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Início Leituras Grandes nomes da literatura de crime e mistério, por Carlos Macedo Grandes nomes da literatura de crime e mistério (17): Jacques Decrest (1893-1954)

Grandes nomes da literatura de crime e mistério (17): Jacques Decrest (1893-1954)

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Infelizmente, como tudo na vida, os livros também morrem. Esgotam-se as edições e ninguém os reedita (estão “fora de moda”, “datados”, “não é o que o público atual quer…).

JACQUES NAPOLÉON FAURE-BIGUET

Herdeiros, mercenários como hienas, deitam no lixo o espólio bibliográfico modesto, as memórias, picarescas ou trágicas, do antepassado que os escreveu.

Os alfarrabistas tiveram um acidente ou incêndio que os destruiu.

Os chamados comunicadores sociais, condenam-nos a uma segunda morte. Cada vez há menos sobreviventes neste vagaroso genocídio (ciberespaço oblige…). E encarregam-se de o concretizar com gélida indiferença o fogo, os ratos, a humidade, os insetos e, acima de todos, os seres humanos (os piores tipos de predadores)…

Ignorância, fanatismo, estupidez, escravidão às últimas novidades, o consumismo porque sim, vandalismo, que sei eu, torna o que era de todos uma raridade bibliográfica

Assim, desgraçadamente, mesmo em antiquários, “bouquinistes” parisienses, nos velhos alfarrabistas de Lisboa ou de Barcelona, torna-se quase impossível arranjar mãos generosas que nos obtenham as obras de Decrest.

E é pena.

Este parisiense, tão humano como Simenon ou Glauser, no tratamento e caracterização das suas personagens, gentil com os infelizes, assassinos ou representantes da Lei e de uma sensibilidade que lembra John Bardin ou Ruth Rendell, é um autor injustamente esquecido e que mereceria ser reeditado (e traduzido em português, para além de um único livro, na Vampiro…).

Decrest representa, na sua época, um modelo raro de elegância mental, de crítica sem verrina, de humor sem cinismo, de intuição psicológica sem pedantice, de carinho pela humanidade, sem panfletarismo balofo.

A sua obra não envelhece facilmente…

Nos seus sessenta anos de vida, este parisiense apaixonado pela cidade onde nasceu escreveu cerca de vinte romances (ou “novellettes”, na expressão americana) de temas policiais, tendo como centro o Comissário Gilles (mais tarde, juntam-se-lhe sua mulher, Françoise Herlin e uma filhinha, Rose-Marie).

Ao contrário de Maigret, é esbelto, elegante no vestir (para fazer esquecer a sua origem pequeno-burguesa), culto e conhecedor de história e arte.

Esse Maigret que, com algumas alterações de aspeto e personalidade (“que, sob um aspeto bastante estúpido, se ocultava uma das mais brilhantes cabeças da Judiciária”), é transmutado para o corpo espesso do Comissário Dieu, em dois livros: “La Semaine des Trois Jeudis”, de 1946, e “Dieu Mesure Le Vent”, de 1955 (póstumo). É a segunda figura “investigadora” de Decrest. E que também aparece, como colega e amigo de Gilles, em inquéritos conduzidos por este (“Fumées sans Feu”, por exemplo).

Que obtém, em 1951, com a ajuda, neste caso, de sua mulher, Germaine Decrest, um Grand Prix de Littérature Policière.

Essa sua obra “Fumées sans Feu” foi publicada em português, na coleção Vampiro, da Livros do Brasil.

Escreveu igualmente poesia, romances sobre temas diversos, romances (“La Fiancée Morte”; “Les Prisonniers”), peças de teatro radiofónico, críticas literárias, ensaios de valor sobre Maurice Barrés, Gobineau, Santa Teresa de Ávila, Alexandre, rei da Jugoslávia.

Traduziu diversos livros do inglês e dirigiu a coleção “Le Labyrinthe”, onde “lançou”, entre outros, Léo Malet, o que também o torna credor da nossa gratidão…

Foi condiscípulo de Henri de Montherlant, em Janson-de-Sailly (sobre o qual escreverá um ensaio: “Montherlant, homme de la Renaissance”, em 1925), viveu sobretudo do jornalismo (nos “Échos de Paris”, onde era também responsável da página literária).

Todos os seus autores preferidos pertencem a um quadrante ideológico, com que, aliás, se identifica e não é difícil de adivinhar…

Falemos agora um pouco da sua produção no policial.

O que nos obriga a referir, antes de mais, o Commissaire Gilles.

Faure-Biguet adota o nome literário de Jacques Decrest e o Comissário nasce, simultaneamente, em 1933, em “Hasard” para que o autor dos seus dias no-lo apresente.

Maurice Renault dixit, in Mystère Magazine: Um polícia com que se podia contar, para fazer face aos poderosos, às celebridades, aos ricos, aos aristocratas. Mas também um polícia que não fosse alheio aos rituais sociais desse meio, que tivesse tato, educação, que se sentisse em casa no “grand monde” e fosse recetivo aos sentimentos que o agitam”.

Daí Decrest dizer que não escrevia “policiais”, mas romances sobre um “polícia”…

Assim nasce o nosso Comissário que é, como Maigret, um intuitivo, que dá enorme valor às suas impressões, ainda que fugitivas e não traduzíveis em palavras (no início dos inquéritos…), um psicólogo perspicaz e um “sensitivo”. Preparem-se para o horrendo odor dos seus “Boyards”, cor de milho, cigarros grosseiros, de tabaco cinzento alourado e cheiro inqualificável.

Compensado o odor tabagístico por uma polidez e um “à-vontade” social, só existentes (talvez) no aristocrático Roderick Alleyn.

Teve (apesar da origem modesta) lições de piano, em criança, frequenta concertos e aprecia ópera.

Chapéu e sobretudo cinzentos, (muito claros no verão), que um cachecol de vicunha, colorido, alegra um pouco.

É jovem, elegante, sempre bem vestido, permitindo-se o uso de um valioso anel de platina, com uma safira (herança?).

Odeia a chuva, o frio, o ter de se envolver em espessos sobretudos (nunca compreenderá o seu colega Maigret…).

Para ele, nada como o verão ou a primavera, em dias amenos de sol, que dispensam o uso de colete…

Namorou, da forma mais burguesa e oficial, com amor nunca desmentido (e sempre retribuído sem reservas) a empregada de escritório Françoise Herlin, com quem passava (mais a família desta, a mãe e o jovem Robert, irmão com menos seis anos, que adora o “rugby” e o futuro cunhado, por esta ordem) férias em Royan (“Les Trois Jeunes Filles de Vienne”).

Antes de se casarem, com todo o rigor, e terem a encantadora Rose-Marie (“Minouche”).

Enquanto noivos, faz entorses aos inquéritos que conduz, para “a” ir buscar ao escritório e levá-la a casa, Rue Chardon-Lagache.

Sem proteções, sem um nome sonante, sem fortuna familiar a apoiá-lo, subiu por entre as armadilhas e venenos da Judiciária, com tenacidade e competência, degrau a degrau, sem apoios sociais ou políticos, até à posição que presentemente ocupa.

Pouco viajado, adora a oportunidade de uma viagem a Viena, numa obscura história de conspirações austro-húngaras, pós-Trianon.

Um amigo (Decrest?) define-o assim: “Gilles est un homme d’une exactitude singulière, lorsqu’il s’agit du service, mais d’une inexactitude qui devient un art, dès qu’il s’agit de son plaisir. Mais qu’aucune circonstance de la vie ne privait de son appétit(“Point D’Orgue”).

É epicurista e come e bebe-lhe bem. E com mais critério que Jules Maigret… Whisky, mixed-vermouth, um excelente cognac do seu país, um vinho escolhido.

Não tem manias exclusivistas. A não ser no tabaco, o “gris” das “Gauloises”, os seus queridos “Boyards” …

O que lhe irá causar graves problemas de aprovisionamento, durante a ocupação, para se conseguir fornecer no “mercado negro” … (“Les Quatre Chambres”).

Ocupação que passa em Paris, submetido aos horrores da humilhação diária de ser francês, em território ocupado pelos nazis, dos invernos na casinha de Vésinet sem aquecimento, com um frio que obriga a truques inverosímeis para aquecer a filha enregelada, sem manteiga, pão, carne, açúcar ou leite, dos “ersatz” e do “mercado negro”, dos “vélo-taxis”, das “Carte J-3” e dos sapatos e coletes “forrados” com papel de jornal, para proteger um pouco mais do frio…

Gilles não é colaboracionista (nem “zazou”) …

Ele, Minouche e Françoise, irão sofrer muito, durante quatro anos e meio…. Tem amigos: O jornalista Marcel Durand (“Échos de France”), amigo seguro em ocasiões difíceis e fanático pelos Citroën…; a rica e paraplégica Irène Auderac, na sua casa, Rue de Noailles, rodeada de canteiros cobertos de flores; o seu colaborador, Inspetor Moreau; o colega, Comissaire Dieu; o casal Jean Charles, a residir em Tânger, empanturrando-se com compotas e carne de lombo, leite e queijos de elite, livre das misérias quotidianas da ocupação nazi…

Nos inquéritos em curso, gosta de farejar, procurando algo de interessante que ainda ignore e lhe dê a pista de que necessita, vagueando um pouco pelos enormes corredores do “Quai des Orfèvres”.

Gilles é um investigador com consistência.

Um pouco como Maigret. Terão talvez conversado, sobre trabalho, num encontro nos longos corredores, um pouco sombrios, da Judiciária francesa.

E, deste modo, investiga os círculos da jogatina (“Hasard”); os bastidores do teatro lírico (“Les Rendez-vous du Dimanche Soir”); a alta sociedade (“L’Homme des Trois Nuits”); as férias da burguesia num albergue dos Vosgos (“Le Bal de La Montagne Noire”); o mundo dos grandes armazéns (“Les Complices de L’Ombre”); a espionagem dos anos trinta (“Les Trois Jeunes Filles de Vienne”); a grande burguesia (em “L’Affaire du Septième Jour“) ou chega mesmo a fazer concorrência a Fox Mulder ou ao Coronel March (amigo de John Dickson Carr…), atacando “dossiers” de casos não resolvidos (“Les Chambres Sans Serrures”; “L’Office des Tenèbres”).

Vale a pena ler, degustando sem pressas o seu estilo muito pessoal, “Fumées sans Feu”, livro que seguindo um percurso original (uma inválida ociosa escreve longas cartas a Gilles, sobre uma espécie de Juliana lembram-se do “Primo Basílio”, de Eça de Queirós? – que o levam a desencadear um inquérito, sem saber sequer se há homicídios nalgumas mortes ocorridas; se sim, em quais; se homicídios, quem os cometeu…).

Vale a pena ler “Les Trois Jeunes Filles de Vienne”, historieta de espionagem muito “belle époque”, com odor (romântico…) a Mata-Hari…

Gilles adora o que faz. Em “Hasard” confessa mesmo: “É, decididamente, uma profissão fascinante. Adoro-a. E é tão variada… e, … há sempre mais um problema que se tem que resolver… É como se se passasse a vida a fazer palavras cruzadas”.

Gilles auto-define-se, com muita sabedoria: “Il laissait les impressions venir à lui sans contrôle, sans réfléchir et il répondait naturellement… Gilles avait cette sûreté de n’être plus influençable en rien que par l’amour qu’il portait aux êtres” (“La Petite Fille de Bois-Colombes”, Coll. Suites Policières, Ed Flore, 1936, Pag.ª102).

O estilo de Decrest não procura a sátira, a macropolítica, a economia, não se preocupa com o futuro da Humanidade. Flutua, sem pressas, suave como o fumo dos “Boyards” de Gilles. Decrest e Simenon existiram, em certa medida, apenas porque inventaram os Comissários Gilles e Maigret.

LIVROS PUBLICADOS

ROMANCES

  • HASARD, 1933
  • LE RENDEZ-VOUS DU DIMANCHE SOIR, 1935
  • LA PETITE FILLE DU BOIS-COLOMBES, 1936
  • L’OISEAU-POIGNARD, 1936
  • L’INTRANSIGEANT, 1936
  • LA VERITÉ DU SEPTIÈME JOUR, 1939
  • LE BAL DE LA MONTAGNE NOIRE, 1941
  •  LA MAISON DU HAUT, 1941
  • LA SEMAINE DES TROIS JEUDIS, 1946
  • LES CHAMBRES SANS SERRURES, 1949
  • FUMÉES SANS FEU, (COM GERMAINE DECREST), 1951
  • L’HOMME DE TROIS NUITS, 1951
  • LES PISTOLETS SOLITAIRES, 1951
  • L’OFFICE DES TENÈBRES, 1952
  • LE TAMBOUR DES DUNES, 1953
  • DENISE AU BORD DE L’EAU, 1954
  •  LE SALON DES OISEAUX, 1954
  • DIEU MESURE LE VENT, 1955
  • LES COMPLICES DE L’OMBRE (COMPLETADO POR THOMAS NARCEJAC), 1955
  •  LES TROIS FILLES DE VIENNE
  • LE TROISIÈME OEILLET, 1954
  • LES JEUNES FILLES PERDUES, 1953

CONTOS

  • SIX BRAS EN L’AIR, 1943
  • LE BAL DU DERNIER SOIR
  •  LA CHAMBRE FROIDE
  • POINT D’ORGUE
  • LA MOUCHE D’AMÉTHYSTE
  •  LES QUATRE CHAMBRES

Carlos Macedo

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