Sexta-feira, Março 29, 2024
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Uma história do Diabo (1.ª parte)

 Nos trinta anos da morte de Joaquim Jorge Duarte, figura pioneira dos ambientalistas portugueses e europeus, alvo de estudos, teses, crónicas, além de personagem  literária, aqui se oferece aos leitores, extraída de um dos meus livros ( Pernes,Terra Antiga do Bairro Ribatejano II vol), uma história verídica deste grande antifascista acontecida aquando da fuga de 89 pides da prisão de Alcoentre, na noite de sábado para domingo de 29 de junho de 1975. «Que se passa?/ Aqui andou mãozinha de reaça/ Deixaram fugir mais oitenta e nove!», como cantou na altura Fernando Tordo, sem medo às  palavras portuguesas e à música contestatária. 


«Nesse verão quente de 1975 tinham deixado fugir da prisão de Alcoentre cerca de 89 pides. O país revolucionário escandaliza-se. Fazem-se canções jocosas alusivas ao facto. No dia da fuga cheguei de licença a Pernes. Na taberna, o Diabo não continha a indignação. Afinal que revolução era aquela!  E neste grito impotente parecia já ver outra vez pides por todo o lado. No país dos cravos, numa nova ditadura, ali na taberna, a nadar na água suja do rio, a saltar sebes e hortas.

Mal entrei, nem me deixou sentar «Já sabes dos pides?!» a ferver do mesmo modo, fiz-me desinteressado «Já. Enche aí um copo com umas pataniscas…». O Diabo olhou-me em silêncio, interdito, depois disparou «Pataniscas?! os pides fogem e o que tens para me dizer são pataniscas? Mas então o que é que a tropa anda a fazer, hã ?! Foi p´ ra isto que andei a lutar trinta anos? Pataniscas, porra pràs pataniscas!» Deixei-o desabafar, consolado daquela ira honesta e refugiei-me a um canto já sem fome. Metido em pensamentos sombrios daqueles que nascem dos copos vazios, quando dei por mim era noite. Foi quando, o Diabo se aproximou da mesa em que eu emborcava o resto de um de morangueira, a olhar distraído o jogo da sueca da mesa ao lado, e me disse « Anda ali à sala. A Idalina vai arranjar-nos qualquer coisa que se coma.». Descartava-me, quando ele me arrastou para a sala interior e intimou-me «Vamos caçar os pides que fugiram!». Já a alinhar o guardanapo na mesa, extasiado com o cozido que rescendia, desviei «Tá bem, amanhã passo por cá…» e fui-me servindo. Nem me ouviu « Comemos, e depois vou ali contigo ao posto da GNR falar com o Cabo Agostinho. Falas na qualidade de membro do MFA e requisitas o jeep e quatro soldados. Enquanto tratas disso eu venho para baixo e organizo aqui os camaradas».

Neste passo é que eu acordei do petisco, começando a sentir sede «O quê?», e bebi um gole. E ele cheio de paciência « Os pides de Alcoentre fugiram cá prà região. Viram-nos perto da estação dos comboios em Mato de Miranda e na estrada da Azinhaga». Esta notícia tranquilizou-me. É que já começava a pensar que aquilo era a sério. «E eram muitos?» – questionei, tornando à travessa do cozido, a julgar que aquilo não passava de mais uma das eternas conspirações do Diabo. Este, suspicaz com o tom da minha pergunta, a medir-me, elucidou « Logo se vê! Apanham-se os que forem! Trazes a costureirinha?». Ainda sem ligar, voltei ao sardónico «E como vamos distinguir os pides dos outros passageiros que esperam o comboio?». Nem queria acreditar na pergunta « Porra, então eu não conheço um pide? Até p´lo cheiro, gaita! Olha-me este! Acabámos de comer e vamos ali ao posto requisitar o jeep e os soldados. Os camaradas estão avisados. E não te esqueças da costureirinha… Quem tiver caçadeira, já sabe. Vai ser melhor que ir à caça aos coelhos!». Já a medir uns queijinhos d´azeite ( «d´azeite não tenho, só de leite» Joaquim Jorge, dixit), fiz uma última tentativa «Ouve lá ó Diabo, não leves a mal mas venho do quartel. Estive de serviço… Vamos que é tudo um alarme falso?».  Ia explicar mas um freguês veio chamá-lo da entrada. Perguntava se também podia ir. «Já falamos» lançou o Diabo, e a cabeça do outro desapareceu. A notícia alastrara. Aproveitei e falei-lhe do perigo daquela aventura. Que os pides podiam estar armados. De ser noite. De alguém sair bem ferido ou morto, embora no fundo continuasse a pensar que aquilo não passava dum falso boato. Quem é que os tinha visto? Não sabia. Um caixeiro viajante vindo de Santarém, que comera ali, contara que o ouvira numa taberna de S . Vicente do Paúl a alguém da Azinhaga ou Pombalinho que sabia doutro que avistara os pides a caminho de Mato de Miranda onde se alapardaram  frente à estação num pomar de laranjeiras, coisa e tal. Esta insustentável leveza das fontes fez-me crer que tudo aquilo ainda era mais incerto que a fábula do homem das calças pardas. Nesta altura o Diabo nem já ligava ao cozido indo e vindo a dar ordens aos camaradas que se juntavam à porta da taberna. Numa destas vezes, sem voltar a sentar-se, pôs-me a mão no ombro e comandou sem espinhas «Levas dois camaradas e requisitas o Cabo e o jeep. Eu trato aqui da malta!» 

À porta da taberna uma estranha patuleia de «camaradas», espingardas a tiracolo, foices e gadanhas encabadas no ar, marmeleiros em punho, rodeados de alguns curiosos, todos conscientes da alta missão do «poder popular», da aliança povo/MFA, e de caçar pides estreinotados fugidos da prisão, ou deixados fugir que era o mais certo, da de Vale de Judeus, que pelo nome não perca, junto a Alcoentre, escândalo de que deviam estar a rir-se os fascistas e a direita reacionária preparando o regresso da ditadura, era sentimento comum que a revolução dos cravos corria perigo e como na ária do Corro a Salvarti, que nenhum conheciadeviam agir já que mais ninguém o fazia. Nomeado pelo Diabo, um destes sans coulotte foi comigo à GNR. Dar a entender que acreditava naquilo não podia, por razões óbvias. Mostrar cepticismo seria ofender o Diabo e impedir que a guarda nos ajudasse. Optei pelas meias tintas. Fosse do que fosse, do prestígio incomensurável à época do Movimento das Forças Armadas em cujo nome eu actuava neste caso, como oficial do exército junto da GNR, corporação no inconsciente da qual pesava viva a culpa de colaboração com o fascismo, fosse ainda do momento político conturbado daquele verão quente, ou tão-só não querer desrespeitar em mim um superior hierárquico, o Cabo de imediato cedeu o jeep, fez questão de ir nele com três soldados para nos ajudar, e convidou-me a sentar junto dele à frente. Abismado com tanta facilidade, voltei com os guardas e o jeep a juntar-me à restante tropa fandanga ou guerrilha civil à porta da taberna. O Diabo trepou para uma camioneta requisitada a um vizinho moleiro, com a carroceria atulhada com a patuleia ruidosa e alegre mais do que convém aqui dizer, exibindo as armas, e na noite abafada daquele verão, sob uma lua jucunda a alumiar no céu, para onde subia a fumarada espessa dos escapes, partimos. ( continua).

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