( Dois amigos🙂
«Pois eu, mano, numa destas noites sufocantes de Verão, já marado de tanta peste, viajei até à janela do quarto para ver uma nesga do Tejo e dei por mim a escutar as sinapses: por que não vais antes a Santarém.»
«Nice, man ! Santarém, a city marketing do Amazonas, cheia de praias com matulonas achocolatadas, em topless, d ́arrebentar c´o trânsito…»
«Falo da portuguesa. Aquela junto ao Tejo, suspensa no tempo. A gótica.»
«Ah, sim! a gótica…o meu avô por acaso até acho que morreu c´o a gótica.»
«Gota, pá!, a doença. Gótica, gótica, a cidade de Santarém, de cá não do Brasil, onde arrancaram ao Coelho, o carrasco de Inês, o coração p´las costas numa praça.»
« Caraças, man!, o Passos Coelho despachou a Inês? E ainda dizem mal do Rio. Por acaso não sabia. Mas devem ser tudo intrigas da política, fake news ou assim…
«Bom, não interessa. Ouve-me esta: Fui à janela com uma ideia vaga: espairecer pelas várzeas desse Ribatejo em seu alto cume na mais histórica e monumental das nossas cidades.»
«Chiça, penico!, até me vieram as lágrimas. Bora lá! Deixas-me levar o bólide, né?»
«Vamos de comboio. É mais ecológico. Preciso de desanuviar das tonteiras de um certo jornal que por mexeriquice quis ver um desígnio político qualquer na minha última estadia em Santarém. Por isso mesmo é que vamos – Pronunciei-me!»
«O.K., man! Tudo bem em Santarém! O que dizia o jornaleco?»
«Que o melhor de Santarém são os comboios p´ra Lisboa. A gozar, topas!?»
«Yes, man. Ganda lata, pá!»
«Foi o que pensei. Daí irmos de comboio. Mas a partir de Lisboa. De cá para lá, mordes?»
«Claro! Com que então o melhor são os comboios? Essa é bacana! Quando um gajo a assapar pela auto street, prego na tábua à Cabrita, a dar-lhe sem nunca tirar, põe-se lá antes de partir. Ele há cada morcão, palavra d´honra!»
«Pois, para lá é que vamos! A essa imortal capital do gótico, fantasmas, mortos-vivos, andrés venturas…»
«Chega man! Aventuras é comigo.»
( Mais tarde. Zona histórica da urbe. Noite e solidão. Ruas desertas. Pios cortantes de coruja. No céu, uma lua pálida, má🙂
«Cá estamos, mano. Tal qual reza o book: Tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuida-se entrar na grande metrópole de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada, mas que desapareceu do mapa. O Saara ao pé disto é um pagode chinês. Até cheira a enxofre! Dez da noite e não se enxerga um vivo. Que foi aquilo? Parecia um uivo de lobo…»
«Bué de fixe, man. ´Té enregela os coisos. Ouve!…São correntes a arrastar ou quê? Drácula protege os audazes! Onde é que se penetra?»
«Segundo o mapa é aqui perto. Um beco a descer. Logo à esquerda uma mansão abandonada. Galga-se o muro baixo e estamos no quintal. Ao fundo, no chão, debaixo duns ciprestes, deve estar uma porta chapeada. Puxa-se pela argola et voilá estamos vestidos e calçados na Casa dos Fantasmas. Pelo menos é o que diz o Rebelo da Silva.»
«O gajo também costuma cá vir? Fogo, está em todas!»
«Quem, mano?»
«O Rebelo de Sousa, o choné de Belém. Quem havia de ser?»
«Rebelo da Silva, o escritor que viveu aqui perto e escreveu A Casa dos Fantasmas que eu descodifiquei. Da Silva, não de Sousa.»
«Dass…silva? ´Tá bem pronto! Topa, man, ganda cena!»
«Deve ser a Casa. Vidros partidos, buracos nas paredes, teias d´aranha, tudo a abanar. A malta da Câmara cuidou bem disto. Repara, à volta é tudo assim…»
«Nice man, mereciam o prémio Família Addams. Dos nossos para os nossos. Olha, o muro é este. Vá, empurra aí.»

( Subterrâneo amplo, iluminado por néons roxos, rubros etc., velas e candelabros. Arcos ogivais que abrem para galerias internas. Decoração gótica: mármore negro nas paredes; mobiliário pesado; crânios, conchas; pedacinhos de ossos. A um canto, esbatidos na névoa que domina, quatro esqueletos sentados à volta duma mesa.)
«Ganda nóia, man! Vê-me esta bruta cena! Quem havia de adivinhar isto? Ali, ao canto, são esqueletos ou quê? Bora lá ver?»
«Não te dizia? E andam aí uns totós do contra a jurarem que não se passa nada nesta city, só dívidas, estátuas vivas de atrasados que não valem metade duma daquelas torturas da estátua da Pide; pimbalhada a dar com um pau; e uma elite quase só de zombies que adormeceu no tempo do Senhor Afonso quarto e ainda não acordou. Não tropeces nesse caixão…»
«Ena pá!, os gajos estão a jogar poker, se calhar são aqueles fantasmas de que falaste. Repara: um tem uma cicatriz no crânio. Aquele, todo empenado, uma espada ferrugenta à cintura…»
«Sim, e o que está ao lado um capuz de frade. O outro, em frente, é que não distingo bem daqui…»
«Será que nos vêem?»
«Julgo que não. São espectros. Ectoplasmas. Olha, vai ali um bando deles em fila, a entrar naquele arco. Espera…deixa-os ir. Estão lá umas letras na parede da entrada…»
«Man, parece uma ementa de restaurante: Sopinha d´olhos d´autarca rasca; Coronavírus verdes à la Alvalade; Orelhas cruas à Lampião; Mãozinhas de gamanço à la J.B.; Miolos mexidos, doces; Sangue fresco à discrição…Porra, man! até estou agoniado.»«Deve ser hora de jantar. Mesmo assim é estranho.»
«Pá, topa-me ali aquela ruiva cheia d´ ondas, tatuada, saltos altos, licra a apertar, blusão negro e tachas, airbag duplo a arrebentar c´ a t-shirt, e andamento de pantera solitária. Nem acredito, man!»
«Chiça! São os canhões ou é o meu coração que bate! Mas tem cuidado, aquilo que vemos é só fachada. Um ectoplasma. Vai por mim !»
«Calmex,man. Não posso resistir. Aguenta aí os chavalos que eu venho já.»
( Dez minutos depois )
«Mano, até que enfim? Onde é que te meteste? Fui à tua procura mas isto é o labirinto de Creta. Pensei que te tinham desmaterializado. Estás bem?»
«Tinhas razão, a boazona era só luz e ondas a pairar. Segui a coisinha fofa tep tep, mais hipnotizado que um troll dos smartphones. Quando dei por mim estava num salão tipo das arábias, ´tás a ver?, almofadas, tapetes, espelhos, uma cama nas nuvens toda artilhada, e dois duendes do Senhor dos Anéis que deviam ser criados de quarto da beldade dos infernos. A certa altura, a divina aparição parou. Lentamente, virou-se cá prò Egas e deitou-me uns olhões que pareciam fogo preso num arraial do outro mundo, a mandar lume. Ao mesmo tempo, ia-se despindo sem desviar os faróis, e começou a destravar as alças do airbag. Man, aquilo era o verdadeiro paraíso perdido! Avancei p´ra ela com as papilas engatadas mas, quando julguei tocar-lhe, senti um esticão p´lo espinhaço acima pior que meter os dedos molhados numa tomada de 500 volts. Quando acordei, os sacanas dos duendes estavam a rir-se baixinho em cima da cama. Da beldade nem rasto!»
«Tudo energia negra! O que importa é estares salvo. São hologramas que já foram vivos. Nunca se sabe. E lá em cima na city tudo deserto…na maior! Espera …parece um fio de sangue aí no teu blusão…chega cá…e um bilhete: Lili Bloody Love, Doors of Sunlight, 25- Santarém (Vale de Estacas). Levanta lá a cabeça…isso…Eh, pá! tens aqui dois buracos no pescoço!»
(Começa a ouvir-se a música da parte final do Gabriel´s Oboe, de Ennio Morricone, e lentamente CAI O PANO)
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by Mário Rui Silvestre