1975. Portugal é uma bomba prestes a explodir. A guerra civil espreita. Finais de junho, 89 pides fogem da prisão. «Os pides desceram p´la corda alegremente/ Os guardas andavam passeando em Alcoentre», ri-se na rádio a canção. «Nem mais um soldado para Angola!», gritam as paredes. «Ninguém há-de calar a voz da classe operária». Nem o MRPP, acrescentam os revisionistas. «Portugal é do povo, não é de Moscovo!», brada-se este mês na Fonte Luminosa. «Toda a Justiça é uma Justiça de classe», explica Marx. Em Santarém, Azinhaga, perto da estação de Mato de Miranda, parece que alguém avista os fugitivos. «A esquerda não esquece os tubarões que a torturaram/ Que merda!», continua indignada a canção na telefonia. Da taberna de Joaquim Jorge Duarte, o Diabo, em Pernes, uma guerrilha popular armada sai a dar caça aos pides. Vai alta a lua na mansão da morte. A «longa noite fascista» ainda não terminou. Nem a Justiça de classe. Isto é que vai uma crise!
(Leia a 1.ª parte desta crónica AQUI)
«P´lo caminho ia meditando nas reviravoltas da História. Os perseguidores de ontem eram os perseguidos de hoje. É evidente que tinha a certeza que aquela aventura nocturna de caçar pides, como acontece às dos gambozinos, terminaria sem qualquer resultado. Não obstante, talvez para me justificar, ocorria-me um poema do Brecht que fala da dialéctica do real e uso inadequado do nunca.
A coluna, seguindo pela EN3, oblíquou a certa altura à esquerda para S. Vicente do Paúl, com destino à estação ferroviária de Mato de Miranda, perto da Azinhaga, terra do escritor José Saramago, nesta altura ainda não nobelizado, pouco menos que obscuro poeta e director de jornal. Mais tarde, nos seus romances e crónicas, Mato de Miranda aparecerá como lugar donde parte para Lisboa um menino pobre de quem o mundo, um dia, vai ouvir falar.
À nossa passagem, com o ruído dos motores e falazar incessante dos homens, assoma às portas gente estremunhada. De quando em vez, no afã de descobrir pides pelo caminho, um ou outro elemento da guerrilha julga avistar suspeitos na penumbra dos alqueives por onde escorre um luaceiro pálido acirrando o canto dos grilos. Deslindado o falso alarme, retomamos a marcha com o Cabo a lançar-me olhares de preocupação, já ciente da embrulhada em que estava metido.
Ia alta a lua. A descer, por uma estrada rodeada d´azinheiras e murta, chegamos à passagem de nível de Mato de Miranda. Cinquenta metros para norte, estava a estação alumiada por uma luz mortiça, reflectida nos rails metálicos, frios. À espalda, as casas brancas da povoação adormecida. Ao redor, a folhagem dura das laranjeiras coberta duma poalha luminosa. Em frente, do outro lado da linha, resguardados do talude saibrento por um muro baixo, caiado, quintais de ervagem alta e árvores sombrias, recortadas num céu muito nítido, calmo.
Alcançado o objectivo, o Diabo, rápido, dividiu a hoste em duas, chamando a si o comando duma, dando ao Cabo a outra, cujas deviam operar separadas de cada lado da linha. A mim, encantado com a dispensa e um impedido às ordens, nomeou-me oficial de ligação entre ambas, responsável pelo controlo da estrada junto aos semáforos, vigiando daí a estação, taludes e anexos. Lanternas varrendo a noite, armas em posição de tiro, marmeleiros a jeito para batida de valados e moitas, a montaria começava!
Lentos, como os astros a lucilar no céu, começaram a arrastar-se os minutos. Prevendo longa e inútil espera, convidei o camarada para nos sentarmos junto às cancelas, e ofereci-lhe um cigarro. De tempos a tempos, o universo e o canto dos ralos era cortado ao meio pela passagem rápida, sem paragem, por ser aquela uma estação secundária, dum comboio fantasma, uivo lancinante primeiro, alongando-se até desaparecer, depois.
Regressado à terra, voltava-me o pensamento dos pides. Quase meio século de crimes, torturas, famílias destroçadas, medo e denúncias, ainda não terminara com a fuga desta gente tenebrosa e arrogante. Outro comboio. De mercadorias como o anterior. Para desentorpecer ergui-me e comecei a vaguear pelo talude. Os rails luziam húmidos da cacimba da noite. A norte do cais d´embarque avistei três vultos a atravessar a linha e conjecturei que as tropas fechavam o cerco, dando fim à caçada inútil. Já não era sem tempo.
Quem imaginaria que de Alcoentre, a mais de meia centena de quilómetros, alguém fugisse para estes andurriais desertos onde um estranho é mais notado que o amola-tesouras a soprar a ocarina!? Na mesma altura, vindo da povoação, avistei o resto da turbamulta descoroçoada do Diabo, armas em bandoleira, altercando alto, puxando o cigarrinho. Era notório que o ardor inicial tinha esmorecido. Menos no Joaquim que me disse logo: «Os cabrões estão bem escondidos mas não escapam!» ( Dois pides certa vez na taberna: Queríamos almoçar. O que é que tem? E o Diabo logo a topá-los : Assim de repente, a esta hora, só se for uma «Açorda p´ra cabrões» especialidade da Casa. De trás da orelha...- in Apócrifos). E eu, para o consolar: «Alguns dos teus homens passaram há bocado, ali ao pé da estação, para cá», informei. «O quê?» inquiriu ansioso. «O quê o quê?» perguntei redundante. «O que é que disseste?» tornou a questionar, circunvagando o olhar pelos homens em redor, a certificar-se que algo não batia certo. E sem me deixar repetir: «Eram os filhos da puta! Vamos a eles!».
Um momento interditos, a olharmos o Diabo sem atinar, começamos todos a correr pelo talude acima, a entrar nos quintais, a pisar pepinos, tomates, abóboras, ou qualquer coisa assim mole, numa ânsia de apanhar pides, salvar a revolução em perigo, naquela noite de fantasmas à solta, ameaça de mais fascismo, medo, tortura, e morte.
Dentro em pouco estalava rija fuzilaria num quintal próximo. Um pide, cercado numa vala, despira a camisa e agitava-a em jeito de rendição. Dois outros, obrigados pelo gesto deste, levantaram-se inopinados dentre um couval, braços no ar, roupas sujas e rasgadas, toada rouca e aflita, antes que uma bala perdida lhes limpasse o sarampo. Rostos desfigurados, a guerrilha em torno, aos gritos, armas apontadas, vai não vai para os despachar desta para a quinta dos calados, remetidos aos anjinhos e a Salazar.
Aproximei-me para ver o aspecto dum pide. Nenhum traço em especial. Rosto igual a qualquer homem, descontando o pânico em que estavam. Fiquei, depois desta experiência, a temer mais este bípede humano, capaz tanto de descobrir a vacina que salva como ser o carrasco da própria espécie, sem a mais leve consciência de culpa. Pior, com a vantagem de não poderem ser tratados com o remédio fatal que deram aos outros, sob o risco de quem o fizer entrar no campo de acção daquilo que nega. Pior, mil vezes, sabendo como sabíamos que jamais seria feita justiça de tanta morte e desgraças cometidas ( a Justiça neste país ainda tem, e terá por muito tempo, nos genes recônditos, dois inquisidores de trezentos anos de Santo Ofício, e pelo menos um Rosa Casaco de cinquenta de fascismo).
Dilema terrível que todos, e o Diabo em particular, estávamos naquele momento a enfrentar, indecisos, mãos cravadas na coronha das armas. Mas não, Abel desta feita não foi Caim, e, com mais dois ainda, foram amarrados e entregues à GNR que os conduziu ao posto de Pernes. Dois dias permaneceram engaiolados. Ao terceiro, vieram-nos buscar em carrinhas celulares que a população, em fúria, ia virando com os pides lá dentro, murros na chaparia e gritos de cólera.
Novamente presos, não tardou que certa justiça de pratos ávidos a quem lhos encha, que para aí inclina, desse a liberdade a todos. Um, nomeado acima, refugiado em Espanha, assassino do general Humberto Delgado (o General Sem Medo, herói dilecto do Diabo), vinha amiúde a Portugal com indiferença das autoridades deixando-se fotografar frente à Torre de Belém, herói também ele de um certo Portugal retrógrado dito de brandos costumes, adormecido mas não extinto, longe disso.
Aqui se suspende esta história verídica, que não a mais espantosa, do Diabo, cujo levou desta terra muita da sua capacidade de luta e o segredo dos Molhinhos de piri e piri.»
Obs. Foi o máximo aquele 1975. Prec, Copcon, Grupo dos Nove, Suvs, «O povo é sereno. É só fumaça!», com rajadas de metralhadora no Terreiro do Paço etc. E, já no final, o «25 de Novembro», com o assalto nocturno, chaimites, morteiros, bazucas, dos Comandos ao quartel da Ajuda, da PM (Copcon).
Estive lá, e juro-vos que os videojogos actuais são uma pasmaceira ao pé daquilo. Dois mortos deles, um nosso. Depois desse «confronto final» que acabou com aquele disparate do «POVO É QUEM MAIS ORDENA», é que começou esta boa democracia dos corruptos (políticos, banqueiros, autarcas, presidentes de clubes e correlatos etc.), que nos governou até hoje, e promete. Não é mau, mas não se compara. Felizmente que a extrema-direita não tardará a chegar de novo ao poder e talvez os pides regressem ( como sopa no MEL, até por que estão implícitos na «Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital», aprovada agora sem oposição de nenhum partido no Parlamento). Ainda espero reviver aqueles bons velhos tempos. «Onde estais doces ilusões/ Que fazieis bater os corações?». Ah, que saudades!
Mário Rui Silvestre