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Viagens ao interior da literatura de crime e mistério (1): A questão da identidade e a esfera da autonomia do subgénero literário

IO QUE É LITERATURA POLICIAL

O crime é elemento essencial do quotidiano, nos diferentes avatares na evolução dos seres humanos ao longo da sua história.

Por exemplo, a destruição de outras vidas.

Graças a ele comemos, porque alguém matou seres vivos para adornar a nossa mesa.

Vestimos (ainda) peles de mamíferos e aves, porque são belos, (e aí, por vezes, o crime é genocídio, sobretudo se estas pertencem a espécies em vias de extinção…).

Praticamo-lo, sem qualquer escrúpulo, para exibir troféus que temos na biblioteca ou na sala e mostramos aos amigos.

Matamos para obter remédios que alegadamente nos curarão; matamos para praticar desporto…

Matamos para obter flores que deixamos morrer lentamente numa jarra. Matamos uma bela nogueira para fabricar um cachimbo (que, justiça poética, nos acabará por matar a nós, fumadores…).

E esta enumeração poderia arrastar-se até ao infinito.

Naturalmente, porque não as temos por inteligentes, nenhuma das nossas vítimas, animais ou vegetais, são, para nós, verdadeiramente ocasião de remorso.

Mas também não ignoramos que todos somos espiões (pelo menos na tertúlia de almoço), todos somos assassinos, pelo menos de moscardos, autores e mandatários de crimes (pequenos crimes, é certo, na esmagadora maioria dos casos) em benefício próprio, burlões (no alfarrabista), chantagistas e sabe-se lá que mais, em amor e política.

Não admira, pois, que este comportamento, socialmente condenado (em teoria) seja uma fonte inestancável da narrativa escrita, do cinema, do teatro, de televisão, de banda desenhada, de música sinfónica ou ópera.

No fundo, a literatura de tema criminal, limita-se a potenciar um atavismo inerente ao instinto predador da humanidade.

Recorrendo a uma forma de pensar e escrever inéditas.

Um escritor deste género de ficção descreve um mistério (de ressaibos metafísicos, um crime crapuloso, um assassinato de conteúdo social).

Em cada parágrafo do que se nos entrechoca na mente, se depararão encruzilhadas.

E nos mais imaginativos, há necessariamente que prosseguir num caminho que convença, cative, aterrorize e divirta, para chegar ao fim.

Na mais clássica das tradições, o efeito pretendido é maior coerência no mistério, uma charada leal, se possível, revestida (ou não) de emoções.

A arma do crime poderá ser um revólver ou cianeto. Mas a necessidade faz lei.

O cianeto será escolhido, em vez do revólver, “naquele” romance policial, porque, no enredo que tenta desfiar em palavras, apenas ele justificará a trama que se irá seguir e só ele poderá dar base coerente ao desenlace…

Na ficção policial, o futuro está constantemente a condicionar o passado.

As Parcas escolhem, entre todos os possíveis futuros, apenas um que o homem (mercê divina) ignora, seguindo geometrias cósmicas que não dominamos. Na obra de mistério, a direção do tempo, na cabeça do Autor, vai do fim para o princípio.

Por vezes, de forma espartana e linear, por vezes com ostentação e ouropéis barrocos, por vezes com ressaibos de crítica social ou humor, por vezes com horrores metafísicos que escurecem o ambiente, por vezes com coloração poética, de perfume psicológico ou autobiográfico.

Mas, adornando as platibandas floridas do início, existe uma longa marcha que, por enquanto, só o autor conhece.

Que desafia o leitor a descobrir por si, antes do termo da viagem que lhe propõe, o desfecho da jornada… o que não é fácil.

Só após anos e anos de interrogatórios (como vos dirá qualquer polícia experiente e lúcido), formulando milhares e milhares de vezes o mesmo tipo de perguntas, se consegue descodificar um tique facial, um lapso verbal, um estado de espírito: os literatos falam de hipotexto que também aqui, se pode aplicar, pois existe quase sempre um abismo (entre o que se diz e o que se mantém secreto…).

John Creasey

Só o tempo e muita paciência ensinam a treinar a vista, o ouvido e a atenção para (sem grotescas inverosimilhanças) se fazer um brilhante diagnóstico à Sherlock Holmes. E não apenas no quadro social e mental da época vitoriana.

O enigma, o mistério, o horror do crime, foram, desde sempre, fonte de inspiração da criatividade humana.

Da “serendipity” iraniana à fábula de Édipo; da “Odisseia” de Homero a “Crime e Castigo”, de Fedor Dostoïevsky; de “Macbeth”, de Shakespeare, a “Bleak House” de Charles Dickens; das “Caves do Vaticano” de André Gide a “Hommes de Bonne Volonté”, de Jules Romains; de “Ashenden”, de Somerset Maugham, a “Un Crime”, de Georges Bernanos.

No âmago das (boas) obras deste tipo não está, em geral, o crime, mas o uso que dele é feito pelo autor[1].

Numa obra magistral da literatura policial, “Department of Dead Ends”, da autoria de Roy Vickers, ou noutra que dificilmente se esquece, o livro de James Cain, “The Postman Always Rings Twice”, faz-se o crime, por assim dizer, ocorrer perante os nossos olhos.

Conhecemos os criminosos (que escolhemos compreender ou odiar). Sabemos de que maneira atuaram.

Nestas obras, procuramos apenas saber como eles serão denunciados aos olhos do mundo, ou, até, aos do leitor[2].

E, também, o porquê de o terem feito.

Por vezes (Pat McGerr) apenas se procura identificar a vítima, dado que tudo o mais já nos é conhecido.

Convém, vencendo mitos arreigados nos que detestam as obras de ficção de crime e mistério, não esquecer que a sofisticação e infinita variedade das obras tidas como policiais é tal que Somerset Maugham[3], afirma: “Poderá acontecer que os Historiadores da Literatura, levados a debruçarem-se sobre as obras de ficção produzidas por escritores anglófonos durante a primeira parte do século XX, abordem muito superficialmente as composições dos romancistas ditos sérios e dediquem toda a sua atenção à imensa e variada produção da literatura policial”.[4]

Patricia Highsmith

Disse mais, com o seu venenoso modo de ver o mundo, a americana Patrícia Highsmith: “… os criminosos são interessantes do ponto de vista da ficção literária, porque se encontram, pelo menos por um momento das suas vidas, livres nos seus pensamentos e atos; tanto mais que, nem a natureza nem a vida se preocupam com a justiça”.

Seja qual for a causa do encanto pela ficção dita “policial”, a que prefiro chamar de crime e mistério (polícia pode não haver; mas, numa boa obra “policial” há, quase sempre, crime e mistério), não restam dúvidas que conquistou já, no património da humanidade, um lugar cimeiro que ninguém lhe conseguirá roubar.

Mas mesmo esta designação gera controvérsia, pois a Inglaterra fala em “Detective Novel”; a França, em “Roman Policier” ou “Polar“; a Alemanha em “Kriminalroman”. Predomínio do mind search britânico (o privado Holmes, por exemplo); domínio da lei e da ordem franceses (Maigret, Gilles).

Para o romantismo, germânico e escandinavo, que se centra no crime e no criminoso, perfeita imagem da pesquisa metafísica do que, sem ter experimentado ainda o que é remorso, procura cegamente vingança, dinheiro, poder, ou mesmo não sabe bem o quê (“Crime e Castigo”)[5] tudo parece brumoso, angustiante, absurdo, incoerente.

Mas produziu e produz constantemente excelentes tratados sobre a complexidade do ser humano.

Digo mais: num romance de crime e mistério não é necessário ocorrer morte, ou até violência, em todo o desenrolar do livro.

Como o demonstraram Charlotte Armstrong (“The Enemy”), Michael Innes, Dorothy Sayers (“Gaudy Night”) ou nos explica P. D. James, no seu extraordinário estudo sobre o carácter de romance policial de “Emma”, de Jane Austen.

Exigia-se-lhe, nos primórdios (agora, já nem isso…) um “mistério”, um ocultar “leal” de factos ao leitor, ainda que se lhe assegurasse sempre a possibilidade de, por dedução lógica dos indícios, insinuados ao longo da obra, poder avaliar as provas, intuir o carácter das personagens, escolher os factos pertinentes, apurar afinal a verdade, antes de o autor a revelar.

E um ritmo, uma dinâmica na ação, que lhe é inerente.

Serão os livros de Leo Perutz, de Paul Auster, de Pérez-Reverte, de Ruíz Zafón, muitos de Umberto Eco, de carácter policial?

Se o são[6], confirmam claramente quão vasto é o seu território.

Tornando-a senhora de uma latitude de temas, formas de abordagem, percurso narrativo, que abrangem quase todos os géneros literários (ou cinematográficos). Sabe-se que centenas e centenas de obras foram escritas para tentar definir o que é o crime e mistério, como género de ficção, no cinema, teatro, televisão ou literatura.

É muito antiga a guerra surda entre os que propõem definir o policial como uma categoria literária aparte (com percursos ideológicos, enredos, linguagem ou parâmetros estéticos, totalmente diferenciados doutros tipos de ficção), dos que a não autonomizam, negando-lhe território próprio e, por fim, os que lhe atribuem um estatuto inferior, de “literatura industrial[7], popularucha, de evasão, escrito para ler e deitar fora (o famoso train reading), digna sucessora dos folhetins de Sue, Dumas e Camilo, numa palavra, da literatura de cordel.

Chamam-lhe popular, género inferior, literatice industrial, evasão alienante, uma espécie de ficção para ignaros, escrita por pessoas incultas, de visão cultural estreita do mundo em que vivem, mercenárias de um marketing sórdido de emoções primárias, de medo, violência e sexo.

O que demonstra que, quem o diz, nada percebeu da forma de arte que é, na banda desenhada ou na literatura, no cinema ou no teatro, a história de crime e mistério.

Chamar-lhe popular, repito, condena-a quase sempre sem direito a resposta, à situação de excluída, de infra-literatura bastarda, ilegítima, indigna de merecer qualquer valoração, estética e cultural. É condenação inócua.

No imaginário coletivo, o interesse mórbido (se quisermos…) pelas aventuras de criminosos ou piratas célebres, de Croquemitaine a Billy the Kid, de Vidocq a Diogo Alves, o medo “do escuro e do lobo mau”, esse imaginário do mal que o ser humano pode ser capaz de fazer, sempre foi partilhado, desde a noite dos tempos, pela aristocracia, burguesia urbana e rural e povo, erudito ou analfabeto…

Neste sentido apenas, essa ficção é realmente popular.

Os romances-folhetim (literatura de cordel, bibliothèque bleue, ou de colportage), vendidos de porta em porta às serviçais (e quase sempre lidos pelas patroas, povoadoras dos salões da mansão…) no género dos de Eugéne Sue ou Paul Féval, não assustam, do Reino-Unido à Alemanha, de Portugal à Itália, os maiores nomes da literatura como deve ser, que os escrevem e assinam pressurosos (e se fazem por isso, muito ricos) …

Disse já e a meu ver é verdade, que o folhetim (difusão de novos valores, identificação com o herói que afronta as injustiças quase sempre misteriosas do poder constituído…) teve um papel decisivo em várias revoluções, a começar pelas francesas de 1789 e 1848.

E aí temos um dos pilares do policial: a luta contra a injustiça, a vitória final da razão.

E ainda a proliferação das obras escritas, com o desenvolvimento da atividade tipográfica, a descodificação imediata, por sindicatos de imprensa e folhetinistas dos jornais, de convicções progressistas, do uso de folhetins de crime (dos ricos maus) e vingança (dos justos progressistas), a crescente banalização do alfabetismo, criam um público fiel (e enorme) de proletariado e pequena burguesia urbanizados[8]. Mas também há outra escola de detratores.

Os que, mais elitistas, apelidam a literatura policial de literatura paralela (de quê?), de paraliteratura, não ocultando uma repulsa mesquinha, uma arrogância pomposa, tendo origem em vagos críticos, de que ninguém se lembrará, dentro de poucos anos.

Edgar Morin[9] leva a sua arrogância petulante ao ponto de dizer que, a partir dos anos trinta do século XX, “as classes sociais tornaram-se muito diferenciadas, o que implicou uma diferenciação correlativa, ao nível das produções culturais: os policiais”.

Sem se esquecer de salientar (para relegar o crime e mistério para a cave da subliteratura), a evidente “… formação e o desenvolvimento do novo proletariado, a democratização do consumismo, a progressão de certos valores”.

Concluo eu que este tipo de livros deverá o seu êxito a serem fáceis de “assimilar” por empregaditos urbanos, com razoável nível de escolaridade, mas de fraco poder de compra…

Que diriam de tais conceitos, Artur-Pérez Reverte, o introdutor do xadrez misterioso, com enigmas de sofisticado hermetismo num dos seus livros; Michael Innes, o Shakespeariano de elegância constante; Edmund Crispin, o Angus Wilson do mistério; Manuel Vazquéz Montálban, o anarquista cozinheiro, retratista implacável da agonia do franquismo; P. D. James, a Baronesa psicóloga, retratista de comportamentos sociais da Inglaterra do economicismo, de recorte Bröntiano; Gonzalo Torrente Ballester, o velho conservador galego, da “Muerte del Decano”; Jorge Luis Borges, o genial autor de dezenas (repito, dezenas) de obras de literatura policial, todas diversas, todas excelentes; Umberto Eco e o rejuvenescimento do policial histórico, com “O nome da Rosa”; Georges Bernanos e o seu terrível “Un Crime”; André Gide e as suas “Caves du Vatican”, Graham Greene e os seus inúmeros policiais, sombrios como a justiça do seu Deus; Somerset Maugham e o seu encantador (e autobiográfico) “Ashenden”?

Karl Marx, no “Manifesto Comunista”, diz-nos que a burguesia “…criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que tinham feito todas as gerações passadas, consideradas em conjunto. Foi ela a primeira que fez ver aquilo de que a atividade humana é capaz: criou maravilhas diferentes das pirâmides do Egito, dos aquedutos romanos, das catedrais góticas”.

E, acrescento, potenciou as virtualidades dum género de ficção, muito sua, a que chamamos policial, de crime e mistério, polar.

Com uma observação arguta do mundo em que vivia o seu autor, soberbas análises do que de melhor e pior tem o ser humano; histórias de vidas banais, onde saltitam e fervem as taras das diferentes classes sociais, as preocupações dominantes de santos e monstros, que refletem, volens nolens, as lutas pela transformação da humanidade.

Usando talvez, especificidades e códigos comunicacionais, que lhe outorgam uma identidade própria.

Popular?

Seria exato, se se estivesse a pensar, como Bourdieu se “… le lexique dit « populaire » n’est autre chose que l’ensemble des mots qui sont exclus des dictionnaires de la langue “légitime”…”.

Uma linguística de castas que serve apenas aos que ocultam um modo classista de retratar uma humanidade em permanente mudança.

Para estes, será apenas legítima a fala politicamente correta dos Conselheiros Acácios, que teimam em não morrer.

Respondendo a Edgar Morin, que acima referi, dizem J. Passeron e C. Grignon[10] que este modo de ver “repousa sempre sobre o anti-intelectualismo de alguns intelectuais que aceitam, porventura para se usarem dela, uma hierarquia literária-social dos objetos de criação, pondo alguns na série B”.

Numa palavra, há quem tenha sempre, ao longo de gerações, tolerado, de má vontade, o género policial como literatura marginal (aliás, muito bem acompanhada pela ficção científica, pela literatura fantástica, pela banda desenhada).

O que, como sabemos, nunca acontece na outra literatura que aceita, por coerência, na sua “subphilae biográfica“, as memórias de Ronaldo, Mourinho ou Cristina Ferreira, na ficção “esotérica“, os livros de Paulo Coelho ou Rodrigues dos Santos, as divagações e vinganças mesquinhas dos estados de alma de políticos na reforma.

Mesmo quando alguns paradigmas da verdadeira literatura, pela porta das traseiras, vão mendigar uns lucros suplementares em livrecos policiais, como “Os Novos Mistérios de Sintra” (João Aguiar, Alice Vieira, Mário Zambujal, Rosa Lobato de Faria) …

No mundo globalizado (em que estamos condenados a viver), quando dois escritores se encontram, nunca é para melhor se compreenderem, mas para se vigiarem de perto, para lutarem com maior eficácia.

No estado ou na empresa, na literatura ou no espetáculo, os encontros são stressados combates de morte, mais ou menos camuflados, numa pugna pela sobrevivência e êxito que, pouco a pouco, nos vai matando a todos.

Por dentro.

Raros são os momentos em que o homem se humaniza, regressa em imaginação a mundos, da ficção científica ao humor, do fantástico ao romance de capa e espada, onde, pela evasão, se realiza (por procuração, é certo…), se torna menos malandro e um tudo nada mais identificado com valores éticos fraternos.

Onde, numa palavra, pode largar, sem perigo, o seu elmo e o seu escudo. Por isso muitos dizem desprezar o que apenas odeiam.

Odeiam (sem o admitir, aliás) o darem-se conta de que são incapazes de mergulhar no banho de juventude adolescente reencontrada, como o é este juvenil mundo da ficção de crime e mistério, da aventura, da antecipação, do gótico e do épico, onde a imaginação do leitor ganha mais fibra, vastidão de horizontes, abertura de espírito.

Recorramos à memória do que lemos e nos foi grato. Essa confusa, mas agradável meada, sem fronteiras visíveis, de inúmeros episódios de imensas obras de arte, romances ou pinturas, sinfonias ou filmes, entre o fantástico, a antecipação, a aventura, a epopeia esotérica, o policial que nos marcaram. O mistério, no meu caso, dum Sheridan Le Fanu; dum Jorge Luis Borges; dum Stevenson, dum H. G. Wells, todos fascinantes e estuantes de ação, uns talvez mais respeitáveis que outros, alguns até tornados “grandes nomes da Literatura”…

Mas, afinal, o que é aquilo a que se convencionou chamar literatura de crime   e mistério?

Ator Gino Cervi no papel do comissário Maigret, 1967

A parelha Boileau-Narcejac dá-nos uma boa definição de partida[11]: “Para onde se encaminha o romance policial? Para parte nenhuma. O romance policial é uma macieira que dá diferentes variedades de frutos, mas todos continuam a ser maçãs”.

Não me parece mau, para começar.

Thomas Narcejac ele próprio, diz-nos que “a novela policial é um género misterioso, que ninguém sabe exatamente donde vem e para onde vai, o que é e o que quer ser. Torna a colocar problemas que tinham ficado sem resposta”.

Se, com isto, pretende dizer que ela é uma literatura da “ambiguidade”, demonstra que nunca a entendeu. Se lhe pretende salientar o evidente carácter proteiforme, como creio, está totalmente dentro da razão.

Régis Messac, por seu lado, considera-a uma “narração, consagrada, antes de mais, à descoberta metódica e gradual – por meio de métodos reais e circunstâncias exatas – de um acontecimento misterioso”. Definição porventura redutora que só é aplicável, quando muito, ao período entre duas guerras (20-45).

Para Francesco Fosca “O autor de uma novela policial expõe ao leitor um problema que este deve tentar resolver… poder-se-ia, de forma sintética, definir a novela policial, como a narração de uma caça ao homem, mas (e isto é o fundamental), de uma caça em que se utiliza um tipo de raciocínio que analisa factos, aparentemente insignificantes, para tirar deles uma conclusão”.

O carácter espartilhante desta definição é ainda maior.

A análise psicológica dos comportamentos da vítima ou do assassino, a crítica social, o humor, o ambiente histórico, o sentido clássico de tragédia, a aventura, o surrealismo ou o carácter fantástico (como ela tem provado ao longo da sua história), não tiram carácter ou genialidade às histórias. Antes pelo contrário.

Como quase sempre, tem razão Jorge Luis Borges, ao dizer-nos (em “Otras Inquisiciones”): “No la explicación de lo inexplicable, sino de lo confuso, es la tarea que se imponen, por lo común, los novelistas policiales”.

Mas pode ainda ir-se mais longe.

Existe um denominador comum às “Aventuras de Nick Carter”, lançadas em Nova York por John R. Coryell, em 1884; ao “Crime e Castigo”, de Fedor Mikhaïlovitch Dostoïevski, escrito em 1867; ao conto “The Gold Bug”, de Edgar Allan Poe, de 1847, ou ao “Maltese Falcon”, que escreveu Dashiell Hammett, de 1930? Existe.

Jorge Luis Borges disse-o, ao falar desta literatura, capaz de criar mundos de efabulação portentosa e de emoção trágica (falava, no momento, de G. K. Chesterton) que “…apresenta um mistério, propõe explicações de tipo demoníaco ou mágico e substitui-as, por fim, por outras que são deste mundo”.

Há, pois, racionalidade e lógica na base criadora da literatura de crime e mistério.

Que eu vejo deste modo: O retrato do ser humano, entregue aos sentimentos que nele são mais naturais: o amor e o ódio, o gosto pela vida e o gosto pela morte, um todo inseparável, que por vezes cresce e se torna incontrolável, tanto em criminosos psicopatas, como no pacato cidadão do andar ao nosso lado.

E o processo de descoberta do porquê. Seja quem for que ative o facto gerador de tudo. Até o próprio autor do texto.

A luta pela justiça, o primado da razão sobre o instinto (ou o contrário), a inelutável pulsão homicida do sociopata, a obscura reversibilidade da paz de espírito pela cupidez, pelo ódio, pelo amor não correspondido, são uma percentagem ínfima das facetas, pelas quais o escritor pode relatar aqueles sentimentos que referi.

O importante, no policial, é o percurso. Como lembra Caleb Carr em “The Angel of Darkness” (Nova Iorque, 1997), citando Theodore Roosevelt: “O importante não é ter ido à Mansão das Trevas; é ter conseguido sair de lá”. A definição (perversamente mesquinha) do poeta Wystan Hugh Auden (sem dúvida invejoso do êxito do seu companheiro da tertúlia Isherwood-Spender, Cecil Day-Lewis, que, com o pseudónimo de Nicholas Blake, se tornou um escritor policial de sucesso) é, a meu ver, profunda e deliberadamente empobrecedora.

Diz ele: “A fórmula de base é a seguinte: acontece um homicídio, numerosas pessoas são suspeitas. Todas, exceto uma, o assassino, são eliminadas. O assassino é preso ou morre”.

É entristecedor determo-nos mais nesta demonstração de paternalismo pedante (como, por idênticos motivos, nas definições dos Mandamentos do policial, de S. S. Van Dine a Ronald Knox…).

Nem mencionarmos o facto de que, em muitos livros de crime e mistério, não ocorrerem homicídios (“Gaudy Night”, de Dorothy Sayers).

No entanto, cabe explicar que este género literário possui uma latitude, uma pujança e uma grandiosidade literária muito superiores àquelas que os émulos de Auden pretendem atribuir-lhe.

E é capaz de fazer saber que tem forma de ser reconhecido, que se dotou, com o correr do tempo, de uma autonomia sem sofismas literários, e de uma vitalidade que o fez evoluir sempre, ao longo dos seus quase três séculos de existência…

Veremos seguidamente uma questão aparentada com a identidade e autonomia da literatura de crime e mistério – a sua qualidade e com que padrões a podemos avaliar.

Carlos de Macedo


[1] O que não impede a rápida eclosão de inúmeros ritos canónicos, obsoletos e dogmáticos, definindo o que pode e não pode ser escrito, como os que tentaram fazer Ronald Knox ou Van Dine, coerentes com a alma de amanuenses de public service vitoriano que os espartilhavam, apesar de estarmos já nos anos vinte, ter ocorrido uma mortífera guerra mundial e circularem automóveis nas ruas….

[2] Nada obriga à inevitável presença dos estereótipos que tranquilizam o leitor mais fanatizado, ao deparar-se, uma vez mais, com o “crème de menthe” de Poirot ou os cachimbos de Holmes sempre presentes, fazendo-os sentir-se em casa…

[3] “The Vagrant Mood”, Heinemann, 1952, Londres.

[4] Convém não esquecer, entre muitos outros que de momento me não ocorrem, Theodor  Dreiser,  Sinclair Lewis, André Gide, John Galsworthy, Aldous Huxley, Truman Capote, Damon Runyon, Ring Lardner, Thomas Hardy, Pearl Buck, Louis Bromfield, Feodor Dostoievsky, Anton Tchekov, James Thurber,  John  Steinbeck, Ernest Hemingway, Georges Bernanos, Graham Greene, Gonzalo Torrente Ballester, Umberto Eco, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Somerset Maugham, François Mauriac, Arturo Pérez Reverte,  Vásquez Montalbán, Leo Perutz, Carlos Ruiz Zafón, Honoré de Balzac, R. L. Stevenson, escreveram novelas ou livros que poderemos, sem embuste ou manipulação semântica, classificar como sendo de carácter ligado ao crime / mistério…

[5] Opinião similar tem Rainer Hochlitz, no seu prefácio ao “Tratado” de Siegfried Kracauer, de 2001, já citado.

[6] É o que penso. E este atavismo, esta marca de clã persiste, mesmo nos livros da corrente dita Black Mask ou hoje, na atual moda do Pure Horror, que testemunham da justiça desta opinião.

[7] Pierre Bourdieu, “Vous avez dit populaire?”, 1983, A. R. S. S.

[8] cf. Walter Benjamin.

[9] L’Esprit du Temps, B. Grasset, 1975

[10] «Le Savant et le Populaire », Le Seuil, 1989

[11] “Le Roman Policier”, Petite Bibliotéque Payot, 1964

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