Confesso-me paralisado pela hesitação, sobre com que autor começar este capítulo.
Pela beleza poética das baladas de François Villon?
Por relatos orais (de obstinados trovadores coevos), das façanhas de Robin of Locksley ou Thyl Eulenspiegel?
Pelas aventuras intermináveis de René Goulaine, Robert Reneger, John Hawkins ou Francis Drake (que eram tudo, menos simpáticos)?
Pelas façanhas de Anne Bonny, Mary Read, Edward Thatch, o Barba-Negra, François L’Olonnois, Sir Henry Morgan, Chevalier de Grammont e Jean Bart?
Pelas façanhas de Mandrin, dos dois Lafitte, de Dick Turpin ou Vidocq?
Vidocq tenta-me. Foi uma personalidade deveras fascinante.
Ou deveremos começar com Raffles?
Não o farei, sem primeiro caracterizar este tipo de novela de crime e mistério.
Nestas, inverte-se por completo a lógica do ponto de vista moral (bom contra mau…), apresentando o criminoso como o herói e até, em muitos casos, como o verdadeiro reparador de injustiças, pondo fim a desigualdades, crimes, homicídios baseados na maldade humana, como que se concebesse uma espécie de Robin dos Bosques hiperdotado.
Por exemplo, o anarquista e cavalheiro que a seguir vos apresento.
J. Raffles, ladrão e gentleman surge com a novela “The Ides of March”, de junho de 1898, publicada no Cassel’s Magazine.
Foi seu progenitor Ernest William Hornung, nascido em Middlesburough, Yorkshire, em 1866, e falecido em Saint-Jean-de-Luz, país basco francês, em 1921.
A mãe de Raffles foi decerto a inveja, pois o seu autor casou, em 1893, com a irmã de Arthur Conan Doyle e, irritado talvez pelo sucesso do detective-consultant, criado pelo cunhado (que, lucida e fundamentadamente detestava), resolveu criar um ladrão, que, além da inteligência e engenho de Holmes, o batesse em charme e boa-educação (nada difícil).
Morto Hornung, Barry Perowne, no início dos anos trinta, compra os direitos literários sobre o pobre Raffles, que surge, sem graça, movimentando-se nuns deslocados anos pós-depressão, com destreza elefantina.
Raffles emerge em toda a sua grandeza, em diversos livros de novelas: “The Amateur Cracksman”, de 1899, “The Black Mask”, de 1901, “A Thief in the Night”, de 1905, “Old Offenders and a Few Old Scores”, assim como dois romances “The Shadow of the Rope”, de 1902 e “Mr. Justice Raffles”, de 1909.
O seu sucesso foi enorme e, como Sherlock Holmes, traduzido em adaptações teatrais, filmes, etc.
Raffles, himself, era um sedutor jogador de críquete, fumador exaustivo das seletas cigarrilhas Sullivan, assim como ladrão consumado, cheio, por vezes, de terríveis anseios de fazer justiça poética pelas próprias mãos.
Tem um Watson, claro: o tonto Bunny, muito semelhante ao Wooster de Woodehouse. Também tem uma pseudomorte, atirando-se de um navio alemão para o Mediterrâneo, reaparecendo depois, mais velho e menos sábio.
As figuras de Raffles e comparsas não têm, em geral, a mínima profundidade ou consistência psicológicas. E o estilo é monocórdico.
Conan Doyle tinha terríveis defeitos, mas, apesar de tudo, não escrevia tão mal como o cunhado.
No entanto, o protagonista que criou, era, a seu modo, um instrumento da Justiça .
Já o francês Arsène Lupin é outra loiça.
É criação do jornalista Maurice Leblanc, em 1907, em “Arsène Lupin, Gentleman-Cambrioleur”.
Leblanc, nasceu em Ruão, em 1866, e morreu em Perpignan, em 1941, vítima de uma congestão pulmonar.
Em Croisset, aos dezassete anos, beneficia do extraordinário privilégio de conviver e trocar ideias sobre literatura com Gustave Flaubert, cujo pai era cirurgião e, como obstetra, assistira ao seu nascimento.
Convive ainda, na sua juventude, em tertúlias de amigos, onde dominam figuras como Guy de Maupassant, Octave Mirbeau, o então muito velho Émile Zola.
Em Paris, torna-se jornalista mundano e faz crónicas para o “Gil Blas”, o “Figaro”, o “Comoedia”. Publica, sem nenhum sucesso, é certo, alguns romances: “Une Femme”, “L’Oeuvre de Mort”, “Les Lèvres Jointes” e uma peça de teatro (“L’Enthousiasme”).
E é Pierre Lafitte, editor-chefe do “Je Sais Tout”, que o convencerá a escrever novelas policiais francesas, criando um equivalente francês de Raffles e Sherlock Holmes.
E assim surge Arsène Lupin (antes Lopin, mudado por força das suscetibilidades de um Conselheiro Municipal de Paris, com nome idêntico e, porventura, um pouco menos ladrão).
Arsène tem, à partida, uma personalidade muito característica, com três dimensões, sentido de humor e bem delineada. Impõe-se, de imediato.
Mensalmente, o “Je Sais Tout” publica uma aventura de Arsène Lupin, sem impressões digitais ou pegadas na lama, compensadas tais carências gritantes com uma aventurosa cavalgada de dribles, que enganam (subtilmente) parvenus, polícias, políticos corruptos, importantes senhores da indústria e pavões engalanados do mundo oficial.
Todo o ambiente respira alegria de viver, otimismo, claridade e frivolidades tipicamente parisienses.
Sabe-se, em todas as aventuras, que se há desaparição de raridades ou roubo de dinheiro, o culpado é Arsène Lupin, o que não impede que se leiam e releiam, com idêntico prazer com que se leu a primeira, as suas novas façanhas!
Dado o seu estilo vivo, em que o herói parece saltar para o mundo real em cada página, em que cada cena é uma situação de crise e cada palavra, um grito de ação.
Como ele mesmo confessa (“Les Confidences d’Arsène Lupin”): “Ce sont là des affaires qui nécessitent beaucoup plus d’intuition que de réflexion!”.
Arsène Lupin, contemporâneo de Loubet e Bonnot, é um anarquista que age e pensa com as regras morais de um aristocrata.
Com um tom brincalhão que faz que os seus arqui-inimigos, os Inspecteurs Béchoux e Ganimard, pareçam sempre uns tontos ingénuos, que, como se sabe, são mal tolerados, para não dizer desprezados, em França.
Porque Sherlock Holmes [Herlock Sholmes] que se defronta com ele algumas vezes (“Herlock Sholmes Arrive Trop Tard”, 1907, “Arsène Lupin contre Herlock Sholmes”, 1908, “L’Aiguille Creuse”, 1909) não é um inimigo, mas um terrível adversário, é-lhe dado outro estatuto e a estima até poderia vir a ser mútua se Holmes, tornado cruel por apneia de nevoeiro londrino, não tivesse mandado ad patres, por acidente, uma tal Raymonde de Sain-Véran.
Béchoux, o flic oficial, é um caso sério, igualmente. Pálido, alto, magro, vestindo com elegância, tem uns bíceps desproporcionados de gorila e um ar juvenil. Com o que não ganha nada.
Arsène, por seu lado, tem, como seria de esperar, um cronista, amigo e cúmplice. Com a mesma naturalidade com que, no século XIX, qualquer família burguesa tinha uma criada de fora e uma cozinheira.
O seu Boswell aparecerá em mais de dezasseis romances, trinta e sete novelas, quatro peças de teatro.
Leblanc, ingrato como Doyle, tenta assassinar Lupin. (“813”, de 1910).
Falhanço total. Acaba por confessar: “Estou prisioneiro de Arsène Lupin. É duro. Segue-me por toda a parte. Não é ele a minha sombra, eu é que sou a dele!”.
Este malandro tão humano, até nos vícios, oferece, nos livros que protagoniza , uma simpatia mordaz, mas tolerante, que é a razão, creio, do seu êxito.
França, país de contrastes! Depois deste fora da lei tout à fait charmant, oferece-nos um sádico mestre do crime, figura repugnante, destituída de piedade ou encanto.
Fantômas: na origem, “Fantomus”, mas por erro de audição de Arthème Fayard (o editor) tornado, sem querer, “Fantômas”.
Criação de Pierre Souvestre (1866-1913) e Marcel Allain (1885-1967), jornalistas desportivos parisienses, apaixonados pelos automóveis (recentes), criam a primeira (e de longe a melhor) série de aventuras de Fantômas, até à morte, por gripe, de Souvestre.
A segunda série, só com Allain, é medíocre e nem merece referência. Quebrara-se o encanto, com os horrores da Primeira Guerra Mundial. E a morte de Souvestre foi decisiva para a perda de qualidade da série .
E, como se calcula, é, enfim, altura de falar no mais encantador dos flibusteiros: “The Saint/ Simon Templar/ Sebastian Tombs”.
Criação de Leslie Charles Bowyer Yin, nome literário Leslie Charteris (1907-1993), chinês por parte do pai, o conhecido médico Dr. Yin Suat Chwan, inglês por parte da mãe, com fácies de oriental e alma conservadora e britânico-imperial (com bonomia que baste).
Nasce coerentemente em Singapura, numa família abastada e duma fidelidade ao rei que a torna mais papista que o papa.
Aprendeu a falar chinês e malaio com os empregados (nativos), antes ainda de aprender a ler o conveniente inglês que falava sua mãe, ou a versão mais pedante e especiosa, que deveria ser a de seu pai.
Aos doze anos, já tinha dado a volta ao mundo por três vezes, na companhia dos progenitores.
Leslie começou a escrever aos sete anos, editou uma revista infantil aos dez, viu a sua primeira obra (um poema) ser editada aos onze e vendeu o seu primeiro conto publicado aos dezassete. Nisso, não diferia de Von Hoffmanstahl ou Stanislas Steeman.
Induzido a frequentar Cambridge aos dezoito anos, após estudos preliminares numa public school de renome, confessa depois que o seduziria muito mais uma carreira de criminoso, à maneira de Raffles.
Talvez por isso (embora eu duvide da sinceridade desta confissão do pai do Santo) leu tudo o que lhe caiu nas mãos sobre crimes, literatura policial incluída.
Publicou alguns contos policiais, mas a sua carreira, inicialmente, teve muitos altos e baixos.
Por isso, voltando à Malásia, Charteris teve de arranjar outro meio de vida.
Trabalhou em plantações de borracha, numa mina de estanho, à pesca de pérolas, na marinha mercante, numa companhia teatral de província, na Inglaterra rural (profunda), foi barman, jogador de bridge profissional e pesquisador de ouro.
Em 1926, adota o pseudónimo de Charteris, em homenagem ao Coronel Charteris, membro de um famoso (e sinistro) Hellfire Club . O seu primeiro romance sairá do prelo em 1927.
Assim, aos vinte anos, tinha marcado como seu destino, ter um lugar de primeiro plano no policial e edificar as bases de uma imensa fortuna. O que irá, com efeito, suceder, ao publicar “Meet the Tiger”, em 1929, onde surge pela primeira vez o aureolado Santo, Simon Templar de seu nome (ou Sebastian Tombs, quando convém).
As aventuras deste misto de pirata e Robin Hood, imperturbavelmente risonho e simpático, irresistível para qualquer mulher ou homem (põe-nos a dormir com um único soco nos queixos) são dotadas de um humor e ritmo endiabrados.
Fermentadas por uma imaginação delirante, cimentadas por uma autoconfiança e um otimismo plenos de humor, que poucos, muito poucos, conseguiram igualar.
Na sua luta constante pela dama e pelo injustiçado, Simon Templar, muito melhor do que Raffles ou Arsène Lupin, sempre estribado em histórias de uma inverosimilhança total, em situações absurdas, servidas por um estilo mediano e clichés mais do que usados (mas restaurados com graça), tem, apesar disso, uma frescura e um humor tais, que se manteve, com um sucesso espantoso, no topo da vaga, durante cinquenta anos, sucesso que se traduziu em inúmeros best-sellers, filmes e numerosas séries televisivas de sucesso que se prolongaram, mesmo depois da morte de Charteris, por um sucessor que o tentou imitar (muito mal).
A auréola de um Santo (ele assinava os seus feitos com uma caricatura aureolada), não se repete nem se pode copiar.
Fisicamente, com a sua aparição no cinema e televisão, acaba-se por o identificar com a figura do ator britânico Roger Moore, que o personifica no pequeno ecrã.
Trabalhou em Hollywood desde 1933 (há muito de fílmico na sua obra) e naturalizou-se norte-americano em 1946.
Talvez (como em J. Dickson Carr) as palavras mágicas “Attlee” e “impostos” tenham despoletado a mudança de lealdade patriótica desde súbdito de Sua Majestade.
Acabou por voltar à Europa, onde morre, em Windsor, em 1993.
Entre as suas obras publicadas, cito as mais apreciadas pessoalmente .
A moda do ladrão simpático pegou e apareceram, ao longo dos tempos, diversos alteres egos do Santo … ou de Arsène Lupin, se preferirem.
Mudando de autor, menciono, ainda em Inglaterra, Colin Robertson (1906-1980), que cria com muito humor e imaginação, a figura de Peter Gayleigh, um gentleman, um tudo nada criminoso (ajudado pelo seu impagável Jeeves, o mordomo Carver, em “Ghost Fingers”, “Peter Gayleigh Flys High”, “Demon’s Moon”, “Lady, Take Care!”, etc.).
John Creasey (1908-1973) dá vida ao muito mais banal John Mannering, dito “The Baron” (“Attack the Baron”, “Cry for the Baron”, “Books for the Baron”, “A Rope for the Baron”, etc.), mistura indigesta de Arsène Lupin e Raffles.
Para terminar a amostra noutro tom, lembro o delinquente norte-americano que Lawrence Block (Buffalo, 1938) criou, criminosamente, em “The Burglar Who Studied Spinoza” (1980).
Um ladrão muito Greenwich Village, intelectual, Bernie Rhodenbarr, que, com a sua amiga Carolyn e o seu recetador Abel Crowe, tem aventuras dignas das Mil e uma Noites, mas sem grandes resultados financeiros.
“Burglars Can’t be Choosers”, “The Burglar in the Closet”, “The Burglar Who Liked to Quote Kipling”, “The Burglar Who Painted Like Mondrian”, “The Burglar Who Tought he Was Bogart”, etc.
Neste ciclo de Rhodenbarr, Block revela o melhor que este campo tem para nos dar.
Não há dúvida: morto Charteris, ladrões, precisam-se!
***
Lista de obras de Leslie Charteris:
The Saint Meets The Tiger, 1928
The Saint Closes The Case, 1930 – Contos
The Last Hero, 1930
Knight Templar, 1930
Featuring The Saint, 1931 – Contos
Alias The Saint, 1931 – Contos
She Was a Lady, 1931
The Holly Terror, 1932 – Contos
Getaway, 1932
More The Saint, 1932 – Contos
The Brighter Bucaneer, 1933
The Misfortunes of Mr. Teal, 1934 – Contos
Boodle, The Saint Intervenes, 1934 – Contos
The Saint Goes On, 1934
The Saint in New York, 1935
The Saint Overboard, 1936
The Ace of Knaves, 1937
Thieve’s Picnic, 1937
Prelude For War, 1938
The Happy Highwayman, 1939
The Saint in Miami, 1940
The Saint Goes West, 1942 – Contos
The Saint Around the World, 1956 – Contos
The Saint Steps In, 1942
The Saint on Guard, 1944 – Contos
The Saint Sees It Through, 1946
Call for The Saint, 1948
The Saint Errant, 1949
The Saint in Europe, 1953
The Saint on the Spanish Main, 1955 – Contos
Thanks to the Saint, 1957
The Saint to Rescue, 1957 – Contos
Señor Saint, 1958
Trust The Saint, 1962 – Contos
The Saint in The Sun, 1963 – Contos
Vendetta for the Saint, 1964
The Saint on TV, 1967
The Saint Returns, 1968
The Saint and the Fiction Makers, 1968 – Contos
The Saint Abroad, 1969 – Contos
The Saint and The People Importers, 1970 – Contos
The Saint in Pursuit, 1970
Catch The Saint, 1975 – Contos
The Saint and The Hapsburg Necklace, 1975
The Saint and The Templar Treasure, 1979
The Saint with A Gun, 1984
Carlos Macedo