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Anne Perry, como autora, está entre os que merecem leitura.
Apostando numa reedição sofisticada (em quase tudo) do melodrama romântico, um pouco à imagem da sua vida (e nisso, também se aproxima das irmãs Brönte), intensamente sobrecarregada de morte; de uma imaginação centrada no tipo de vida que viveu.
E que lhe não causou qualquer incómodo, remorso ou vergonha.
A par como uma (Freud adoraria estudá-la) aceitação evidente (corporizada nos seus livros) dos rituais da época vitoriana no seu apogeu, mesmo quando a protagonista parece querer apresentar-se como uma rebelde, pelo menos na opção sexual juvenil de um marido de casta inferior (inspector da polícia).
A reconstituição histórica é muito cuidadosa, quase enfadonha na descrição do quotidiano da época, mas bem fundamentada historicamente.
“Era um dia perfeito. Um dia de sonhos, de preparativos, de arranjos de costura da última hora. Tiravam-se das arcas, vestes interiores lavadas, lavavam-se os cabelos, arranjavam-se os caracóis, escovavam-se as capas. E no último momento, fazia-se uma discreta maquilhagem. Estava-se em 1881! Mr. Disraeli acabara de falecer, todas as ruas de Londres estavam já iluminadas a gás; as mulheres já podiam inscrever-se na Universidade! Gilbert e Sullivan escreviam operetas como H.M.S. Pinnafore! Que pensaria disso Napoleão, se fosse vivo?”.
Quase toda a sua obra se restringe a duas sagas: a “série Thomas Pitt”, que nos retrata o mundo vitoriano no seu paroxismo (anos 70-90, do século XIX), tendo como detetives o Inspetor Thomas Pitt, da polícia londrina, de origem popular, e sua mulher, Charlotte Ellison, originária duma família muito rica da alta burguesia, a quem conheceu e por quem se enamorou, no primeiro romance do ciclo: “The Catter Street Hangman”.
Um e outro, unidos numa retidão moral, que os faz permanentemente entrar em choque (muito relativo) com as tremendas hipocrisias da época vitoriana.
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Aparentemente, nos livros de Perry, conseguem melhores resultados, com a sua indomável independência de espírito, que os esforços da Metropolitan Police, no seu conjunto…
Nos romances de Anne Perry há um quê de Jane Austen, duma descrição gentil, mas por vezes ferozmente crítica, do sistema de castas dentro da sociedade vitoriana (desde quem se escolhe para genro, como quem se escolhe para amigo, médico, cozinheira ou até merceeiro…).
A outra saga é a da série William Monk, modesto detective privado, pago ao dia, amnésico total, que parte do zero, à procura do “seu” passado, nesse mesmo mundo vitoriano (mas uma geração mais cedo), sempre ajudado pelos seus amigos Hester Latterly (antiga enfermeira da equipa de Florence Nightingale), Oliver Rathbone e Lady Callandra.
Disse A. Perry (In “Le Polar”, de Jacques Baudou e J.-J. Schleret, Larousse, pág. 286): “Adoro a época vitoriana por que encontro nela contrastes muito violentos entre as classes sociais inferiores e superiores, costumes, códigos morais, porque a enorme riqueza ombreia com a mais negra das misérias, por causa da importância dada à noção de “reputação”. O que constitui outros tantos motivos para crimes, agitação social, injustiças…”.
O problema é que este confessado amor, torna os seus últimos livros um pouco repetitivos, mesmo maçadores, e Monk e Pitt quase se não distinguem, numa sociedade onde os tentam fazer entrar pela porta de serviço, os mordomos os designam por “persons” e não “gentlemen” e todos os pobres (da classe média) são bons e os ricos, maus.
Atualmente com setenta e nove anos, nasceu em 1938, em Londres, filha de um célebre matemático e de uma beata presbiteriana. Por causa dos graves problemas de saúde que a atormentavam (DPOC, tuberculose) a família muda-se para a Nova Zelândia, em 1948. Para Christchurch, mais exatamente. As suas longas e numerosas hospitalizações, por esse motivo, estarão, segundo ela (aliadas ao enorme interesse do seu padrasto em ler e saber mais sobre a vida e época de Jack, The Ripper) na origem do seu gosto pelo policial de clima vitoriano, pelo imaginário, pelas histórias de crimes….
Em 1959 volta a Inglaterra, parte de imediato para a Califórnia, onde, após ter exercido numerosas profissões, de hospedeira de bordo a vendedora (e sofrido inúmeras recusas de editores de todo o tipo) consegue, em 1979, ver publicado o seu primeiro romance: “The Catter Street Hangman”.
Atualmente na Escócia (ao norte de Inverness), passou a publicar, desde então, dois romances por ano (já vai em mais de vinte…), “um Pitt na Primavera, um Monk no Outono”.
William Monk, por seu lado, começou a viver em 1990 (“Stranger in a Mirror”) e já existem publicados, treze inquéritos seus (“Funeral in Blue”, o último).
Anne Perry, recentemente foi muito falada, na comunicação social e, pelos vistos, pelo pior dos motivos. Descobriu esta que Anne Perry, de seu verdadeiro nome Juliet Hulme, era uma rapariga julgada e condenada como coautora de um homicídio, tinha ela quinze anos.
O nome Perry era o do seu padrasto.
Com efeito, Juliet ajudou a sua mais íntima amiga, Pauline Parker, de dezasseis anos, a matar a própria mãe (assassínio cometido em 1953, na Nova Zelândia) para poderem viver juntas.
Foi um homicídio particularmente repugnante: rebentaram literalmente a cabeça da senhora, batendo-lhe à vez, com um tijolo metido dentro de uma meia, até a matarem.
Passou cinco anos na prisão, em estabelecimentos diferentes, em condições severas.
Atualmente a amiguinha de Anne Perry vive em Auckland (Nova Zelândia) e tornou-se uma católica devota. Ela, por seu lado, mórmon.
Aparentemente, as duas amigas nunca mais se voltaram a encontrar. Só após a publicação nos jornais (nomeadamente no “Sunday Times”), Anne Perry tentou justificar-se publicamente, de forma muito desajeitada (para não dizer, improvável) acrescentando, no entanto, que não voltaria a responder a perguntas sobre essa matéria.
Disse não se lembrar bem do que se passara e que o motivo era que as duas jovens não “queriam ser separadas”.
Ora os pais de Anne Perry iam mudar-se para a África do Sul. A mãe de Pauline não a deixava partir com os Hulme e elas gostavam tanto uma da outra que não suportaram a ideia. Este caso já inspirou livros, peças de teatro e um filme com Kate Winslet (“Heavenly Creatures”).
Na biografia autorizada de Perry nada disto é referido, mas abundam os momentos edificantes e cândidos. Refere, em muitos dos seus livros, Óscar Wilde, Yeats e outros e nunca lhes coloca (inventa) palavras que os diminuam.
Outro exemplo: uma vez dirigiu-se ao pai com um problema, esperando que fosse ajudá-la; mas não foi capaz de enunciar esse problema de uma forma adequada, acabando por dizer que não sabia explicar-se, embora soubesse o que pretendia exprimir. O pai respondeu-lhe que ela de facto não sabia, porque se soubesse, dizia. Perry ainda hoje considera (diz ela) que saber exprimir-se é uma das capacidades mais importantes que se podem ter na vida.
Excluídos os tijolos como forma de expressão, espero.
Por mim, não quero esquecer que, em 2000, recebeu (merecidamente, creio) o prestigiado prémio Edgar Poe pela sua obra “Heroes”.
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ROMANCES POLICIAIS
CICLO WILLIAM MONK
- STRANGER IN A MIRROR, 1990
- CAIN HIS BROTHER, 1995
- DEFEND AND BETRAY, 1992
- SINS OF THE WOLF, 1994
- FUNERAL IN BLUE, 2000
- THE SILENT CRY, 1998
- THE ONE THING MORE, 2000
- SLAVES OF OSESSION, 2000
CICLO THOMAS–CATHERINE PITT
- THE CATTER STREET HANGMAN, 1979
- CALLENDER SQUARE, 1980
- RESURRECTION ROW, 1982
- RUTLAND PLACE, 1983
- BLUEGATE FIELDS, 1984
- FARRIERS’ DEATH AT THE DEVIL’S ACRE, 1985
- CARDINGTON CRESCENT, 1987
- SILENCE IN HANOVER CLOSE, 1988
- BETHLEHEM ROAD, 1990
- THE FACE OF A STRANGER, 1990
- HIGHGATE RISE, 1991
- A DANGEROUS MOURNING, 1991
- BELGRAVE SQUARE, 1992
- A SUDDEN, FEARFUL DEATH, 1993
- FARRIER’S LANE, 1993
- THE HYDE PARK HEADSMAN, 1995
- RUTLAND PLACE, 1994
- DEATH AT DEVIL’S ACRE, 1992
- THE TRAITOR’S GATE, 1995
- WEIGHED IN THE BALANCE, 1996
- PENTECOST ALLEY, 1997
- ASHWORTH HALL, 1997
- WHITED SEPULCHRES, 1997
- BRUNSWICK GARDENS, 1998
- BEDFORD SQUARE, 1999
- THE WHITECHAPEL CONSPIRACY, 2000
- A DISH TAKEN GOLD, 2001
- FUNERAL IN BLUE, 2001
- SOUTHAMPTON ROW, 2002
- DEATH OF A STRANGER, 2002
- SHOULDER THE SKY, 2004
- THE SHIFTING TIDE, 2004
- LONG SPOON LANE, 2005
OUTRAS OBRAS
- THATEA (FANTÁSTICO)
- SHADOW MOUNTAIN (FANTÁSTICO)
- THE ONE THING MORE (HISTÓRICO)
- HEROES – PRÉMIO EDGAR POE, 2000
Carlos Macedo