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Grandes nomes da literatura de crime e mistério (21): Friedrich Glauser (1896-1938)

Nasceu em Viena, em 1896, filho de mãe austríaca e pai suíço (era professor de francês na escola Superior de Comércio). Segundo nos conta Glauser “O avô paterno foi garimpeiro na Califórnia e o materno Juiz do Supremo”. “Que bela mistura!”, salienta com ironia.

Estamos no ocaso evidente do fascinante caleidoscópio que foi o Império austro-húngaro. 

Cresce num mundo dominado pela explosão de cor e transgressão da Sezession, pelas personalidades dos irmãos Klimt, E. Schiele, Oscar Kokoschka, dos suicidas Otto Weininger e Georg Trakl, de Hugo von Hofmannsthal e Arthur Schnitzler, de Adolf Loos e Otto Wagner, um mundo cujo centro é o pequeno café Griensteidl.

Um império, uma aristocracia desnecessária, que se sente morrer e tenta pateticamente transformar em beleza artística o seu suave apodrecimento.

Teve, como educação formal, três anos de Gymnasium em Viena e outros três em Glarisegg, na Suíça. Três ainda em Genebra, sendo expulso, pouco antes de se apresentar às provas de bacharelato, por ter formulado uma crítica demasiado sincera a um livro de poesia de um dos seus professores (teme outras represálias e esconde-se alguns dias num hotel…). Mas acaba por atingir o almejado grau de bacharel, só que em Zurique. Estuda química um ano lectivo. De súbito descobre o dadaísmo, em que se envolve até ao tutano.

E não só.

O novo casamento de seu pai, a sua desadaptação a um mundo a que ele e o dadaísmo tentam fugir, levam-no a um desespero suicida: éter, clorofórmio, morfina, ópio, álcool (seguindo as pisadas paternas), sempre em doses de brigada de cavalaria…

O seu pai é, no fundo, o catalisador e a origem principal do longo calvário de Friedrich. Ele próprio alcoólico e carente da mais elementar cultura, tenta a solução mais tonta: declará-lo sem aviso prévio, judicialmente inimputável, interná-lo em casas de saúde ou mesmo manicómios.

Foge para Genebra.

É internado um ano em Münsingen. Foge. É internado um ano em Ascona. É preso pela posse de morfina e “devolvido” à Suíça. Três meses mais em Burghölzi (com conferências médicas de permeio para determinar, como queria agora seu pai, se ele era ou não esquizofrénico…).

Num intervalo mais são (1921-1923) alista-se e vive as campanhas da Legião Estrangeira francesa, donde apenas sai por se lhe ter declarado uma “afecção cardíaca grave”.

Falemos agora do farol que criou, como fio condutor das suas histórias:

O Inspector Studer, que é concebido em dois meses, de maio a junho de 1935 (para ser publicado na Zürcher Illustrierte, a partir de julho de 1936), durante a penosa transferência de Glauser do estabelecimento para doenças mentais (graves) de Waldau, para a colónia de recuperação psicoterapêutica de Schönbrunn.

Glauser dá-nos uma viva descrição de Schönbrunn: “À esquerda da grande autoestrada que liga Münchenbuchsee e Schüpfen ergue-se uma construção em madeira, relativamente modesta. Paredes castanhas, os caixilhos das janelas brancos. No rés-do-chão, duas divisões espaçosas: a sala de trabalho, pintada em vermelho e o refeitório, amarelo-canário… uma colónia independente foi aí fundada em 1933. Procedeu-se à compra de terrenos, ao cultivo dos campos, à instalação de uma tecelagem e uma cordoaria. Os nossos quartos são pequenos, mas as janelas abrem-se sobre a floresta. Em dias bonitos, vêem-se as nuvens formar-se sobre as árvores e seguir o seu caminho, barcos imaculados, imensos, de bem-aventurados”.

Esta descrição idílica, onde Glauser se sente bem e até produz do melhor da sua obra literária diz-nos muito sobre o instável balanço eufórico-depressivo que foi, afinal, toda a sua vida (está a dois anos de morrer).

Aliás, há que dizê-lo, Schönbrunn, apesar de ser uma clínica de internamento voluntário é também uma “prisão”, com regras, horário para se deitar e levantar, controle carcerário-médico.

Começou o seu calvário de perda de liberdade em Glaris, ainda adolescente (depois do episódio com o professor em Genebra tenta suicidar-se). Suporta-o com alguma apatia e enorme carga de sofrimento.

Desde estudante, tem um estilo literário, económico nas descrições, pontuado por um sarcasmo conciso, um sentimento forte e refinado na forma. Sabia fazer vibrar as palavras. Escrevia por jogo, para passar o tempo, enquanto levava uma vida de boémio, sempre de cigarro na mão, presa das suas dependências de droga e álcool.

Com inúmeras aventuras mercenárias, de ocasião, como Simenon.

Até que, a 18 de janeiro de 1918, é declarado inimputável, por “deboche e costumes dissolutos”. Foge, é preso em junho em Genebra e começa o longo calvário que já referimos e ele tão bem descreve em “Morphine. Une Confession”.

Hospitalizações. Evasões. Morfina. Nova Prisão. Tentativas de suicídio na prisão. Crises de malária (após os dois anos no Magrebe). Cólicas hepáticas. Novas tentativas de suicídio.

E já tem vinte e nove anos.

Começa por fim a pensar seriamente em escrever (e viver disso). Data desse momento o seu primeiro policial “Meurtre” (Mörd).

Apaixona-se por Béatrice Gutekunst, dançarina (?) em Basileia.

E, em 1928, acaba a sua primeira versão de um romance sobre a Legião Estrangeira, num estilo que saltita entre P.C. Wren e Pierre Loti: “Gourrama”.

Ao mesmo tempo que se diploma como jardineiro.

Béatrice abandona-o, depois de uma estadia de ambos em Paris. A dependência económica (em relação à carteira do pai) acentua-se e já não têm conto as curas de desintoxicação, internamentos compulsivos em hospitais, clínicas, prisões.

Escreve um livro autobiográfico: “Plainte à un Mort”. O morto (“vivo”) é ele.

De súbito, torna-se hipercrítico em relação ao que escreve, dizendo que “a preguiça e a falta de disciplina lhe aniquilam a estrutura e o estilo, quando pensa que, se quisesse, de facto, poderia dizer coisas que ninguém, além de si, seria capaz de dizer”.  

Glauser está prematuramente envelhecido, esquálido, de ar febril e voz nasalada e respiração difícil. Está a quatro anos da morte.

E é então que “ressuscita”, em fins de 1934, em Waldau (que tanto odiava).

Tem um filho!

Este nasce quarentão, de face vermelhusca, corpulento e forte como Maigret, com um bigode castanho farto, dentes amarelados pelo tabaco e um “Brissago” aceso, pendendo-lhe dos lábios. É paciente como um oriental, sereno como o mar do Algarve, no verão.

Tem mulher e filhos, um dos quais está a terminar a sua formação como tipógrafo. Gosta do aconchego do lar, de Cognac, de pantufas aquecidas previamente e de jogar gassi com os amigos. Falamos de Jakob Studer (Köbi, para a mulher…), o mais humano dos inspetores de romances policiais, a par de Jules Maigret e Gilles.

É uma figura fascinante, que secundariza toda a intriga policial, pela forma como nela se move.

Studer não é um alter ego de Glauser.

Aquele pobre ser, constantemente sacudido pelas necessidades económicas, que vive, quase toda a sua vida da caridade de seu pai (que odiava), toxicodependente de tudo o que lhe parecesse droga, frenético buscador de novas correntes artísticas e literárias, preso habitual, interdito por incapacidade de gestão de um património próprio (com tutor judicialmente nomeado), frequentador permanente de tribunais, prisões, manicómios, hospitais e casas de repouso e desintoxicação, o legionário sonhador do Magrebe, não se revê, claro, num Studer.

Mas, no fundo, sente-se no autor como que uma nostalgia, uma inveja de não ser como o nosso Inspector, um calmo observador do mundo que o rodeia, que por vezes, intervém na tragédia humana, porque a sua profissão lho impõe.

Glauser começa a escrever freneticamente histórias policiais (algumas já existentes em esboço) como “Die Fieberkurve”, “Le Règne des Toqués” e, em fevereiro de 1935, começa o seu “Wachtmeister Studer”. Em 1937, “Der Chinese” e “Kroch & Ce.”. Cinco romances escritos em três anos, além de mais de uma dúzia de contos curtos, folhetins, e artigos de temas diversos.

A génese de “Der Chinese” é exemplar.

Diz o seu biógrafo, Frank Göhre, num texto que reproduzo, com a devida vénia: “Numa das derradeiras noites de dezembro de 1937, Friedrich Glauser dirige-se a Collioure, pequena aldeia de pescadores no sul da França, situada perto da fronteira espanhola. Um local romântico, muito apreciado, por aquela época, por artistas como Derain, Braque e Matisse e não apenas pelo isolamento que proporcionava.

A luz, as cores e o aspecto ameno da paisagem constituíam, para eles, novas fontes de inspiração.

A região lembra-lhe a “sua” África, que conheceu como Legionário (Legião Estrangeira Francesa). Já lá tinha estado duas vezes: no ano de 1930, com a sua companheira da época, Beatrice Gatekunst, a “Trix” e, um ano depois, só, a fim de por fim ao domínio do ópio (em vão).

Desta vez, acompanha-o Berthe Bendel. A Chère Berthie, como lhe chama, trabalhava como enfermeira em Münsingen, onde Friedrich Glauser esteve internado diversas vezes. O asilo psiquiátrico de Münsingen serviu-lhe, nomeadamente, de modelo para o seu romance policial Matto Regiert”: a história de Pieterlen e da enfermeira Irma Wasen, em forma literária, dá-nos muito da sua biografia e da de Berthe Bendel, relata os preconceitos da Direção do estabelecimento e as dificuldades que sofreram, no início da sua relação. Mas são águas passadas, a sua vida em comum consolida-se, dia após dia, fala-se em casamento.

Friedrich Glauser está mais confiante em si próprio do que nunca esteve. É amado e o amor dá-lhe sustento e força para o seu novo trabalho. Prometeu a si próprio escrever muito em Collioure, escrever intensivamente.

Em Marselha, Berthe adoece. Muito enfraquecida, senta-se a seu lado, num compartimento do comboio, cheio de fumo de tabaco. Esta está cheio de soldados franceses, que se dirigem para a fronteira (está-se em plena guerra civil espanhola). Berra-se, soltam-se palavrões e pragas. Embora seja noite, o melhor é nem pensar em dormir…”.

Embora com estas contrariedades, F. Glauser tenta trabalhar no seu novo romance. Outra obra com o Inspector Studer. Na página de rosto escreveu “Der Wettbewerbsroman” (“O romance do concurso”) e juntou ao dossier o texto em que a Sociedade de Editores de jornais e a Federação Suíça de Escritores formularam as condições de participação no mesmo.

Pode ler-se aí que “os manuscritos devem ter as condições de um romance em fascículos e serem adequados à publicação num jornal suíço. Dimensão: 6500 linhas de doze sílabas. Tema: à escolha do autor”.

Ocasião para Friedrich Glauser pôr o seu inspector num novo “caso”. “Meio: Um asilo psiquiátrico, uma escola de horticultura e uma pequena hospedaria num ambiente rural”.

Não precisava de mais para arquitetar todo o romance. A história deveria chamar-se “O Chinês”.

A data-limite para a entrega estava muito próxima, mas F. Glauser estava tranquilo. Adiantara muito o seu trabalho, desta vez. Umas correções finais, um toque aqui ou além nas “situações”, para dar maior espessura à intriga, após o que as personagens estariam à altura e a narrativa convincente.

Faz uma derradeira anotação, junta o manuscrito e mete-o na pasta que traz, que coloca na rede para bagagens e dá atenção a Berthe. Que fechou os olhos e respira com dificuldade.

Collioure vai fazer-lhe muito bem, pensa. O ar é limpo e a casa agradável. Descontrai-se, fecha os olhos por sua vez e adormece.

Ao acordar, pouco antes da estação de Sète, verifica que a pasta contendo o manuscrito, as notas e os planos e as condições do concurso desapareceu. Roubado.

Glauser acreditou que tinham sido alguns soldados que, dado o seu falar germânico, tinham acreditado que se tratava de um espião e que a pasta continha material de “segurança nacional”: “Il y a toujours des idiots dans ce monde”.

De Collioure, escreve de imediato ao júri. Que lhe concede um pequeno prolongamento do prazo de entrega, até 31 de janeiro…

Deve desembaraçar-se sem ajuda.

Não consegue, sem o ópio. Aumenta a dose diariamente o que só agrava o problema. Já nem consegue escrever…

Por fim, com a ajuda da “mamã” Martha Ringier (que acolhe o casal na sua casa, em Basileia), amiga maternal e sincera de Glauser e Berthe, (re)escrevem em dez dias o romance, que Glauser lhes dita. À razão de oito horas por dia, mais três suplementares, para revisão. Total: cento e dez horas.

Friedrich Glauser entregará o romance a tempo…e obterá o primeiro prémio!

O romance policial “Der Chinese” aparece a 26 de julho de 1938, dividido em quarenta e dois episódios, no National-Zeitung, de Basileia. Uma semana depois, o Thurgauer Zeitung publica-o também. Seguem-se-lhe mais de doze aparições em diferentes periódicos de informação.[1]

Em 18 de Maio de 1936, entra na Sociedade de Escritores Suíços. Sente que o tempo lhe falta, que a morte está para breve. Viaja compulsivamente, mesmo sem quase ter recursos (Bretanha, Génova).

Escreve duas versões de “Les Chaussures qui craquent”.

Studer é-nos retratado doente e acabado, num reflexo (inconsciente ou suicida?) do seu autor.

Sente-se sem vontade, exausto.

Completamente destruído pelos inúmeros achaques, que a vida que levou lhe trouxeram.

Sofreu (mais do que viveu) um inferno permanente, passando por tudo o que existia de prisões, asilos e clínicas psiquiátricas e hospitais da Suíça, França, Bélgica, Itália, Argélia. 

Escrevendo sempre.

Com profundo amor á humanidade, transmitido por interposta pessoa: a sua criação literária, o Wachtmeister Jakob Studer.

Só agora a sua obra policial começa a interessar a crítica e a ser publicada nalguns países. É da mais elementar justiça que assim seja.

Em anexo, por a achar fascinante e por melhor dar a conhecer a maneira de estar na vida de Glauser (e a sua posição perante o dedutivismo tipo Detection Club, dominante nos anos vinte e trinta), reproduzo uma curta polémica (dois artigos, um de Glauser), onde diz o que o que pensava ser um romance policial. Estamos em 1937….

Está completamente exausto, presa de uma depressão gravíssima, subnutrido para além do imaginável, pelo excesso de droga, bebida e privações económicas (Carta ao seu editor, Ras, em 4 de outubro de 1938: “Já não temos um cêntimo, o nosso casamento prestes a celebrar-se, devíamos celebrar a vida e eu afundo-me….envie-me, se puder, trezentos francos em correio expresso. Se o não puder fazer, sei bem que peço demais nos tempos difíceis que correm, envie-me um postal com um simples Não e eu saberei o que me resta fazer”).

Casa-se com a sua nova companheira, Berthe Bendel, em Itália, em Nervi, perto de Génova, em 6 de dezembro de 1938 (ou seja, há quase setenta e seis anos).

Morre na madrugada de 8 de dezembro de 1938, dois dias após se ter casado com a fiel mulher “enfermeira”, em condições dramáticas.

A vida que talvez (talvez…) desejasse, a do “burguês” Wachtmeister Studer, nunca lhe fora acessível…

ANEXO

“DEZ MANDAMENTOS PARA FAZER UM ROMANCE POLICIAL” DE STEFAN BROCKHOFF

N.B. É ESTE O TEXTO DE BROCKHOFF, mais do que medíocre autor policial e jornalista dos anos trinta, hoje completamente esquecido, fora da Suíça (e mesmo aí…):

“Um romance policial é um jogo. Um jogo entre as personagens do romance e um jogo entre o autor e o leitor. De início, o autor tem todas as vantagens. É ele que distribui as cartas, tendo o cuidado de que o seu “parceiro” não receba senão um número limitado destas. Mas isto porque ele pode precisamente como o Bom Deus, distribuir o que quiser a quem quiser, que ele deveria ter o dever de não enganar os seus leitores no “jogo”, respeitar certas regras, sem as quais o romance policial não é senão um logro desleal.

Eis porque estabeleci um quadro de “Mandamentos” e de interditos e os confio aos leitores do meu novo romance, para que eles possam, durante o jogo em que iremos participar, verificar se jogo ou não lealmente. Sei que se torna assim mais difícil a minha tarefa, meu compromisso de seguir as regras que deverei respeitar e sem as quais me seria mais fácil jogar. Mas, porque espero jogar lealmente, não temo que me vigiem. Agora atenção, pois vou revelar-vos os “Dez Mandamentos” para um romance policial.

  1. Todos os acontecimentos ocorridos no decurso do romance devem ser explicados, todos os enigmas resolvidos no final. Se ocorrem dez assaltos, vinte raptos, trinta assassinatos, esses dez assaltos, vinte raptos e trinta assassinatos devem ser explicados no fim. Não tenham receio! Tudo o que acontece nos meus romances tem uma explicação, ao contrário de um certo clássico do romance policial no qual se passam três vezes mais coisas e, quando muito, apenas metade delas é explicada.
  2. Os acontecimentos apresentados ao leitor não devem ser inventados para o induzir em erro. Tudo o que nele acontece deve ter o seu lugar legítimo na estrutura do romance. Aquele que inventa episódios no único fito de orientar as suspeitas do leitor na direção errada é um parceiro desleal.
  3. O autor não deve pretender ser original a qualquer custo. Quanto um assassinato é cometido, deve sê-lo pelos meios usuais, revólver, espingarda, veneno e outras belas descobertas do espírito humano. Há autores de romances policiais que não dormem dias a fio para “matar” de forma original. Para tal, inventam aparelhos complicados, raios da morte, animais treinados para assassinar e outras coisas do género. Momentos há onde o refinamento se torna estupidez.
  4.  O assassino deve ser um homem, certamente que um mau homem, mas apesar de tudo, um homem. Não deve possuir forças sobre-humanas, não deve praticar o ocultismo, deve cumprir o seu ato, como os seres humanos o fazem geralmente. Não deve dispor de possibilidades ilimitadas, não deve estar à frente de bandos de duzentas pessoas, nem ser o chefe oculto de uma máquina policial gigantesca que disponha de enormes meios. A autor deve renunciar também, se possível, às passagens subterrâneas, aos alçapões que se fecham rapidamente e a outros artifícios românticos e isto para não ter a vida demasiado facilitada face ao leitor.
  5.  O detective deve ser um homem, certamente que eficiente e engenhoso, mas apesar disso, um homem. Não deve ser omnisciente, nem omnipresente, pois trata-se de qualidades de que os homens, em geral, não dispõem. Para encontrar deve procurar, para elucidar deve fazer trabalhar o seu cérebro de homem. Um detective que, como o Bom Deus, adivinha tudo antes de toda a gente, que se encontra sempre no local adequado, que, numa centelha, compreende tudo, é certamente um fenómeno esmagador, mas tais qualidades são demasiadas para serem verídicas.
  6.  Um romance policial deve mostrar o combate entre as artimanhas do assassino e o raciocínio inteligente e metódico do detective, encarregado de o desmascarar. Em contrapartida, não deve assemelhar-se a um relatório militar, onde são contadas as batalhas de artilharia e os movimentos de tropas, onde é desenvolvido o arsenal de todos os povos beligerantes e cadáveres caiem para todos os lados. Ter um estilo apaixonante é o seu dever, sê-lo com os meios mais simples, é a sua arte.
  7. No entrechocar de acontecimentos e personagens, o assassino deve estar no lugar da frente. O leitor deve conhecê-lo, mas não o reconhecer. Deve ter um papel suficientemente grande para que se tenha interesse por ele e pelos seus atos; não deve, pois, ser uma personagem à margem da ação. Também não deve estar demasiadamente no primeiro plano, a fim de que se não traia com demasiada facilidade.  Encontra-lhe o lugar adequado é um dos deveres essenciais do autor.
  8.  Tudo o que acontece num romance policial tem de ser mostrado. Os móveis, os protagonistas, os meios de execução devem, na maior parte do tempo, ficar na sombra, mas o leitor tem que saber alguma coisa de tudo o que está a ocorrer, seja o efeito final, uma consequência ou um qualquer indício que reenvie ao crime. Não deve ocorrer jamais algo de que o leitor só tenha conhecimento no final. Certo que o autor pode esconder muitas coisas, mas nunca as deve esconder completamente, deve sempre deixar ver um pedacinho.
  9.  O autor não deve fatigar o seu leitor. Os debates jurídicos sem fim, os relatórios circunstanciados, as buscas ao domicílio cerimoniosas são de evitar. Tudo o que contribui para o conhecimento dos factos deve, bem entendido, ter o seu lugar, mas tudo o que tem o seu lugar deve ser verdadeiramente indispensável à ação e ao seu desenrolar. Certamente que o leitor não poderá sempre, no decurso da sua leitura, avaliar o significado de tal conversação ou cena, mas deve conhecer, no final, que era significativa e em que medida o era.
  10.  É desejável que os acontecimentos sejam apresentados ao leitor e que ele os viva. Deve, na medida do possível, ter o sentimento que a eles assistiu, em cada circunstância. Não se deve esperar que alguém lhe venha contar, depois do facto ocorrido, que se passou algo e onde se passou. Deve ver os acontecimentos com os seus próprios olhos. Os relatos feitos por intermediários tornam-se rapidamente maçadores e enfraquecem a força dos acontecimentos. O leitor deve poder seguir as personagens com os seus próprios olhos. Não deve ouvir o que lhe contam, mas olhar para o que se passa, estar “lá”.

São estes os “Dez Mandamentos” que quero seguir. Espero não ter falhado.  No meu primeiro livro, “Feu sur la Scène”, havia alguns golpes sérios, mas já o meu segundo, “Musique dans la Ruelle des Morts”, tocava uma melodia mais justa.

Agora espero que me deem uma classificação alta ao meu terceiro, “Trois Kiosques au Bord du Lac” e que se divirtam, lendo-o, tanto como gostei de o fazer, num jogo honesto e leal. Tomem atenção e, se acharem que infringi as regras do jogo, façam-mo saber.

La Bernerie (France), 25/3/37

 Resposta de Glauser

Caro Colega:

Publicou, há pouco, do alto do Monte Sinai do Zürcher Illustrierte, os “Dez Mandamentos do Romance Policial” e muito gostaria de analisar consigo as exigências que coloca.

Algumas das suas afirmações não me convenceram e gostaria de lhe dar conta, oralmente, dessas discordâncias. Não me parece com efeito justo, que tenha que suportar em silêncio o meu monólogo, sem poder intervir, para corrigir um eventual erro ou má interpretação do seu pensamento.

Assim a nossa discussão, pacífica e amigável, decorrerá nas colunas do Zürcher Illustrierte. Tomará a forma, afinal, de um pequeno torneio de poesia em que o público desempenhará o papel de Elisabeth (era assim que se chamava, creio, a Senhora para quem Wagner compôs a ária dos “Mestres-Cantores”?).

Mas sem acompanhamento musical. E ainda bem.

Sempre considerei que o Antigo Testamento, ao criar os Dez Mandamentos – que, diga-se de passagem, fornecem sempre matéria para os nossos romances – tinha estabelecido um procedente.

Todos os que se sentem talhados para dar instruções aos seus semelhantes atormentados sentem-se, desde então, obrigados a articular o seu discurso em dez mandamentos quando o poderiam fazer perfeitamente em três ou quatro.

Sofremos constantemente os “Dez Mandamentos para a dona de casa”, os para os solteirões e até os vendedores de aspiradores ou os que ouvem rádio, foram julgados merecedores de ser massacrados com o número “X”.

Dez Mandamentos!

Seja.

E porquê dez mandamentos para o romance policial? Permitir-me-á recordar-lhe que os romances policiais são uma criação humana e algo sem vida não tem necessidade de “Mandamentos”. Estes, de facto, dirigem-se ao autor. Mas também admito que a fórmula “dez mandamento para o autor de romances policiais” não é lá muito feliz…

Em contrapartida, admita isto: uma grande parte das suas exigências é um dado adquirido, uma coisa evidente por si mesma. Nos seus estatutos, o Detection Club de Londres, que agrupa alguns escritores deste género – Agatha Christie, Dorothy Sayers, Wills Crofts, Cunningham, é prescrito a todos os seus membros o que você desenvolve, caro Colega: verosimilhança da ação, renúncia a quadrilhas secretas de malfeitores, lealdade nos dados apresentados, limitação de sensações inúteis, linguagem concisa.

Linguagem correta, caro Colega. Alemão correto, no nosso caso. Postulado que falta aos seus Mandamentos. Este postulado parece-lhe tão evidente, que nem o mencionou sequer.

O romance policial tal como o que prolifera, desabrocha, floresce em todos os países anglo-saxónicos é, como o disse muito justamente, um “jogo”: um jogo que se joga de acordo com certas regras. Geralmente o respeito por estas regras é implícito; mas, por vezes, é difícil respeitá-lo.

Estamos de acordo, creio.

Pela faceta lúdica que nele existe, o romance policial aparenta-se ao seu nobre irmão a que se chama “romance tout court” e reivindica, pois, o direito de ser uma obra de arte.

E essas obras de arte foram lidas até que se transformaram em produtos artísticos, produtos artificiais, coutada de certas “cliques”, de alguns “snobs”. Lidas até que o autor se meta em filosofias, psicologias, metafísicas e esqueça as exigências essenciais do romance: fabular, contar, por em ação seres humanos, o seu destino, a atmosfera na qual evoluem no dia-a-dia.

O bom romance devia conter suspense. Um suspense diferente do que reina nos romances policiais, mas devia existir “suspense”.

E é precisamente porque o romance rejeitou o “suspense” como algo que não é um “elemento artístico”, que o seu irmão desprezado, o romance policial, conheceu o sucesso que o faz aparecer, aos olhos de alguns, como o arrivista, o “novo-rico videirinho”.

Mas isto sabe-o melhor que eu e não é para lhe fazer um tratado sobre a evolução do romance que lhe escrevo. No entanto, este prólogo era necessário.

O policial não guardou senão uma das componentes do romance: o “suspense”. Um tipo especial de “suspense”. Ele também efabula um pouco, mas sem se afastar de caminhos seguros. E é voluntariamente que renuncia ao essencial: descrever os homens e o seu combate com o destino.

Os seres humanos e o seu destino!

O romance policial renuncia conscientemente a essa qualidade artística. Pelo menos na sua forma atual, é lógico e abstracto. E era isto que eu queria, antes de mais, antepor aos seus “Dez Mandamentos”: num livro escrito por esta receita, o destino não tem lugar.

O assassínio, simples, duplo, triplo, no começo, no meio ou porventura perto do fim não aparece senão com o fito de dar a uma máquina pensante, matéria para deduções lógicas. O que admito que pode ser apaixonante.

Quando este método era novo – pense no “Duplo Assassinato da Rua Morgue” e no pai de todos os Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Philo Vance, Ellery Queen, no avô de todos os inspetores e comissários da Scotland Yard: o Chevalier Dupin de Edgar Allan Poe – era novo, era mesmo artístico, mas talvez pela única razão de que era usado por um poeta. Hoje encontramo-la gasta, para não dizer insípida.

Um livro considerado como um bom romance policial – quer o seu herói integre a policia oficial, quer seja um detective privado ou amador – é sempre construído da mesma forma: no início, o autor faz um levantamento da lista das personagens no verso da capa, para facilitar a leitura; no primeiro capítulo, dá-se o assassinato. Seguem-se páginas vazias e entediantes até aparecer o “nosso” detective.

Este tem de ser um “homem”, diz você, e “certamente um homem eficiente e engenhoso”, com uma perspectiva das coisas de um psicólogo. Utiliza esse olhar para elucidar os mistérios. E cada personagem do romance tem um e vela sobre ele com a maior atenção. Mas de nada lhe serve pois aparece o nosso detective e lança à pessoa o seu olhar de psicólogo e pronto, recolhe a confissão completa, acompanhada de todos os indícios necessários. Basta-lhe estender a mão…

O mesmo processo repete-se com as outras personagens e quando o detective lançou todos os seus olhares de psicólogo e obteve o que queria, vai, de informações debaixo do braço, caçar o criminoso.

A solução espera-o, como uma florinha na beira do caminho.

E o detective mete a florzinha na aba do chapéu ou na botoeira e segue o seu caminho, em busca de novos crimes.

O assassino, certamente um homem mau (em geral), como você também diz, o assassino esse expia os seus atos maldosos na cadeira eléctrica, na guilhotina ou na ponta de uma corda, quando lhe não ocorre suicidar-se. Bom. Está tudo bem. Mas por que carga de água é que o culpado deve ser “seguramente um homem mau”? Não há homens seguramente maus em geral e homens possivelmente bons em especial? Há “humanos bons” e “humanos maus”?

Os homens não são simplesmente homens – nem bestas nem anjos – homens medianos, nem heróis, nem detectives, nem homens “eficientes e engenhosos”, nem homens seguramente “maus”, mas simplesmente homens, quer se chamem Glauser, Brockhoff, Hitler, Riedel, Emma Künzli ou Guala? 

Não nos cabe a nós, os escritores – mesmo se criamos o “suspense”, mesmo se idealizamos em excesso – o dever de lembrar incessantemente (naturalmente sem sermões) que não existe senão uma diferença ínfima, quase invisível, entre o homem irrecuperavelmente mau e aquele que é “eficiente, engenhoso e raciocina com método?”.

Bem vê, é que existem certas questões que me atormentam mais que as varejeiras em julho.

Se você reprova os alçapões, as armadilhas sofisticadas, as quadrilhas, os “raios da morte”, os aparelhos complicados, se está pronto a suprimir toda a “magia romântica” e a reprova, então deve também renunciar à distinção entre o bem e o mal. Pois essa distinção é um artifício romântico, tão ocioso como os alçapões e outros acessórios, de uma época que era mais ingénua do que a nossa.

A trama de um romance policial conta-se em página e meia. O resto – as cento e noventa e oito páginas dactilografadas restantes – só servem para encher colchões. Embora tudo dependa do que delas se fizer. A maior parte dos romances policiais são, no melhor dos casos, anedotas prolongadas, dado que, na época caótica em que vivemos, a diferença entre as categorias literárias já se não faz pelo conteúdo, mas apenas pela extensão: três páginas, “short story”; quinze a vinte páginas, novela; cem páginas, romance curto. Sim, isto faz-se! Não se riam. O “romance curto” foi inventado por pessoas que nada percebiam de inglês e que traduziram “short novel”, que era apenas uma história, por “romance curto”! Acima das cem páginas, começa o grande romance, o “romance”, essa realidade bastarda que se situa entre as palavras cruzadas e o jogo de xadrez…

Porque não é mais do que isso? Porque não aspira a ir mais além?

As personagens que neles aparecem não são mais do que (há, habitualmente algumas exceções) nada mais do que distribuidores automáticos como os que se vem nas estações de caminho de ferro: pintados de azul, verde, amarelo. Em lugar de uma simples moeda de vinte cêntimos, o detective atira, para uma ranhura invisível, o seu olhar de psicólogo. Não são seres humanos.

São autómatos (e vocês conhecem-nos tão bem como eu: a esposa do milionário ou a filha do milionário, o mordomo, que normalmente se chama Butler, o médico – vilão ou não – a empregada de fora, o secretário, são os seus nomes), agem no vazio sideral.

Todas as mansões, os “buildings”, os palácios de milionários que nos são exibidos, nem têm sequer a realidade tangível de uma estação de comboios, exposta às correntes de ar (lugar onde aliás deviam estar os distribuidores automáticos), com os seus odores de carvão, o seu depósito de bagagens, a cheirar a couro e a tabaco, a música monótona dos postes de sinalização.

O “suspense” é um elemento notável; facilita o esforço da leitura. Distrai o espírito, acabrunhado pelos desgostos da vida, ajuda a esquecer.

Exatamente como uma aguardente, exatamente como um vinho vulgar.

E, da mesma forma que há o verdadeiro “Kirsch” e o falso, de imitação, também existem o “suspense” e o falso “suspense”.

 E chamo falso suspense ao que não tem outro fim que o apresentar a solução, o fim do livro.

Este substituto do suspense não permite, olhar para cada página do livro como “um momento presente”, no qual o leitor “vive”, durante minutos ou segundos. E é unicamente se esses lapsos de tempo muito curtos, esses minutos e segundos, se prolongam por dias, meses, exatamente como num sonho, que nos encontramos perante a autenticidade do “suspense”.

Se o “suspense” nega o presente, será o futuro que paga. Tudo isto, ao lermos um livro, é inofensivo. Só o gosto bizarro na boca, um sentimento de vazio na cabeça, nos fazem pensar que o “suspense” era falso.

Não pensava senão na solução, não suscitava sonhos agradáveis, nada ressoava nos ares, porque nada era feito vibrar em nós.

Esta sofreguidão do futuro, em detrimento do presente, não é, afinal, a infelicidade da nossa época?

Esquecemo-nos completamente que existe um presente que quer ser vivido.

Esquecemo-nos por completo que este presente valha a pena ser vivido e não é necessário engolir sofregamente a sopa, a carne, os legumes, porque não pensamos senão no bolo que nos aguarda no fim da refeição.

O homem atual comporta-se como um ciclista que atravessa, arquejante, os mais belos prados, com o único fito de ganhar uma camisola não sei bem de que cor, com a qual não ficará mais belo: pelo contrário, realçará a sua parecença com um “sagui” gravemente doente. É nosso dever suscitar a reflexão e a meditação com os nossos próprios meios, por mais modestos que sejam.

Creia-me que vale a pena decepcionar aqueles que, depois de terem lido as dez primeiras páginas do livro, folheiam as restantes para saber, tão depressa quanto possível, quem é o culpado…. Estou inteiramente de acordo consigo quando escreve que o culpado deve ter um papel suficientemente importante para que nos interessemos por ele e pelas suas ações. Mas…e se conseguisse construir a trama da intriga do livro, por forma a que fosse indiferente ao leitor saber quem é o culpado?

E se conseguíssemos ter suficiente astúcia para atrair o leitor para as nossas redes de sonho, para que sonhasse como nós em pequenos gabinetes que nunca viu, falando com pessoas que lhe parecerão mais reais que os seus próprios parentes, a ver sob uma nova perspectiva – graças á luz de um projetor que para ele teríamos inventado – objetos da vida quotidiana para que não olha, porque se lhe tornaram demasiado familiares? E se conseguíssemos encher cada capítulo da nossa história de um novo “suspense”, não o “suspense” primitivo que o empurra para a frente, não, um “outro suspense”!

Se conseguíssemos despertar nele simpatias ou antipatias pelas nossas personagens, pelas casas onde vivem, pelos jogos que praticam, pelo destino que lhes paira sobre as cabeças. Ameaçando-os ou sorrindo-lhes?

Tudo isto é o romance obra de arte, que se fazia outrora. Não seria para nós vantajoso trazer-lhe novos leitores, por intermédio do seu irmão desprezado, o romance policial? Libertaríamos o romance policial do desprezo a que é votado, atrairíamos gente de gosto e discernimento, e se atuássemos bem, sem deixar cair a intriga policial, talvez atingíssemos até aqueles que apenas leem John Kling e Nick Carter…

Não temos que ter vergonha de ser escritores policiais… muito maiores do que nós já não passaram ao papel, crimes e demonstraram como foram dilucidados? Schiller não traduziu a antologia de Pitavale, Conrad não escreveu o “Agente Secreto”? E Stevenson o seu “Club dos Suicidas”?

Mas, da mesma forma que um livro de cozinha não chega para preparar um “risotto” conforme às regras de arte, os “Dez Mandamentos” não são suficientes para escrever um romance policial. Perdoar-me-á ter-me permitido completar as suas exigências. As minhas não são novas e não teria sido provavelmente capaz de as formular se as não tivesse visto aplicadas. Antes de voltar brevemente a um destes mestres, permitam-me que resuma as minhas exigências: Humanizar!

Tornar distribuidores automáticos de bilhetes em seres humanos. E, acima de tudo, não idealizar “máquinas de pensar”. Estamos de acordo neste ponto. Não escreveu também que o detective deve ser “um homem”?

Mas ainda vou mais longe. Não tem necessidade de ser eficiente e engenhoso. Basta que tenha intuição e bom senso. E acima de tudo: deve ser da nossa altura e não planar em alturas sidéreas, onde se fica seco depois de uma chuvada e onde todas as lâminas de barba se portam sempre de forma impecável. Deve descer do seu pedestal, o detective!

Deve reagir como você ou eu. Dotemo-lo de reações, ofereçamos-lhe uma família, mulher, crianças; porque tem sempre que ser celibatário? E se o queremos celibatário, só ocupado em resolver problemas policiais, então ofertemos-lhe uma “amiguinha” que lhe faça a vida negra…

Porque tem sempre que se vestir de forma irrepreensível? Porque está sempre cheio de dinheiro? Porque não se coça quando tem comichão e não tem (como eu) um ar um pouco estúpido, quando não compreende uma coisa? Porque se não decide a procurar o contacto dos seus semelhantes, a compreender a atmosfera em que vivem as pessoas que o ocupam? Porque não partilha o seu destino?  Porque não almoça com elas e não resmunga para consigo mesmo que deixaram queimar a sopa – quantas tensões escondidas pode ocultar uma sopa que se deixou queimar?

Porque não partilha com os suspeitos uma conferência, na rádio, de um célebre professor sobre o casamento? É nestas circunstâncias que os seres humanos saem de si mesmos. Bocejam. Um tal bocejo pode ser tão revelador…

E se o colarinho do detective estiver empapado em suor, que revelação! Sem falar dos buracos que tem nas meias…

Não estou a fazer de Judas, nem a sabotar a nossa discussão. Falei do destino, do seu absurdo.  Devemos ocultar o facto que toma formas, às vezes trágicas, outras cómicas?  Só devemos falar dele quando está “bem arranjadinho”, como umas calças saídas do alfaiate, ou quando está tão negro como um vestido tingido de negro, por razões de luto?

Tudo o que, a meu ver, falta na literatura policial no seu conjunto, encontrei-o por inteiro, num autor.

O autor chama-se Simenon e criou uma figura que, ainda que com precursores, nunca vi retratado com tal veemência: o Comissário Maigret. Um agente de Segurança médio, razoável, um pouco sonhador. O tema essencial não é o imbróglio criminal em si mesmo, nem a descoberta do culpado, mas sim os seres humanos e atmosfera em que eles vivem. Sobretudo a atmosfera.

Um pequeno porto de mar e o seu café chique em “Le Chien Jaune”; a comporta de um canal, no “Charretier de Providence”; uma cidadezinha do Sul da França, no “Fou de Bergerac”; uma casa parisiense em “Ombre Chinoise”.

Mas para quê prolongar esta lista?

O que resulta singular nestes romances – de facto novelas longas – é que, no fundo, ficamos indiferentes à solução, se bem que a história seja, na maior parte das vezes, construída com uma receita que fez as suas provas. Mas flutua entre as linhas este ar de sonho, brilha uma luz que dá ás coisas mais pequenas, mais modestas, uma vida por vezes misteriosa.

O culpado?

É um homem entre os outros, como acontece na vida quotidiana.

E o facto de ser desmascarado não tem tanta importância, não nos sentimos “aliviados”, não há “golpes teatrais”, a história não termina; para, é mais um período da vida, vida que continua, ilógica, apaixonante, triste e grotesca ao mesmo tempo.

Queria agradecer a Georges Simenon. O que sei fazer, aprendi-o com ele. Foi o meu professor. Não somos todos alunos de alguém?

Mas afasto-me do assunto. Conhece provavelmente muito melhor do que eu os factos que expus.  Infelizmente não tive ocasião (e o prazer) de ler um dos seus livros. Mas estou absolutamente certo deque todas as críticas que fiz ao género “romance policial”, aos seus “heróis” e “detectives” não lhe dizem respeito. Estou convencido que o seu livro “Trois Kiosques au Bord du Lac” teve um enorme sucesso. Se esta minha carta pode, por vezes, parecer professoral, pode crer que nunca tive tal intenção. Tratava-se apenas, para mim, de formular claramente algumas ideias E como fazê-lo sem exprimir essas ideias por palavras?

Com toda a amizade, seu

Friedrich Glauser.

Está definido o nosso Autor.

Jakob Studer, a figura policial por excelência de Glauser

OBRAS

–        WACHTMEISTER STUDER

  • WACHTMEISTER STUDERS ERSTE FÄLLE – CONTOS CURTOS (12):
  • LE VIEIL ENSORCELEUR
  • INTERROGATOIRE
  • CRIMINOLOGIE
  • LE COUPLE DÉSUNI
  • MALCHANCE
  • LE ROI SUCRE
  • PLAINTE À UN MORT
  • DES CHAUSSURES QUI CRAQUENT
  • UNE FIN DU MONDE
  • LE CAPORAL VOYANT
  • LA MORT DU NÈGRE
  • MEUTRE: UNE HISTOIRE DE LA LÉGION ÉTRANGÈRE
  • DIE FIEBERKURVE
  • MATTO REGIERT
  • DER CHINESE
  • WACHTMEISTER STUDERS NEUER FALL – CONTOS CURTOS

[1] Em 1939, aparecerá em livro, nas edições Morgarten de Zurique (in “Lieux Occupés”, de Frank Göhre, prefácio a “Studer et l’Affaire du Chinois”, Edições “Le Promeneur”,1991, Zürich, págs. 7/10).

Carlos Macedo

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