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Viagens ao interior da literatura de crime e mistério (20): É puro horror, uma contumaz linha de sucesso com crime e mistério

Não resulta fácil definir “linhas vermelhas”, demarcar fronteiras.
Assim, quase sem definições especiosas, quase sem transição, passamos às obras que se centram em criminosos que matam em série, sem móbil imediatamente evidente .
O horror banalizou-se, sobretudo nos EUA.

Filme “Máscaras de Cera” do realizador Andre De Toth, 1953, com Vincent Price no protagonista


Adolescentes, até crianças, que chegam à escola (onde estudaram, sem problemas aparentes, durante anos) chacinam friamente, amigos e amigas de infância e professores.
Impulsos ou traumatismos sexuais, demasiadamente reprimidos, sofridos em silêncio, como a pedofilia dos pais, sem ajuda médica ou psicológica qualificada?
Personalidades sociopáticas, psicóticas ou psicopáticas, mal identificadas pela comunidade onde vivem?
Nada de sobrenatural, mas fantasmas que resultam do exacerbar de tensões e violência, na monstruosa net assassina do cinema, dos sites e da televisão norte-americanos (75% dos assassinatos em série, quantificados nos últimos vinte anos, foram-no nos EUA)?
Os jovens adolescentes do mundo dito desenvolvido (o mal já alastra à Alemanha, ao Reino Unido, ao Japão, à Noruega) estão, diariamente, quatro a cinco horas diante do televisor.

Filme “Se7en” realizado por David Fincher, 1995, com Brad Pitt, Kevin Spacey e Morgan Freeman

Que visão do mundo se pode esperar de um jovem que já sofre de problemas psicológicos graves, nem detetados nem tratados, que vê de seguida, “O Silêncio dos Inocentes”, “Hannibal”, “Red Dragon”, “The Alienist”, “Psycho”, “Friday, 13”, “Elm Street”, “The Bone Collector”?
Isto é corriqueiro e comum nos meios suburbanos da pequena e média burguesia, não apenas dos EUA, mas na Europa, América do Sul, México. Até, recentemente, em Portugal.
E, infelizmente, é este o tipo de policial que, com algumas obras híbridas do estilo Black Mask (involuindo paralelamente para ideologias fascizantes), mais hipóteses têm de se tornar, nos dias de hoje, um best-seller.
De um dia para o outro.
Que o digam os hábeis best-sellers makers Stephen King e Peter Straub, Thomas Harris, Jefferey Deaver, Graham Masterton ou Caleb Carr.
Comecemos por uma ou duas definições dos vários tipos do horror na ficção policial.
Primeiro, sabermos que aqui, em geral, se trata apenas de homicídio(s) ou violações. Normalmente, com tortura prévia. Afinal, é o que “vende” mais.
Aterra a descrição das torturas, que o autor da obra escolheu, no cardápio da sua imaginação doentia (ou mercenária?).
Depois, que as motivações do assassino não são interesseiras (paixão, dinheiro, vingança).
O conceito dos matadores loucos não é original, nada original mesmo, remonta à guerra medieval dos Cem Anos e tem patronos como Gilles de Rais (companheiro nas guerras de Joana d’Arc) ou Isabel Bathory (com centenas de vítimas no seu quadro de caça).
Não são apenas consequência dos avanços tecnológicos dos anos 1980 e 1990 e da necessidade de introduzir novos protagonistas no mundo da “Lei e da Ordem” .
No campo da ficção literária, em genealogia, pode até reivindicar-se nobres origens, anteriores (e muito) ao omnisciente Edgar Allan Poe.
Mas antes ganharemos em dar algumas definições que, quanto a mim, facilitem a compreensão dos manuais de sadismo que estes romances, no fundo, são.

Filme “O Silêncio dos Inocentes” realizado por Jonathan Demme, 1991, com Jodie Foster e Anthony Hopkins

“MASS MURDER”

Neste grupo surge o taylorista do crime, que mata (ou executa), no menor tempo possível, o maior número de pessoas. Como Charles Whitman que, a 31 de julho de 1966, abateu dezasseis pessoas em Austin, Texas, com uma carabina de mira telescópica. Para integrar esta categoria requer-se mais do que quatro assassínios, num único acontecimento, num mesmo local, com uma certa homogeneidade na escolha das vítimas a imolar.
Com o stress de um brutal desemprego que sofreu, da traição amorosa, o assassino vinga-se nos colegas de escola ou de trabalho e mata compulsivamente, esperando ser morto; ou faz o mesmo com a própria família (e o assassino, procura com incansável sanha, os familiares que se escondem, como o fez Gene Simmons, ex-sargento da EUA-Air Force, que, no Natal de 1987, matou os catorze membros da sua família, numa quinta do Arkansas); o morticínio de Columbine, numa instalação escolar nos EUA, da autoria de dois colegiais, ou ainda, os ocorridos em estações de correio, saídas de centros comerciais ou igrejas, cujos infelizes frequentadores irão sofrer, na pele, os fantasmas do mass murder.

Filme “O Colecionador de Ossos”, realizado por Phillip Noyce, 1999, com Denzel Washington e Angelina Jolie

“SPREE KILLER”

Temos aqui , assassínios em locais diferentes, num lapso de tempo muito curto e o seu encadeamento pode estender-se por um determinado período de tempo, embora a origem seja uma só.
Normalmente são situações de desespero emocional (o assassino corre vários locais que lhe são familiares, procurando pessoas; mas não o preocupa a identidade das vítimas que massacra), amores não correspondidos (em que todo o clã familiar, até em diferentes locais, pagará, com ela, o preço do repúdio), superstição religiosa (há que eliminar os servos do Diabo, como aconteceu já há uns anos, numa praia de Portugal).
O caso mais célebre é o de Howard Unruh, a 6 de setembro de 1949, em Camden, Nova Jérsia (EUA), que, com uma Luger, andou, durante algum tempo, matando ou ferindo pessoas (treze no total), em diferentes locais.

Filme “Zodíaco”, realizado por David Fincher, 2007, com Jake Gyllenhaal e Robert Downey Jr.

“SERIAL-KILLER”

Este escolhe as suas vítimas. Mesmo que mate mais do que uma, de cada vez. Em geral, pensa que nunca será capturado (e o pior é que, muitas vezes, tem razão…).
Como o Zodiac Killer, o vampiro de Sacramento ou Ed Gein.
Pensa, na maioria dos casos, ter o controlo dos incidentes da situação que gerou, chavão barato usado até ao vómito, em séries B americanas, sobre estes infelizes e ainda outro tipo de criminosos (os “Hostage Keepers”), que mantém reféns (“Ok, Ok, you are in control, you have the control”) dizem monotonamente os “negociadores-polícias”.
Ao contrário dos mass e dos spree, quase sempre com pulsões ou comportamento compulsivamente orientado para o suicídio, procurando (inconscientemente) fazer-se matar, procuram, no entanto, tornar impossível a sua captura.
Igual ao Magnicida, seu irmão em tendências destrutivas (e autodestrutivas) e também entretido a brincar a ser Deus.
Por motivos políticos ou religiosos, neste último caso.
Segundo estudos (nos EUA, claro) que já vêm dos distantes anos 1950 até à presente data, existem algumas características dominantes na maioria dos serial.
São jovens (quando começam), na sua esmagadora maioria, brancos e do sexo masculino, com aspeto e capacidade para inspirar confiança e, regra geral, muito inteligentes. Não matam para obter lucros (e repudiam “esse tipo de pessoas”).
A estes, a pulsão que quase sempre os motiva (tendo ou não, plena consciência do facto) são taras sexuais ou fanatismos religiosos (muito raramente políticos ou racistas).
Em percentagem apreciável, foram objeto de abuso sexual (ou severamente seviciados), em crianças, por parentes ou meros conhecidos.
O crime e a forma como o faz, é um ritual de apaziguamento dos seus fantasmas, e, como a droga, gera habituação e acelera no tempo a necessidade de o voltar a repetir.
Porque sofreram quase sempre, como já referi, situações de abuso sexual ou psicológico familiar, enquanto crianças, dando origem a pulsões sexuais anormais. Encaram a sociedade como uma entidade hostil.
Provêm, amiúde, de lares de marginais, ex-presidiários, perversos sexuais, alcoólicos, ou toxicodependentes “agarrados” e, em geral, totalmente alheios ao sofrimento dos outros.
Alguns provêm de famílias muito ricas e ausentes, ou emocionalmente distantes, sentindo-se esquecidos, “a mais”, preteridos em relação a um irmão.
São, normalmente, “lobos solitários”.

Esta fastidiosa introdução ajuda-nos melhor a entrar no complexo mundo da ficção policial dedicada a estes criminosos, que crescem a níveis inquietantes, a cada ano que passa. Magnificado na literatura, cinema, televisão.
Sinal de doença, numa sociedade doente?
Provavelmente.
O Zodiac Killer e o Boston Strangler são tipicamente produto EUA.
É curioso que a gravidade do serial killing nos Estados Unidos é tal (entre 160 assassinos em série, identificados e estudados entre 1975 e 1995, 120 eram norte-americanos) que o FBI se viu obrigado a investir seriamente em novos métodos de ciência criminal, combinando psicologia e informática, intuição de profiler (a coqueluche de Hollywood e das séries da TV norte-americanas atuais) e ciência médica forense altamente especializada, dotada de equipamento ultrassofisticado.
Os psiquiatras e psicólogos clínicos já não chegam, impõem-se sociólogos urbanos, historiadores especializados em análise de símbolos e esoterismo (“Prof. Langdon”, de Dan Brown), profilers, entomologistas e, até, especialistas de moda …
Para melhor identificar um serial-killer, cabe-nos tentar compreender as suas pulsões e motivações pessoais, “fantasmas” que se traduzem na maior parte das vezes num ritual associado ao momento da carnificina, ou depois.
Investigações já feitas, que nos permitem compreender melhor este fenómeno (que alterou por completo a tipologia de certos crimes), apresentam-nos um criminoso-tipo dificílimo de detetar.
Porque não mata por benefício pessoal (aparentemente). Dinheiro, ódio, vingança, paixão e ciúme, ideologia política não são a principal motivação.
Assassina frequentemente o mesmo tipo de pessoas. O crime é considerado uma espécie de ritual, para este tipo de homicida. A vítima não é um ser humano, mas um objeto, parte de uma representação fantasiosa, fetichista, que lhe é gratificante.
Na maior parte dos casos, nem conhece a vítima: quando muito, estuda-a antes do encontro fatal, nos seus hábitos e deslocações, para assegurar que o ritual (importante para ele) será cumprido com êxito.
Regra geral, como disse, é muito inteligente e é muitas vezes espantoso o cuidado com que estabelece a planificação dos seus crimes, a sua capacidade manipulatória e de sedução dos que o rodeiam, ou os subterfúgios infernais que por vezes consegue usar.
Muito importante ainda, neste tipo de crime, é diagnosticar dois tipos muito diferentes de criminosos: o paranoide psicótico esquizofrénico e o sociopata ou psicopata de personalidade associal, onde predomina um quadro de maus tratos na infância, abuso por parentes, etc.
Este último não sente empatia por ninguém e é manifestamente incapaz de ter consciência, quanto as pratica, que as ações que comete podem ferir e fazer sofrer a outrem. Para ele, os outros só existem para prover às suas necessidades e fetichismos; é obsessivamente manipulador e sente um grande prazer em controlar os outros.
Quando mata não sente remorso algum, visto não ter um sentido de autocontrolo ético, a que chamamos “consciência”. O que o torna mais aterrorizador é o seu aspeto normal, sem o menor vestígio de comportamentos estranhos ou pensamentos patológicos e, até, um encanto superficial e fluência verbal, que coloca ao serviço da dissimulação permanente.
Normalmente, tem como pai um alcoólico violento, delinquente ou pedófilo incestuoso. Tem frequentemente antecedentes penais, é toxicodependente e muitas vezes sádico. Procura a todo o custo escapar da polícia. Quase sempre é do sexo masculino. Este serial killer é um perigoso doente social: iniciado o percurso, já não pode parar de matar. Pior, só existe através da morte dos outros, acelera o ritmos das mortes que inflige, numa necessidade crescente de amiudar o prazer que o ato de matar lhe traz, e só se detém, enfim, se for morto, capturado ou se se suicidar (o que rarissimamente acontece).
O psicótico, por seu turno, tem normalmente antecedentes com perturbações mentais (mãe, pai, avós), antecedentes psiquiátricos frequentes, quimioterapia psicotrópica insuficiente ou interrompida. É solitário ou vive, adulto maduro, com os pais ou a mãe, tem quase sempre um comportamento associal violento que prenuncia o crime, age sempre sozinho e denuncia-se ou deixa-se prender sem resistência. Ao contrário do anterior, é inimputável.
Casos célebres não faltam, variando do celebérrimo “Jack, the Ripper” vitoriano, ao nazi Peter Kürten, o tristemente célebre “Vampiro de Düsseldorf” (que começa os seus intermináveis crimes, depois de se ter entusiasmado, a 27 de julho de 1928, com um inflamado discurso de propaganda nazi do Dr. Josef Goebbels, no Cinema Corso), de Marcel Petiot, o “resistente anti-nazi”, Albert de Salvo, o “estrangulador de Boston”.
Mas não é dos criminosos reais que quero falar.
Ultimamente tem proliferado, a um nível e com um êxito espantoso, a ficção de crime e mistério, baseada nos serial killings ou seus afins, um pouco por todo o lado.
Diz Mário Beja Santos, num artigo (Jornal d’Alenquer de janeiro de 2005), que “a banalização da violência a que chegámos, prende-se com a atração visceral que temos pela catástrofe, pelo mórbido e pelo sanguinário, que se tornou necessidade primária, com novos apelos à segurança”.
Diz mais: “…, mas se estas aberrações nos fascinam, têm como contraponto a ideia que a maquinaria de segurança descansa as consciências, o que se sabe ser um rematado fracasso (um maior número de polícias e prisões, nos EUA e no Reino Unido, não consegue debelar a criminalidade, que alastra como uma mancha de óleo)”.
E, por fim, salienta que o “Estrangulador de Boston” ou “Jack, the Ripper” são “meninos de coro”, comparados com o Dr. Hannibal Lecter, ou os protagonistas de “Seven Mortal Sins” ou “Birdman” (Mo Haider).
Tudo isto, conclui, cria um subgénero que instila um “pavor sem direção, que a razão sugere não passar de ficção … enquanto nos mesmos territórios civilizados aparecem histórias bem reais que nos deixam em choque”. Portanto, questiona-se “por onde passa o poder da máquina da (in)segurança e a manipulação das consciências, nesta violência do entretenimento”.
Tem razão, é claro.
Mas o mal já vem de longe.
Porque a abordagem, na ficção policiária deste tipo de temática, tem origens muito longínquas, tentou quase todos os grandes nomes da ficção policiária e possuía, desde o início, contornos de violência, brutalidade e sadismo verbal, iguais ou maiores que os atuais .
A violência física e psíquica da sociedade urbana, globalizada, em que vivemos, a Espada de Dâmocles nuclear e terrorista, a opressão e exploração ultraliberais do consumo, geram a apatia e um bem-estar vegetativo (para alguns), mas também a banalização (e necessidade de multiplicação) de todos os tipos de horror.
E, por isso, face aos avanços tecnológicos e científicos (quase sempre manipulados por estruturas desumanas e irracionais), não se varreram no homem comum os terrores dos arcanos, as lendas obscuras de duendes e lobisomens.
Mas ressurgiram modernizados, com nova força, novo significado, novas roupagens. E uma aterradora ideia de que a sua perversidade é ainda maior, que perderam o que, nos antepassados, pudesse ainda existir de fronteiras éticas ou de mera decência.
Necessitamos, na neurótica sociedade atual, dos mitos e do terror ritual e sangrento para exorcizar os horrores quotidianos da legionella, da bestialidade religiosa dos salafitas, do Échelon, do campo de concentração planetário que é a Covid.
Vlad Dracul, voivoda da Valáquia, o heroico combatente da liberdade romena, é Drácula; Barba-Azul (o corajoso Gilles de Rais, companheiro de batalhas de Jeanne d’Arc) é Landru; o Lobisomem nasceu da Bête de Guévaudan. Croquemitaine ou Satã, até dão excelentes disfarces de carnaval.
Agora, a banalidade do horror é total e inova sempre para se manter à tona.
A quem comparar o canibal Dr. Hannibal Lecter, o “Birdman”, “Candyman”, o “Bone Collector”, criação do astuto mercenário Jeffery Deaver?
O terror (que começa em casa, no pesadelo da insegurança urbana e termina na lei da selva do trabalho) que impregna a estrutura narrativa de muitos dos best-sellers atuais, de Patricia Cornwell a Dennis Leheane, é um terror acusador e implacável, pois mostra-nos, no espelho Borgiano, como agem os Zombies, os licantropos, os canibais. E que é, bem vistas as coisas, o mundo em que se (sobre)vive.
Por isso, muitos dos mitos urbanos, tipo Elm Street, vestem os andrajos miseráveis de um vagabundo da Bowery e não a última criação de Armani.
Consciência de classe? Complexo de catarse, via ficção psicoterapêutica, com o acentuar das desigualdades sociais, geradoras de revolta?
É impossível, por mais que se procure, encontrar ambiente mais obscurantista trágico, pessimista e sem saída, para “bons” e “maus”, que o que nos dão os quarenta e muitos episódios televisivos da série “Millenium” do neo-con Chris Carter.
O mercado editorial e cinematográfico pressentiu-o, antes ainda da tantálica TV .
Com a bênção (e em consonância) com a política hipocritamente puritana de Reagan, Bush, Trump e as suas filosofias ultraliberais e liberticidas.
Preparando-nos para brumosos amanhãs, bem piores que os sonhados pelos inquilinos do Inferno.
Recentes séries da televisão, na maioria oriundas da nova fábrica norte-americana de pesadelos de Seattle (sob a batuta de Chris Carter) apresentam uma melodia subjacente a muitos dos seus episódios (quase todos).
Tema dominante: o mundo está podre, o Apocalipse está para vir, o Mal absoluto domina a família sem Lei (e Ordem) e o cidadão (sem Religião).
Tema recorrente: o serial killer, que tem cerca de cinquenta minutos para mostrar o que vale (cinematograficamente).
Às vezes, tem segunda ou terceira oportunidade, noutros episódios.
Estou a falar de “X-Files”, “Millenium”, “Profiler”, “Criminal Minds”, todas exibidas generosamente nas TV de Portugal.
De todas (independentemente da excelente interpretação de Gillian Anderson, Lance Hericksen, Robert Daví ou David Duchovny), ressalta um modelo do Mundo baseado numa ideologia repulsiva, do mais deprimente que tem aparecido nos últimos decénios.
Há personagens bem-intencionadas, mas (sabemo-lo desde o início) condenadas, à partida, ao insucesso, ao sofrimento, à morte violenta dos que amam e o Mal ganha sempre ou quase sempre.
Usa-se o terror, para ensinar a odiar e ter repugnância pela diferença.
Usando o que Chris Carter chama “Biological Oddities”, “Weird Natures”, “Feral Humans”, “Fallen Angels”, “Reincarnation”, numa palavra, modelando “New Shapes of Fear and Leaps of Faith”, este demiurgo perverso consegue criar, sobretudo em “Millenium”, um fascinante (mas odioso) estado de pavor ao inusitado, na mente do norte-americano e, porventura, prepará-lo para novos Holocaustos eugénicos.
Quem hesitará em matar um ser humano (criança, idoso, operário haitiano, velhota rural) se ele for a encarnação viva do Maligno?
E não é por acaso que coincidem num ápex que dá calafrios o neoliberalismo globalizante e este brutal eclodir de horror, nas suas facetas mais sórdidas.
Começando em pianíssimo, esta escola (para lhe darmos alguma designação) começou, com o virar do século XXI, a tomar progressivamente conta do mercado televisivo, do dito “policial”, até do cinema, a impor-se no mercado.
E é atualmente responsável por mais de setenta por cento das novidades que o marketing televisivo e livreiro-editorial posiciona e manobra, para obter best-sellers premiados. A mudança de mensagem e ideias ínsitas nas séries da FOX (American Dad, Simpsons) causam medo.
Como disse, foi quase impercetivelmente que surgiram alguns livros que seriam pioneiros no género. Com um suporte ideológico rigorosamente igual para todos eles.
Livros de terror puro? Mais negros que o género “negro”? Thrillers psicológicos, para sádicos e neuróticos.
De um horror gratuito, frequentemente pueril, de Robin Cook, de Jean-Christophe Grangé, de Patricia Cornwell, até ao gótico de catedral, com um dobrar de sinos de cemitério, com os livros de Thomas Harris, Nina Ricci, Mo Hayder, Boris Starling, deu-se um salto enorme para o inferno.

Albert DeSalvo conhecido como o do Estrangulador de Boston durante a detenção

Merece uma referência à parte (se tivermos estômago forte) uma recente revelação – um francês americanizado, nascido em 1976 em Herblay, Val d’Oise, que viveu muito tempo em Nova Iorque, Denver e Portland-Oregon, onde se situam os seus intermináveis romances.
Refiro-me a Maxime Chattam, que, entre 2003 e 2008, produziu algumas obras excecionais para quem goste deste género doentio.
“Le 5ème Règne”, 2003, “Le Sang du Temps”, 2005, “Les Archanes du Chaos”, 2006, “Prédateurs”, 2007 e a trilogia (“L’Âme du Mal”, “In Tenebris” e “Maléfices”) protagonizada pelo profiler Joshua Brolin e pela sua colega da NYPD, Annabel O’Donnell. Revela cuidado na caracterização das personagens secundárias ou, mesmo de passagem, um híper realismo tecnicamente eficaz, um bom conhecimento das técnicas de investigação policial e laboratorial (estudou criminologia em Saint-Denis) criando prosa de excelente recorte.
Mas os seus hediondos assassinos em série têm clara impregnação metafísica, são o Mal em estado puro.
Como disse já, mesmo neste inferno dantesco, há Cervantes e Pinheiros Chagas.
E mesmo livros, filmes e séries televisivas que são dotadas de qualidade.
Convém, no entanto, prepararmo-nos para enfrentar este dobre de finados, vendo previamente, “Bowling for Columbine”, de Michael Moore.

Carlos Macedo

 

 

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