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O indesculpável esquecimento da presença feminina na guerra colonial

Palavras e Silêncios, Memórias femininas da presença militar no Ultramar, coordenação de Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina, Âncora Editora, 2020, é uma coletânea a todos os títulos original, juntam-se 32 testemunhos cronologicamente diferenciados, percorrem a longa duração da presença de mulheres de militares em pontos salpicados do Império, desde a paz ao conflito armado.

A guerra e a presença dos militares nas parcelas do Império aparecem na historiografia e na literatura em que a dominante é o masculino: como se preparou e encarou a missão; como observou o território e qual foi a natureza da defesa e resposta que lhe coube pela roda do destino; as memórias que ficaram, as cartas que escreveram, as saudades inexauríveis da mulher, da noiva, dos filhos, dos pais, dos amigos; e, por vezes, a descrição crua da emboscada, da flagelação, da operação; e os encontros, as saudades, muitas décadas depois. Do testemunho no feminino pouco se fala, ora, pelas mais variadas razões, foram omnipresentes na educação dos filhos, na companhia que por vezes deram aos seus maridos, nas lembranças que retiveram seja na retaguarda seja em lugares próximos ou exatamente no conflito.

Quem organizou Palavras e Silêncios teve o esmero de entender que estas memórias se tornam ainda mais vigorosas por serem testemunhos pela ordem cronológica do nascimento das participantes, abrem pistas para as circunstâncias políticas e a condição da mulher na sociedade ao longo da vastidão de muitas décadas, facilitam o entendimento do quadro ideológico em que se moviam e como apresentam as suas narrativas. As coordenadoras passaram a escrito as conversas gravadas e não tiveram dificuldade alguma em aquilatar o valor patrimonial destes testemunhos. E o leitor rapidamente se aperceberá da singularidade de tão valioso contributo que se vai juntar ao que mais recentemente se tem publicado sobre a mulher e a guerra por onde os portugueses andaram até ao fim do Império.

Chegar a Goa perto do fim da II Guerra Mundial, entrar num mundo completamente desconhecido, o deslumbramento dos casamentos hindus, o acaso brutal que tudo mudou: “Quando o meu marido adoeceu eu tinha 29 anos, fui sua cuidadora durante 37 anos, até à sua morte. A minha filha faleceu antes da morte do pai. A vida tratou-me mal, deve-me muito, mas agora já é tarde para me pagar”. Alguém acompanha um marido que cumpriu cinco comissões no Ultramar. A primeira foi em Angola, em 1963, no Ambrizete. “Fui ter com ele e levei comigo a nossa filha mais nova, que ali frequentou a escola primária e concluiu a quarta classe”.

Findo o Império trabalhou no apoio aos chamados retornados, confessa a sua satisfação em se ter mantido solidária. Maria Matilde nasceu em Campo Maior em 1930 e viveu doze anos em África, foi professora em Angola e Moçambique. “Sinto falta de estar com alguém que tenha vivido comigo esta realidade em África. Foi um período da minha vida emocionalmente muito intenso, mas tinha saúde e era nova. Temos de novo Goa, quem testemunha fala do seu marido prisioneiro. “Os meus filhos têm idades muito próximas, a mais velha tem, agora, 65 anos, o segundo 64, o terceiro 63 e a mais nova 58. Quando viemos para Portugal, na véspera da invasão de Goa, a mais pequenina tinha pouco mais de um ano. Assim que o meu marido chegou, como o seu vencimento de militar era curto para uma família tão numerosa como a nossa, achei que devia ir trabalhar e tive a oportunidade de o fazer numa escola na Buraca. A minha vida fora muito agradável na Índia, pois estava na minha terra, junto da minha família. Sofri e chorei muito, tive horas difíceis, mas adaptei-me depressa à nova terra. Quando casei, não pensei que algum dia viria viver para Portugal. Imaginava que ficaríamos para sempre em Goa. Mas a vida correu de outra forma”.

Investigação de Sara Primo Roque, Edições Pasárgada

Há quem tenha partido para o Império casada de fresco, e depois regressa e é surpreendida pelas notícias dos massacres em Nambuangongo, deu aulas, permaneceu em Luanda depois da independência. Conta-se uma história tocante, tem a ver com a partida precipitada de centenas de milhares de pessoas. Foi a Porto do Saco, onde estavam pequenos montes de objetos calcinados, era o local de embarque das famílias portuguesas que ali deixaram os seus pertences. Guardo em casa alguns objetos que ali recuperei, inclusive fotografias, que trouxe com a ideia de devolver às pessoas a quem pertenciam. Não consegui localizar ninguém”.

As mulheres portuguesas e a guerra colonial, por Margarida Calafate Ribeiro, Edições Afrontamento

Há quem casou por procuração e depois religiosamente numa parcela do Império, foi o caso de Luísa Natália. Depois veio a guerra de Angola. Quando o marido foi para uma zona considerada muito perigosa, regressou a Luanda com o filho. Em fevereiro de 1973, o marido parte para nova comissão, em Montepuez, em Moçambique, instala-se em Porto Amélia com os dois filhos mais novos. “As dificuldades cimentam o amor, ajudam à união da família. Sempre fui uma mulher positiva, nunca perdi a esperança de que tudo iria correr bem, principalmente para os nossos filhos. Quero expressar o respeito enorme que tenho pelas crianças destes países e pela vida sofrida da maioria da população. Lídia Madalena acompanhou o marido em Santo António do Zaire, mais uma professora, fala comovidamente de todo o apoio que as unidades militares davam à população civil. Há quem tenha muitos militares na família, é o caso de Maria Theolinda: “O meu avô paterno, o meu pai, o meu irmão, o meu marido, um dos meus filhos, o meu genro, dois dos meus cunhados, o avô do meu marido e vários primos todos foram ou são militares”. Viveu em Mafra, na Tapada, frequentou o Instituto de Odivelas e sempre que possível acompanhou o marido em missões na Europa, em Angola, na Guiné e em Timor. “Atualmente, já há muitas mulheres militares, mas, no passado recente, apenas algumas enfermeiras paraquedistas participaram ativamente no esforço da guerra. Desde a época dos Descobrimentos, que a mulher portuguesa teve um papel bem ativo no acompanhamento militar dos seus maridos, quer rumando para longínquas terras, quer educando, quer gerindo filhos e património”. Há quem nos faça refletir sobre o casamento e a partida apressada, iniciara-se a guerra, foi o caso de Maria Isabel que acompanhou o marido, tenente-médico da Força Aérea, e foi para o Negage. Hoje ri-se na sua ingenuidade, tinha apenas 21 anos, o marido chegou a casa com duas enormes lagostas. “Não soube o que fazer com aqueles bichos, ainda vivos, e meti-os na banheira, em água. Quando o meu marido chegou para o almoço, contente por vir comer as lagostas, tinham morrido, porque estavam mergulhadas em água doce. Não as tinha dado à cozinha para as cozerem, para poderem ser um petisco para o almoço. Eu nunca tinha visto uma lagosta!”.

Há testemunhos por vezes pungentes, quando estas mulheres apanham em cheio diferentes comissões, com a casa sempre às costas, os filhos a crescer aqui e ali, nunca escondendo a solidariedade que viveram e edificaram, ficamos com um caleidoscópio de impressões de tantas mulheres que não guardam azedume mesmo quando o destino lhes foi cruel e começamos a perceber que toda a literatura que temos lido no masculino é manifestamente carente deste escondido lado do espelho da vida, para que a História tenha contornos mais definidos.

De leitura obrigatória.

Mário Beja Santos

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