Sexta-feira, Abril 19, 2024
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De Medina a Moscovo

Basta estarmos ligeiramente atentos ao mundo que nos rodeia para sabermos o que acontece a quem se opõe a Vladimir Putin. Muitos morrem; outros, de uma forma ou de outra, são alvo de campanhas de descredibilização e de destruição das suas vidas pessoais e profissionais.

            Como é evidente, os conceitos de democracia, de liberdade, de direitos fundamentais e de direitos humanos, na mátria de Pyotr Chaadayev, o proibido autor das Cartas Filosóficas, são meras referências intelectuais e linguísticas, sem aplicação prática quotidiana, disponíveis para o regime neoczarista russo os mencionar quando emerge alguma necessidade oportunista. 

            A título de exemplo confirmatório, recentemente, não mais do que dois dias, três, fomos informados de que as organizações fundadas por Alexei Navalny, émulo do actual Imperador Putin, foram consideradas ilegais e conotadas com acções terroristas. Bem nos dizia Karamzine que, na Rússia, o poder absoluto é “o fundamento mesmo do seu ser…”

            Contra este enquadramento, em que a liberdade é vista como um vírus pior do que o SARS-CoV-2, pouco há a fazer, mas não podemos ficar confortáveis ao descobrirmos que Portugal, por intermédio da Câmara Municipal de Lisboa, contribuiu para esse statu quo de medo e perseguição, potencialmente, colocando vidas em risco.

            Escrevo-vos, como já devem haver compreendido, acerca das notícias que trouxeram ao conhecimento público que o Município de Lisboa forneceu, à Embaixada da Federação Russa, dados pessoais de manifestantes anti-Putin, com a agravante de alguns gozarem já da nacionalidade portuguesa.

            No entanto, a desprezível mácula adensa-se, como um micélio voraz em expansão, ao percebermos que diversos órgãos de comunicação social foram alertados para estas pérfidas circunstâncias em Janeiro deste ano, mas, por motivos tristemente sondáveis, decidiram guardar a notícia para um momento temporal cercano das eleições autárquicas.

            Todos nós estamos cientes de que, nesta lusa-praia, várias instituições – por natureza, neutrais ao confronto político – entram no jogo mesquinho do combate politiqueiro, abdicando de princípios e valores universais. Apesar de não ser novidade, isso não pode afastar a justa crítica e uma relevante inquietação: se não pudermos contar com o jornalismo, estamos tramados…

            Como todos já se aperceberam, esta partilha de dados pessoais, de um modo tão automático e burocrático, confirma aquilo que quem conhece o ramo da protecção de dados costuma afirmar: a despeito da existência do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), falta-nos uma cultura de salvaguarda deste direito fundamental consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; e nunca haverá essa sensibilidade, seja de entidades privadas ou públicas, enquanto a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) não beneficiar de meios de fiscalização robustos que lhe permitam exercer o poder sancionatório que lhe foi atribuído.

            Ora, não me vou pôr a fazer análise jurídica sobre um caso cujos traços desconheço em profundidade; porém, creio que estamos perante uma violação de dados com contornos que perigam direitos e liberdades de pessoas singulares, o que se traduz em incumpridos deveres de reporte, quer aos titulares dos dados, quer à autoridade de controlo (a CNPD); em acréscimo, parece-me que poderão ter sido consumados crimes de desvio de dados, uma vez que, ao contrário do que inicialmente foi veiculado, não há qualquer previsão legal que obrigue a tal divulgação em casos de protestos públicos.

            Se esta esquadria de factos é delicada e sobremaneira preocupante, a sua importância explode em magma incandescente ao ser desvelado que, desde Março, Fernando Medina e o Governo de Portugal já haviam sido inteirados destes acontecimentos, não podendo alegar a ignorância que – pelo menos, quanto ao Presidente da Câmara de Lisboa – integrou o seu “condoído” pedido de desculpas.

            Deliberadas fugas à verdade e omissões convenientes por parte de responsáveis políticos, num contexto de indesmentíveis ilicitudes cometidas por instituições públicas, são fundamento para, com inabalável propriedade, se demandar por consequências políticas. Isto é tão óbvio e notório que não merece discussão! E mais óbvio e notório se torna quando a aludida contextura implica uma colaboração, seja dolosa ou negligente, com um Estado que atenta contra a vida de seres humanos.

            Todavia, pretendendo espetar-nos na lapela uns crachás inscritos com as palavras “somos parvos, somos lorpas”, surgiu a malta do spin do Partido Socialista a querer, com toques de alquimia tosca, transformar em ouro a porcaria que ostensivamente está à frente dos nossos olhos.

            Num cenário como este, se não é admissível apelar ao princípio da accountability, então, caros leitores, não há enredo ou conjuntura que nos valha, e bandalheira será, de hoje em diante, o vocábulo apropriado para descrever toda e qualquer actividade política!

            Para terminar, depois de tantas medinofilia e eslavofilia massificadas pelo carneirismo habitual (José Luís, como estás?), desejo apenas aconselhar à não repetição das opiniões de Inês Pedrosa. Além de esta senhora não ser o melhor oráculo político para preencher o buraco negro e profundo causado pela ausência de pensamento crítico, se o fizerem, arriscam-se a passar umas vergonhas…

João Salvador Fernandes

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