Este bardo é um exilado por sua conta e risco, alimenta sonhos para uma pátria livre de algemas, tutores da via única e denunciantes, está atento aos ventos que passam, há esfumadas réstias de esperança. Por exemplo, em 1970, ficou decidido que aquela guerra da Guiné não tem solução militar, tentou-se atrair grupos do PAIGC, houve desfecho trágico com oficiais retalhados à catanada, invadiu-se Conacri, o regime de Marcello Caetano atingiu o ápice do isolamento internacional. Desse exílio efabula-se um barco que não navega pelas águas e uma Ítaca que é Lisboa, aliás num outro poema de protesto o bardo já falou no sonho daquele dia em que iríamos desembarcar no Rossio. Ulisses, neste belíssimo poema, vai falar pelo filho, Telémaco, a juventude que se manifesta nas universidades, e que será uma pedra angular do que irá acontecer no 25 de Abril.
Parece que os estudiosos já disseram praticamente tudo sobre o valor literário e a premonição política subjacente ao terceiro livro de Manuel Alegre, o seu código secreto que escapou à censura, trata-se de uma tessitura fertilizada pela cultura greco-romana, há uma obra de raiz, A Odisseia, e aquela morosa viagem de Ulisses, um bravo Ulisses carregado de contradições, aventureiro e simultaneamente saudoso de voltar à comunhão com os seus.
É um manifesto encriptado numa fazedura de tragédia grega, em que o coro confirma, preludia ou liga as vozes dos protagonistas, há Calipso, que não consegue reter nos seus braços o errante herói, manifestamente evasivo: “E o que ele busca é sempre mais ao norte/ o que ele busca é sempre mais ao sul”. Mas antes, respondendo a Calipso, Manuel Alegre revela a sua capacidade como o mais camoniano dos nossos contemporâneos:
“De ser imortal ó Deusa eu morreria
morreria eternamente se não morresse
e assim morrendo não tivesse de viver
como se fosse eterno em cada instante
em que passando sou quem não vai sendo
e de não ser é só quem vai passando.
Se dos deuses é todo o Tempo
de nós é só o instante. E só de nós a saudade.
Mais do que os deuses amamos o sempre
pois só de nós é o nunca mais”.
Nunca a lírica camoniana esteve em tão boas mãos, entremeando o épico e o extremamente cuidado do manifesto revolucionário, pois a seguir Telémaco revela a agudeza de anunciar a saturação em que vive o povo na Ítaca pútrida, o coro é enfático, advertindo que é preciso um barco para chegar a Ítaca dentro de nós. E na assembleia tudo se desvela, Telémaco toma a palavra, escancara o protesto: “Só o medo governa/ e as bocas estão fechadas/ em Ítaca sem boca”. Os amigos da situação pútrida ameaçam Telémaco, mas ninguém o demove a partir à procura de Ulisses, o sinónimo absoluto da liberdade.
Nessa Ítaca que vive no medo, há um pilar de fidelidade que ainda contém a ambição desmedida dos que sufocam os cidadãos, chama-se Penélope, ela compõe e desmancha para suster os pretendentes, dialoga com um velho que traz uma mensagem de esperança, a quem Penélope, como no Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, pergunta ao estrangeiro quem ele era, e de forma cifrada ele anuncia uma alvorada, uma mudança, está uma vontade de insubmissão em marcha:
“Quem eu sou não importa mas o que eu digo:
há nódoas de sangue na casa de Ulisses.
Alguém virá. Alguém pegará no arco.
Flecha a flecha a verdade será dita
flecha a flecha o tempo decifrado.
Então Ulisses voltará a ser Ulisses”.
Toda esta toada é acompanhada por homens do povo, e então ribomba a voz de Ulisses:
“Poderão levantar-se as fúrias do mar
poderei perecer.
Mas grande é a vossa glória ó meus amigos
grande é a glória de quem ousa
desobedecer”.

E o poema culmina com Telémaco a bramar de que precisamos de um barco para chegar a Ítaca dentro de nós.
Um precioso manifesto lírico, premonitório do que se irá passar um dia em Ítaca, poucos anos depois, mas vaticinado em Argel e anunciado desta forma críptica em Portugal, em 1971, há meio século. O que tão ardorosamente é ansiado neste Barco para Ítaca aconteceu. O que confirma que há versos sublimes como trombetas que anunciam o bafo do futuro.
Mário Beja Santos