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As envergonhadas e os desenvergonhados

Um dos livros mais duros que li sobre vergonhas e ações vergonhosas tinha e tem por título “As Benevolentes”. Foi escrito por Jonathan Littel e relata as memórias de um ex oficial nazi que participou nos momentos mais sombrios da recente história mundial. Uma confissão das desumanidades cometidas por seres que elevaram o mal e a maldade aos extremos. O título remete para as deusas Eríneas, perseguidoras e vingadores, também conhecidas por Eumênides, ou Benevolentes, o oposto do que era a sua essência.

Vem esta introdução a propósito do clamor que se levantou a propósito dos habituais desacatos dos adeptos do futebol feito por um coro que tem arrepelado os cabelos e coberto a cara de lama e cinzas gritando: «Que vergonha!» e: «O que dirão de Portugal lá fora?»

Os envergonhados da final da Champions League no Porto são o correspondente das “benevolentes” do romance. Nem eles estão envergonhados, nem os nazis foram benevolentes. Ou então os” envergonhados” não sabem o que é vergonha e começam por ser descarados fiteiros (uma especialidade futebolística).

Vergonha, neste caso, se alguém poderia senti-la, seria a dos adeptos dos dois clubes ingleses, mas nem eles entendem os seus comportamentos como vergonhosos e, visto de fora, sem paixões clubistas, nem fizeram mais do que a dos adeptos dos clubes portugueses (presumo que dos outros Estados também) que se deslocam para os estádios como manadas de gado enquadradas por campinos, neste caso corpos especiais de polícia, que urram tanto como os ingleses e na mesma língua e que se reúnem nas praças das suas cidades em tronco nu e danças tribais.

Espanto-me com estes afloramentos de dignidade pátria ofendida vindos de políticos e dirigentes da bola. Os dirigentes do “mundo do futebol”, pelo que se lê na comunicação especializada, antes dos desacatos e bebedeiras dos seus adeptos, deviam ter vergonha dos escândalos da sua atividade que, é público, inclui subornos, proxenetismo, fuga de impostos, lavagem de dinheiro, aproveitamento de negócio em proveito próprio, comissões por fora…

Umas bebedeiras de adeptos e umas cenas de “bulha” de gangues de suburbanos não são vergonha nenhuma. E têm a diferença essencial, a seu favor, de serem atos cometidos à luz do dia, em público e não como as negociatas manhosas dos “envergonhados” feitas às esconsas em bares e escritórios insonorizados e com jagunços de segurança privada à porta.

Quanto aos políticos assumidos agora como envergonhados: Envergonham-se os excelentíssimos por pouco e por acontecimentos irrelevantes, digo eu. Portugal não ficou mal na fotografia, não ficou coberto de opróbrio pelas cenas de rua na Ribeira do Porto com figurantes e atores ingleses, a vergonha que os atuais políticos portugueses deviam evitar era a da emigração em massa de portugueses para o estrangeiro por não terem aqui condições para uma vida digna, a vergonha da emigração dos anos 60 e dos anos da “Troika”. Era a vergonha de Portugal ter mantido a mais longa ditadura europeia, de 1926 a 1974, dos 48 anos de fascismo (ou regime aparentado), a vergonha de uma guerra colonial sem fim nem finalidade, a vergonha dos bairros da lata nas cinturas das grandes cidades, a vergonha da percentagem de analfabetismo durante dois terços século xx, a vergonha da situação de menoridade das mulheres portuguesas, a vergonha de uma polícia política como a PIDE, a vergonha da acumulação de riqueza em meia dúzia de famílias que viviam da corrupção do Estado Novo. Era a vergonha das condições degradantes dos bairros da Sé e das Fontaínhas, adjacentes à Ribeira. A miséria filmada por Manuel de Oliveira em Aniki-Bóbó. Aí é que estava a vergonha!

Estas é que eram e são as vergonhas que deviam incomodar os políticos portugueses. O mundo da bola não causa vergonha em parte nenhuma do mundo: é um facto assumido que esse é um mundo sem vergonhas e que não abona a credibilidade de quem quer que seja envergonhar-se do futebol, ou pelo futebol, como ninguém se envergonha pelo chão sujo de cascas de amendoins e tremoços das tascas!

Resta a hipocrisia. Os que clamam pela vergonha, os envergonhados pátrios e patrioteiros nunca assistiram e estiveram envolvidos nos comportamentos de marinheiros (no caso americanos) de tripulações de navios de esquadras de regresso aos Estados Unidos e desembarcados no Cais do Sodré. Presumo que esses políticos sejam todos meninos de primeira comunhão e de andarem pelo mundo pela mão de tias e mãezinhas. Mas o mundo não é o desses meninos a cheirar a lavanda e a cueiros, é o mundo dos Texas e dos Jamaicas, do vomitado, que se encontra em todas as cidades portuárias, de Londres a Marselha, passando pelo Porto e por Lisboa.

Sobre as falsas vergonhas, recorro ao genial Bocage para que as Nize e os Alcino não se façam tão envergonhados e se libertem do peso da virginal figura da Pátria no estrangeiro:

SONETO DE TODAS AS PUTAS

Não lamentes, ó Nize, o teu estado; Puta tem sido muita gente boa; Putissimas fidalgas tem Lisboa; Milhões de vezes putas teem reinado

e

SONETO DE TODOS OS CORNOS

Não lamentes, Alcino, o teu estado, Corno tem sido muita gente boa; Cornissimos fidalgos tem Lisboa, Milhões de vezes cornos teem reinado.

Um velho coronel, de falas duras, mas coração mole, depois de uma rusga a prostitutas com quem discutiu os pormenores do métier e a sua relação com os soldados, declarou aos seus militares: A cultura serve para discutir com putas!

Carlos Matos Gomes

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