participar no linchamento turbulento – e ausente de culpa formada – de José Sócrates, alerto que nada me move nesse sentido. Como sempre afirmei, respeito o princípio da presunção de inocência não só como um preceito processual-penal, mas também como uma máxima ético-vivencial.
Porém, isso não me impede de, no regaço interior do juízo moral e ético, ter uma apreciação negativa acerca de muitos dos factos confirmados na Operação Marquês e admitidos pública e notoriamente pelo homem classificado, há sete anos para cá, de inimigo da Nação.
Ora, nem a pessoa mais distraída do mundo consegue evadir-se ao caso Sócrates, mesmo que, como eu, se recuse a ler a acusação deduzida pelo Ministério Público ou a compulsar as sete mil páginas do despacho de pronúncia e não-pronúncia proferido pelo juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC); não esquecendo as tentativas fúteis de escapar à audição de parte das escutas que foram partilhadas, em violação gritante do segredo de justiça, pelos órgãos de comunicação social.
Efectivamente, a atmosfera está tão carregada de informação e contra-informação que, no meu entender, uma pessoa de bom senso, abrindo a possibilidade racional de haver sido contaminada pela toxicidade ambiente, deve fugir a toda a brida de urdir qualquer opinião sobre esta matéria.
Ainda assim, aqui estou eu a contestar o que o bom senso me indica e a conjugar algumas letras e palavras sobre o assunto, porquanto o apelo vicioso é demasiado intenso.
Apesar de ser advogado, não vou comentar o processo de um ponto de vista técnico, visto que desconheço o que consta dos autos e ignoro a fundamentação de fundo do veredicto instrutório sobre as questões que, ao ouvir o Juiz Ivo Rosa na televisão, mereceram a minha precária concordância ou a minha inquieta discordância; e houve de ambas!
Prefiro salientar, no entanto, que os tribunais não o são, com as devidas adaptações à natureza dos processos, sem a presença de juízes, procuradores, advogados e oficiais de justiça. Um tribunal em funcionamento precisa destes agentes, e, sem eles, não se pode verdadeiramente reputar de órgão de soberania.
Isto conduz-me à reflexão de que tanto a comunicação social quanto o comentariado não podem fazer um bom trabalho se analisam um caso como este sem relevar o papel dos advogados. Se não fossem os causídicos que representam os arguidos, meus colegas de múnus profissional, a queimarem horas de sono e a prescindirem de momentos de vida em família para responderem às necessidades “alimentícias” de um monstro que, eufemisticamente, se apelida de megaprocesso, com um sólido grau de certeza, a decisão instrutória seria bastante diferente, sobremaneira diferente (fosse quem fosse o juiz de instrução).
Cogitação que me obriga a afiançar que os únicos que podem expressar um pequeno sorriso vitorioso, se há vencedores neste processo que ainda vai a meio, esses são os mandatários dos arguidos, nunca os próprios arguidos, porque todos ficaram manchados de algum modo ou maneira. Recorde-se que, aconteça o que acontecer, José Sócrates vai a julgamento e que, por exemplo, Ricardo Salgado operou transferências de milhões para contas alheias sem justificação minimamente verosímil.
Por outro lado, a Justiça portuguesa, enquanto instituição, não pode fantasiar que a nódoa purulenta e amarelo-mostarda da incompetência não lhe toca. Os erros foram imensos: José Sócrates nunca deveria ter sido preso preventivamente para se iniciar uma investigação; optar por um megaprocesso, ao invés do seu desdobramento (dentro dos limites legalmente admissíveis), foi o típico insistir numa fórmula falhada, esperando resultados distintos; e explorar mediaticamente o processo, construindo a narrativa da inapelável condenação de um ex-primeiro-ministro por crimes de corrupção, embrenhou-nos num labirinto sem saída, num dédalo destruidor da confiança dos cidadãos, seja qual for o conteúdo dispositivo do último e derradeiro acórdão.
De facto, com a excepção acima enunciada, não me parece que a pintura seja elogiosa para algum dos enleados nesta trama judiciária. Quando Miguel Sousa Tavares, armado em defensor de Ivo Rosa, rasga a camisa para escudar a tese de que Carlos Santos Silva é o corruptor, não entende que o topamos a léguas? Na realidade, o problema não é dele; é de quem o põe a falar de circunstâncias que envolvem a perseguição criminal de um familiar: Ricardo Salgado.
Sinceramente, depois de tantos anos de Sócrates para aqui e para ali, de tanta dessensibilização mediática e histerismo popular, só há dois aspectos deste processo que me preocupam: que venha a ser encerrado, porque os eventuais crimes prescreveram (e não estou a criticar a existência de regras de prescrição), e que o triunfo final seja daqueles que, nestas ocasiões, da esquerda à direita, procuram arruinar o edifício de garantias que enforma os direitos penal e processual-penal.
João Salvador Fernandes