Sexta-feira, Dezembro 8, 2023
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O quinto segredo de Fátima ou o milagre de Santarém

Num dia ameno de setembro de 1917 o cónego Formigão, professor de Teologia no antigo colégio de jesuítas de Santarém, entrou no automóvel de umas piedosas senhoras dos arredores desta cidade e dirigiram-se para Fátima onde, desde maio desse ano, diziam que vinha aparecendo uma Senhora vestida de branco a três pastorinhos de Aljustrel, cujo pai de um, era dono da Cova da Iria. Esta missão do cónego, a mando do Patriarca Mendes Belo, então desterrado em Santarém devido ao Vaticano não aceitar a lei laica portuguesa, era importante. Competia-lhe dirigir e orientar a canonicidade teológica daquele fenómeno, em particular algumas heresias que Lúcia tinha declarado ao padre Manuel Ferreira, pároco de Fátima, que Nossa Senhora (sem qualquer outra identificação hagiológica), lhe havia comunicado. Uma destas heresias era de mão cheia!

Diz a suposta vidente, nesse primeiro de quantos inquéritos lhe foram feitos depois (alguns orientados pelo cónego Formigão), e questionada sobre o que lhe dissera a Senhora, que a mesma lhes pedira «que rezassem o terço a Nossa Senhora do Rosário para abrandar a guerra. Só ela é que lhes pode valer» (cf. in inquérito do padre Manuel Marques Ferreira a Lúcia em 1917).

Semelhante despautério teológico, desconsiderando a omnipotência de Deus, era de tal tomo, que o Patriarca se benzeu ao ouvi-lo e disse ao cónego, ali paredes meias com ele, que ou ia a Fátima deitar água benta na fervura herética daquilo, ou ia tudo por água vulgar abaixo, que nem uma migalha canónica sobrava para o bico do Espírito Santo, passe a expressão, aliás boa e iconográfica.

De resto não era preciso dizer-lho. O cónego Formigão, pessoa muito puritana de costumes, já andava de pedra no sapato com pruridos morais sobre aquele assunto. Uma Senhora vir assim do céu e aparecer de saia em cima duma azinheira vista de baixo, não era lá muito decente, além de pouco canónico e nada teológico. Por isso convidou, sem lhes revelar este motivo principal, uma senhoras muito beatas suas amigas, que o levaram no automóvel delas a Aljustrel, para falar com Lúcia sobre isto. 

Não sei o que os/as leitores pensarão desta matéria visual. Se calhar não ligavam nada, embora conhecendo a materialidade doutras deusas da mitologia greco-latina através de Homero, Virgílio ou Camões, algumas por sinal bastante palpáveis como p.ex. a Ísis dos egípcios (paradigma das virgens cristãs, afirmam os eruditos) ou aquela capciosa Vénus dos roxos véus da camoniana Ilha de Os Lusíadas. Eu ligava. E o cónego Formigão também ligou. Tanto ligou que escreveu isto sobre a Senhora empoleirada na azinheira, no seu célebre livro As Maravilhas de Fátima: «Nossa Senhora não pode, é evidente, aparecer senão o mais decente e modestamente vestida. O vestido devia descer até perto dos pés. O contrário constitui a dificuldade mais grave à sobrenaturalidade da aparição e faz nascer no espírito o receio de que se trata de uma mistificação».

O cónego, em matéria de decência, está visto, se dependesse dele, tinha considerado mistificações Cristo na cruz com apenas um trapo nas partes pudendas; São Sebastião quase nu e cozido de flechas; ou São Vicente em cuecas amarrado à coluna. 

Todavia, o pior da sua acção em oficializar Fátima foi, aqui perto, esvaziar quase de crentes os medievais santuários da Nazaré e do Milagre de Santarém (aquele do Santíssimo, não o da recuperação da zona histórica nos próximos trinta anos), terra onde leccionava. 

Cento e quatro anos depois desta e outras viagens do cónego Formigão, Fátima é hoje o altar do mundo e mais além, negócios religiosos inclusos, e Santarém definha (aqui fica este adjectivo que escapou a toda a oposição e foi o principal leitmotiv dela sem dizerem o que iriam fazer se vencessem).

Ainda bem, que Fátima antes não passava de terras pedregosas de tojo e mato, donde o Abóbora, alcunha do pai de Lúcia, a custo arrancava quatro sacas de batatas, que de milho e trigo, a cada colheita, ficava quase sempre a fazer cruzes na boca, isto apesar do seu génio pouco cristão, menos amigo de missas e santos que do deus Baco das tabernas.

Afinal é verdade: a fé move montanhas…de dinheiro. Que tenho eu a ver com padres que vão a Fátima endireitar a vara torta da teologia, ou Abóboras que gostam mais da pinga que de missas?, parece que estou daqui a ouvir o pio leitor a protestar. Nem eu tenho. E mais escrevi há meses um livro chamado O Quarto Segredo de Fátima, que vai fazendo pela vida através de certa Península multicultural, cujo, apesar de uma imperfeita revisão editorial devido à pandemia, me parece que não é mau de todo, e, além dos factos documentados ou inéditos que apresenta, já me valeu mesmo, quando estava à espera do anátema da Igreja (algo que me falta para ganhar com ele o Nobel que Sousa Lara, e alguns fundamentalistas católicos, deram a Saramago quando escreveu o Evangelho dele), uma entrevista simpática sobre o romance (o primeiro sobre aquele fenómeno) ao jornal Notícias de Fátima, órgão do jornalismo de qualidade que preside àquela terra e seus vários milagres, além das opiniões benignas de certos padres e jornalistas que o leram. Paciência! Vamos à crónica que se faz tarde.

O candidato do Chega à Câmara de Santarém acaba de anunciar nesta cidade, na presença do líder deste partido, e cito dos jornais, que a sua candidatura «é um milagre por ter consigo André Ventura» e a prova disso «é o envio de mim próprio, não por ser eu, mas por neste momento ocupar o cargo de vice-presidente do partido». Isto traduzido quer dizer que a dualidade heteronímica deste novo Messias, superior à de Pessoa, o vai catapultar para ser o próximo vencedor à Câmara de Santarém, algo que será tido depois nos anais da Opus Dei, a que pertence, como o verdadeiro Quinto Segredo de Fátima. Logo o veremos.

Afirmou ainda este futuro presidente da cidade do gótico e futura capital do Brasil na Europa (o itálico é dele) que: «esta é a maior missão da sua vida depois da família». Embora não explicite a que família se refere, política, religiosa, genética etc., o que seria bom por causa dos conluios que diz existirem nesta Câmara (ver à frente), dá para perceber que se trata da própria família parental, pais, possíveis filhos, mulher etc.

Depois explica que a também capital «do mundo rural e da agricultura» é uma cidade «abandonada» (alusão clara à sua próxima vitória e debandada dos que estiveram no poder, e aqui é que as coisas começam verdadeiramente a fazer sentido, e a encaminharem-se para aquele espantoso final, referido acima). Vejamos.

Primeiro diz querer que «Santarém passe a liderar aquele que é o 3.º maior distrito do país (o de Santarém precisamente), «indo de Benavente a Ourém, onde apareceu Nº Srª de Fátima». Perceberam? A verdade é que a Senhora de Fátima apareceu em Ourém. Fátima, à época, pertencia à diocese de Lisboa, distrito de Santarém, e vigararia de Ourém. Estamos lá quase, na revelação em pormenor do Quinto Segredo de Fátima ( oh, que não sei de nojo como o conte!, eu que pensei encerrar aquilo com o meu Quarto Segredo).

A seguir sublinha que nunca nos podemos esquecer disto: «N.ª Sr.ª de Fátima apareceu aqui no Ribatejo e é por isso que Santarém vai ser importante para arrasar o regime de conluio, de compadrio, entre o PSD e o PS, também aqui em Santarém». Acrescentando que «desde a revolução de 1974 (esse conluio) tem trazido apenas desgraça, retrocesso, perda de população e estagnação económica» a esta cidade. Eu já andava desconfiado deste namoro em Santarém entre o PSD, o PS, e o Sporting Clube de Portugal, a que pertenceram vários vereadores de ambos os partidos, e o próprio Presidente, daí o conluio. Pronto está explicado o retrocesso.

Só que um retrocesso acontecido logo com a revolução de 1974 mandaria a cidade de retorno ao fascismo, algo que devia agradar ao Chega… Parece-me todavia que se o conluio tivesse sido com o Benfica de Luís Filipe Vieira outro galo, perdão, frango, cantaria!

Continuemos a acompanhar as divagações proféticas deste taumaturgo da história, e do Brasil na Europa: «A conquista de Santarém em 15 de março de 1147, por D. Afonso Henriques e «um punhado de cavaleiros», a quem o rei garantiu que estava «ao lado deles naquele combate em prol das gerações futuras» (cf. o em prol das gerações futuras, na tradução do latim do Expugnatione Scalabis in Fastos de Santarém do prof. José Barata, entre outros).

Agora a chave de ouro do discurso deste verdadeiro S. Pedro (Tu es petrus), primeira pedra da futura igreja da Opus Dei no renascido teatro Damasceno, donde partirão as procissões futuras de uma nova N.ª Sr.ª de Fátima, a qual não só acabará de vez com o culto ao Santíssimo Milagre desta cidade (com conotações judaicas) mas retomará a tradição da antiga imagem durante o fascismo, de viajar em cima duma camioneta da renascida Legião Portuguesa (veja foto), cercada de pides, guardas armados,  e membros do Ku Klux Klan, para combater o conluio nacional dos partidos, filhos do diabo e daquela revolução de 1974, raiz do mal que, desde aí, atingiu a Nação, e teve em Santarém um dos seus mais maléficos agentes.

Antiga imagem de NS Fátima durante o fascismo, de viajar em cima duma camioneta da renascida Legião Portuguesa (veja foto), cercada de pides, guardas armados

Revelou aqui o vice-presidente do Chega que quando fala no rei Afonso Henriques «só pensa numa pessoa: André Ventura!, obrigado por estar connosco até à última gota de sangue, obrigado, obrigado!». O saudoso Estado Novo já tinha associado o rei Conquistador, que fez amizade com Ibn Qasi, o célebre moçarabe, com Salazar o paladino da fé e do império (veja foto).

S. Pedro juntou-lhe agora André Ventura. Três pessoas num só corpo. Nem a Santíssima Trindade! Julgo por isso que a primeira acção deste futuro presidente da Câmara de Santarém (por vontade de Nª Srª de Fátima) será substituir a estátua do Fundador de Portugal que está no jardim das Portas do Sol desta cidade, pela do fundador do Chega, espada em riste, bacinete e cota d´armas, «peito às armas feito, mente às musas dado», e será magnífico!
O resto desta messiânica dissertação que entrará no futuro nos anais da Opus Dei não me surpreendeu. Ouvia-a dezenas de vezes ao cardeal Cerejeira, aplicado a Salazar, à missão ecuménica e evangelizadora de Portugal no mundo, e a N.ª Sr.ª de Fátima combatente contra o comunismo. Pedro Frazão garantiu que «Tal como os monges de Coimbra rezaram pelo rei Afonso Henriques, também Ourém e Fátima rezam pela vitória do Partido Chega». Por isso é que irá ganhar Santarém às forças do conluio. Mais. «Há muita gente que reza por nós para cumprir o sonho de todos os reis» (acabar com o conluio PSD/PS, cf. Herculano, Matoso etc.).« Deus nos abençoe e viva Portugal!». Desculpem caros leitores… tenho que acabar… a emoção.. .perdoem… as lágrimas… Angola é nossa!


MÁRIO RUI SILVESTRE

Mário Silvestre
Mário Silvestre
Romancista, poeta, historiógrafo. Enquanto presidente da C.L.A.P.A, uma das Associações Ecológicas pioneiras do país, escreveu o livro de contos «Do Rio À Margem». Seguiram-se os romances «Para A Morte Não Ter Razão»; a «Calma Declinava». Na Poesia, destacam-se «Caosmologia», com prefácio de Vasco Graça Moura, «Poemas do Centenário» e «Ribaterra». Com chancela da Fundação Comendador José Gonçalves Pereira, editou várias obras historiográficas, salientando-se «As Gloriosas Máquinas do Pão», acerca dos milenares moinhos d'água do Alviela; e em 2022 O Rio que Lisboa Bebeu, sobre o rio Alviela que abasteceu Lisboa durante um século. Fez parte da Comissão de Honra da «Associação Mais Saramago», e foi responsável por várias livrarias no país da C.D.L (Central Distribuidora Livreira). Ganhou o Prémio Literatura de Viagens, do jornal em espanhol «Novedades de Moscou», e outros em concursos literários diversos. No Ensaio, com chancela da Câmara Municipal de Santarém, e apoio da Comissão Nacional dos Descobrimentos, publicou «Em Torno de Camões», com factos inéditos sobre a vida e obra do Poeta maior da portugalidade, entre outros.
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