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Viagens ao interior da literatura de crime e mistério (28): Uma trepidante incursão por um subgénero literário bem impregnado pela História

IDADE MÉDIA

Sharan Newman (n. 1947, Ann Harbour, Michigan) dá o tom dos EUA (sempre marcado por uma difusa a austera religiosidade) neste tipo de obras (“Lápides Mortais” e “As Portas do Demónio”), em que a heroína é uma noviça. Sensatamente abandonados os votos de entrega total a Deus, mera hóspede de um convento, onde aguarda que o noivo a venha buscar, tem como abadessa a célebre Heloísa, sobrinha do odioso Fulbert e amante de Abelardo, referência obrigatória em filosofia medieval.

Imagem do filme O Nome da Rosa, realizado por Jean-Jacques Annaud baseado no romance de Umberto Eco, com um elenco de luxo, aqui Sean Connery e Christian Slater, 1986

Peter Tremayne (P. Berresford Ellis, n. 1943), por seu lado, historiador apaixonado pela cultura e civilização celtas, sobre as quais escreveu vários livros, escolhe o convento de Darmaigh, a memória de São Columbano, as terras de carvalhos de Éireann e a Irmã Fidelma, como detetive, em “A Canticle for Wulfstan”, de 1995, entre muitos outros.

Série televisiva Irmão Cadfael, protagonizada por Derek Jacobi

Ellis Peters (Dame Edith Pargeter), com muito maior nível literário, britânica fascinante (1913-1995), inicia, a partir de 1977, o ciclo heroico e rico em vida e colorido das descrições do seu célebre Brother Cadfael, monge e ex-cruzado galês, trabalhando como herborista no mosteiro beneditino de S. Pedro e S. Paulo, em Shrewsbury, na fronteira Inglaterra/Gales do século XII, na época mais sanguinária das guerras da imperatriz Mathilde.

Esta figura curiosa de aventureiro sagaz, que escolheu, aos quarenta anos (cerca de 1175), a reforma e segurança relativa do convento onde professou, exerce com serena competência a atividade de botânico e farmacêutico, num convento de uma ordem que foi célebre pelos seus conhecimentos da natureza e da agricultura. As suas proezas de dedução (a que não resiste) são-nos retratadas de forma historicamente encantadora e com exatidão nos dados históricos.

Sempre borbulhante de atividade, resolveu ser Sherlock Holmes a tempo parcial (quase a tempo inteiro, pensa o leitor), para tentar esquecer as terríveis lutas que travou, em terra e mar, contra os sarracenos.

Companheiro de Godefroy de Bouillon em Antioquia e Jerusalém, torna-se detective e tão implacável como a Inquisição em plenário.

A sua criadora é torrencial[1], dotada de um faro comercial notável: as séries TV-BBC, protagonizadas por um bom ator, Derek Jacobi, nos anos noventa, dirigidas pela mão competente de Graham Theakston, venderam-se como pão quente.

A subtil Dame Edith Pargetter (alias Jolyon Carr, sob cujo nome escreveu alguns dedutivos excelentes), criou, já em idade avançada (mais de 64 anos), esta figura ímpar. Que tem como dever que a si impôs, fazer justiça (naquela época rude, pululando de espadas e punhais), para tentar penitenciar-se (diz-nos) das terríveis lutas em que trucidou tantos muçulmanos.

Jolyon Carr produziu diversos romances de excelente qualidade literária, sob os diversos pseudónimos, que merecem ser lidos.

Michel Jecks, britânico, oferece-nos o Brother Ralph de Houndeslow, na Ordem dos Cavaleiros do Templo de Salomão.

Embora, ao falar dos Templários, se entre em terrenos onde tantos tentam fazer deles o que eles por certo nunca foram.

Paul C. Doherty

Paul C. Doherty, nativo do Middleburough, Yorkshire, Reino Unido, e educado na sofisticada Woodcote Hall School, estudou História em Liverpool e Oxford e doutorou-se por fim nesta última cidade, com mérito sem dúvida, vivendo presentemente em Epping Forest, onde é Headmaster numa escola superior na qual ensina, também, história medieval.

Usando também os pseudónimos de Michael Clynes / Paul Harding / C. L. Grace, dedicou-se apaixonadamente (está, ao fim e ao cabo a jogar em casa) aos romances histórico-policiais, desdobrados por quatro épocas, quatro descobridores de enigmas e quatro pseudónimos literários!

São, pois, quatro as séries:

Master, depois Sir Hugh Corbett, espião de Eduardo I de Inglaterra (cerca de 1300), acompanhado do seu Watson, Ranulf, no início do século XIV: “Satan in Saint-Mary’s”, “An Ancient Evil”, “Crown in Darkness”, “Spy in Chancery”, “The Angel of Death”, “The Prince of Darkness”, “Murder Wears a Cowl”, “The assassin in the Greenwood”.

Kathryn Swinbrooke, física e boticária em Canterbury, mas já no século XV (cerca de 1470-80), em plena Guerra das Rosas, que destroçou as casas de Iorque e Lancastre, terminada (para a heroína aparentemente com a derrota de Henrique VI Lancaster, em Tewkesbury, em 1471): “Saintly Murders”, “The Eye of God”, “The Merchant of Death”, “The Book of Shadows”.

Também temos o erudito Dominicano o Black Friar, Frei Athelstan, em plena Idade Média, mais concretamente, em 1379, sob o soturno domínio de John of Gaunt, duque de Lancaster, quarto filho de Eduardo III e regente em nome de seu sobrinho Richard II: “The House of Crows”, “The Nightingale Gallery”, “The House of the Red Slayer”, “Murder most Holy”, “The Anger of God”, “Candle Flame”.

Finalmente, apresento-vos outro alter ego do nosso especialista da história dos malvados: Michael Clynes, com “The White Rose Murders”, “The Poisoned Chalice”, “The Grail Murders”.

Aqui o herói (criado em 1991) é Sir Roger Shallot, nobre, diabolicamente perverso, destituído de quaisquer escrúpulos, émulo renascentista de Wimsey e Campion, resolvendo todos os mistérios do século XV, sob os auspícios de Henrique VII Tudor.

Na nebulosa Albion, claro.

Na França proliferam os talentos (muitos) neste campo.

 

Noelle Le Frêne, natural do Isère e professora (neste género de obras, é quase um must) em Pau, lança-se com uma excelente obra, a meio caminho entre o fantástico gótico e o policial, baseada num livro de 1603, obra do Grand Juge Henri Boguet “Le Discours Éxecrable des Sorciers”, onde nos fala de invernos gelados e de lobisomens no Jura: “Les Loups de Longchaumois”.

O detetive (“assez piètre, il faut le dire”…) é um discípulo espiritual de Rabelais, Thierry Armau, médico pela Faculdade de Montpellier.

 

Outro fôlego parece revelar-se em Marc Paillet, historiador, diretor da France-Presse, jornalista e antigo resistente. Criou um detective curioso, o “Missi Dominici” Erwin, le Saxon, vivendo no ano 800 da era cristã, nos gloriosos tempos de Carlos Magno e Leão III.

Tem como Watsons (ou sicários), um antigo rebelde, Doremus, Frei Antoine, de cognome o Pançudo e Timóteo, o Grego.

“La Salamandre”, Le Poignard et le Poison”, “Le Gué du Diable”, “Le Spectre de la Nouvelle Lune”, “Le Secret de la Femme en Bleu”, “Les Vikings aux Bracelets d’Or”, alguns mais, merecem leitura e elogios.

Romain Sardou, uma espécie de hippie fora de prazo, que tentou tudo no campo da música e teatro de ópera, vagabundeou de Los Angeles a Paris e publica, aos trinta anos, o seu primeiro romance, “Pardonnez nos Offenses”, que decorre em 1284, em Heurteloup e Draguan, pequenos povoados da diocese de Toulouse.

Menciona (inevitavelmente, ao que parece, la peur du loup, si française) lobisomens e até os quatro cavaleiros do Apocalipse e acaba com a questão, em 1296, por via de uma limpeza digna de Himmler. No entanto, a reconstituição da época é cuidada, o estilo e a ação cinematográficos, convidativos à leitura de futuras obras suas.

E chegamos, por fim, àquele que todos tentam copiar, que é citado como inspirador, que leva as editoras a dizer que aquele policial é no género de…

Falo, claro, de Umberto Eco. As aventuras do intelectual franciscano William de Baskerville em 1327 (ele, que foi antigo e angustiado Inquisidor, amigo pessoal de William de Occam e Marsilio de Pádua), criaram um marco fundamental na literatura policial. Quando, na minha opinião, a obra de Eco era apenas mais um dos seus extraordinários exercícios do sardónico semiótico da Universidade de Bolonha (como “O Pêndulo de Foucault”, “La Misteriosa Fiamma della Regina Loana”, “Baudolino”), onde, de forma velada, exercitou o seu ódio (ou admiração) a alguns gigantes literários (a figura de Fray Jorge, no “Nome da Rosa”, é uma forma cobarde de ataque e não de consagração literária a Jorge Luis Borges, que não dignifica a Eco).

Apesar disto, “Il Nome della Rosa”, publicado pouco antes de 1980, é uma obra-prima. Escrita, há que dizê-lo a favor de Eco, sem a mínima intenção de o vir a ser.

Eco tem um sentido de humor temível. Ele é o homem que, em crónicas para a revista “Il Verri”, na crítica literária, recomendava a Bíblia, porque

“…é o que hoje se chama um “livro de evasão”: muito sexo, adultérios, sodomia, incestos, assassinatos, guerras e massacres! O episódio com os dois “travestis” que querem passar por anjos, em Sodoma e Gomarra é rabelaisiano; as aventuras de Noé, puro Júlio Verne; a fuga do Egipto não escapa de ser levada, tarde ou cedo, para o cinema…”.

 

Sean Connery no filme O Nome da Rosa

 

Imagine-se o sopro épico do “O Nome da Rosa” que será sempre um dos dez grandes clássicos do policial, “malgré lui…”.

Como o próprio refere (“Setti Anni di Desiderio”, 1983, Milano) “…o ato de ‘força’ histórico nunca é um ato de força, mas sim um gesto simbólico, um ato teatral final, que sanciona, de um modo cenograficamente expressivo, uma crise de relações de poder que se tinha difundido capilarmente e há longo tempo…” e ainda, citando Foucault, “…na alma da revolta há certas resistências que são exemplos de qualidades: improváveis, espontâneas, solitárias, violentas, irredutíveis, prontas ao compromisso ou sacrificiais…”.

A gesta do franciscano Ubertino di Casale, da jovem camponesa sem nome, do dolcinista Frei Remígio da Varagine, do Dominus Cane Bernard Gui, mesmo de Frei Jorge de Burgos e Guilherme de Baskerville, são apaixonantes, traduzidas em páginas e páginas que tornam este romance inesquecível.

Outra obra-prima deste género é o romance de Josephine Tey (nascida em Inverness, Highlands em 1896, falecida infelizmente em 1952, cedo de mais): “The Daughter of Time”, escrito em 1951.

Que a concebe lançando o seu detective, o Inspetor Chefe Alan Grant, da Scotland Yard, numa cama de hospital. Por longo tempo.

Entediado de morte e com a ajuda da sua encantadora (sedutora mesmo) amiga, Martha Hallard, e de um jovem e tonto Yankee, propõe-se rever o assassinato dos filhos de Edward pelo tio, o sinistro Richard III de Inglaterra, na Torre de Londres. E inocentá-lo. E assim, com o maior rigor histórico, se desenrola um dos mais originais inquéritos policiais da literatura de enigma.

A Idade Média (como o Egito) tem sido um dos períodos mais procurados pelos autores do policial histórico.

E com heróis-detectives, cada qual mais bizarro que o anterior.

Candace Robb (arqueiro do século XIII), Ian Morson (professor de Oxford, nessa mesma época), etc.

Kate Sedley opta por um carregador, Roger Chapman, no reino de Eduardo IV de Inglaterra; a francesa Viviane Moore, por um cavaleiro, Galeran de Lesneven; a Russa Elena Arseneva, escolhe como herói o Boiardo Artem, Conselheiro do Princípe Vladimir de Kiev, na Rus do século XI.

Só lastimo que o príncipe Valiant, na corte de Arthur de Tintagel, D. João II, em Portugal, e Luís XI, o astuto raposo real francês, não se tenham também dedicado à detecção policial.

Excederiam tudo e todos.

RENASCIMENTO

Henrique VIII inspira uma das melhores obras desta época, da autoria do britânico (doutorado em História e advogado) C. J. Sansom. Que contou, à partida (é a sua primeira obra), com o inédito entusiasmo de P. D. James.

Tem por nome “Dissolution” e por herói um advogado corcunda e muito inteligente: Shardlake. Lord Cromwell, na sua luta pela proeminência política e religiosa de Henrique VIII sobre os papistas, precisa de auxiliares inteligentes e dedicados. Como Shardlake, um dos homens de Cromwell.

Tudo começará por aqui. Evidenciando um profundo e detalhado conhecimento da época (1536, mais ou menos), o autor demonstra uma enorme capacidade de a tornar vívida aos nossos olhos, um imenso talento para construir a evolução da trama narrativa do enigma e torná-la credível.

A época Elizabetiana inglesa inspira também Edward Marston, em 1988, com “The Queen’s Head”, tendo ao serviço da Justiça (a verdadeira) uma trupe de atores, do género dos que deram vida à obra de William Shakespeare.

Como J. F. Peirce, que, numa série de contos escritos entre 1973 e 1975, não está com mais aquelas e promove mesmo Shakespeare a detective.

Leonard Tourney, esse, contenta-se com um tal Matthew Stork, negociante de lanifícios e magistrado do Condado de Essex. A gentry começa a levantar a cabeça.

BARROCO

O Barroco da Restauração Stuart é uma época muito cara a John Dickson Carr.

“The Devil in Velvet” (publicado em 1951) passa-se em 1675, e o herói, transportado da época atual para o século XVII, por obra do Demo (literalmente), intervém na resolução de um crime da época. Nicholas Fenton, professor de História no Paracelse College de Cambridge, tem nomeadamente uma longa conversa com Carlos II de Inglaterra. Atravessado o espelho, como Alice (o processo utilizado é indigno de Carr) surge-nos uma obra que era a favorita de Carr e que tem um encanto muito especial.

“Most Secret” (publicado em 1964) passa-se em 1670. Começado (e publicado numa versão que hoje está fora do alcance do leitor comum) como um mero romance histórico, à Dumas ou Walter Scott, “Devil Kinsmere” e o seu herói, Roderick Edward “Rowdy” Kinsmere, recebem uma atenção mais cuidada aos pormenores históricos: introduz-se uma cabala muito secundária e temos o livro de espionagem que tanto agradou escrever a Carr, ultraconservador e admirador fanático dos dois Charles Stuart (o mártir e o aventureiro).

E isto, com uma hemiplegia, decorrente de um acidente vascular cerebral, que lhe paralisou o lado direito definitivamente e o começo dos incómodos do cancro da garganta, que o aniquilou.  Por isso o absolvemos.

Dessa época também, “The Murder of Sir Edmund Godfrey”, passado em 1678, “The Inn of the Seven Swords”, que decorre em 1649, “The Man with the Iron Mask”, peça radiofónica, que decorre entre 1674 e 1703.

Convenhamos que foi uma bela declaração de amor a uma época, ainda que imerecida (ou infelizmente, formulada pelas piores razões).

Já para o ano (tão pouco interessante para ele) de 1757, Carr concebe “The Demoniacs”, escrito em 1962.

E aqui, (como na obra de Bruce Alexander), em plena Guerra dos Sete Anos (1756-1764), convivemos com o imortal Laurence Sterne (o do “Tristram Shandy”), Sir John Fielding ou William Pitt, através de uma trama criminosa que, infelizmente, Carr, todo entregue ao prazer das aventuras dos protagonistas, relega para um segundo plano, muito, muito secundário.

IDADE DAS LUZES

Bruce Alexander (pseudónimo de Bruce Cook, nascido em Chicago, em 1932), por seu lado, escolhe como detective uma personagem real e bem real: Sir John Fielding, magistrado cego que viveu na Inglaterra, em meados do século XVIII, responsável pela criação de um corpo de polícia em Londres, o primeiro, aliás, os “Bow Street Runners”, patrulhas destinadas à segurança das ruas de Londres. Sir John Fielding que tem um biógrafo, um Watson, um canino admirador e um Boswell, num jovem de nome Jeremy Proctor.

Tem igualmente um irmão.

Nem mais nem menos que Henry Fielding, o extraordinário romancista de “Joseph Andrews” (1742), “Tom Jones” (1749) e “Amelia” (1751).

A série de romances, envolvendo a dupla Sir John-Jeremy tem inegável interesse, a reconstituição é fiel, verosímil e fundamentada, e as intrigas policiais, apaixonantes. Escreveu, até à data, “Blind Justice”, em 1994, “Murder in Grub Street”, em 1995, “Watery Grave”, em 1996, “Person or Persons Unknown”, em 1997, “Jack, Knave and Fool”, em 1998, “Death of a Colonial”, 2000, “The Colour of Death”, “Smuggler’s Moon”, 2001.

Na mesma linha e época, só que em país diferente, devo ainda referir Robert Lee Hall (nato de S. Francisco, 1941) e o seu detective: o cientista, político e diplomata americano Benjamin Franklin. Que nos aparece, em livros de 1990 e 1991, coadjuvado por um conveniente Watson in herbis, Nick Handy, em “Benjamin Franklin and a Case of Artful Murder”, “Benjamin Franklin and a Case of Christmas Murder”, “Benjamin Franklin Takes the Case”, “Murder at Drury Lane”, e fá-lo com um sentido crítico e uma exatidão histórica que o colocam entre os melhores.

O nosso cientista de Boston será ainda fonte de inspiração (e detective) para Theodore Mathieson em “The Devil and Ben Franklin”, de 1961.

Não há dúvida que a figura do nosso polígrafo (continuo a falar de Franklin) devia ser fascinante porque, em 1978, Donald Zochert também a usa, em “Murder in the Hellfire Club”.

Ainda mais ousado é o inventivo espírito da norte-americana Lillian De La Torre (aliás Lillian Bueno Mc Cue, 1902-1993), ao usar Samuel Johnson como Holmes e o seu biógrafo, James Boswell, como Watson, em nada mais que quatro volumes de contos curtos, escritos entre 1946 e 1987.

Universitária de renome, literata emérita, não se lhe encontram falhas ou incongruências grosseiras, como em muitos outros.

E o espírito satírico e irónico das histórias, nada fica a dever a Johnson himself.

Mais uma iniciativa feliz do “Ellery Queen’s Mystery Magazine”.

Façamos uma breve digressão por França, a França da Regência e de Luís XV.

Respectivamente.

Aí somos apresentados a Florent Bonevy (“Sauve-Du-Mal”), médico, judeu holandês (não assumido) e detective que tenta ajudar, como médico e investigador criminal, a tornar a França de Philippe Orléans, entre 1718 e 1723, um pouco menos sórdida.

Por seu lado, Nicolas Le Floch, que, em 1761, deixa a sua Bretanha natal, para mergulhar no sinistro mundo de esbirros e denunciantes de Monsieur de Sartine, chefe da polícia política de Louis (XV), é mais consistente, movendo-se num Paris do século XVIII, admiravelmente reconstituído.

Dominique Muller cria o primeiro[2]; Jean-François Parot, o segundo.

No dito Terror (cerca 1793), Béatrice Nicodème (“La Mort du Loup Blanc”) propõe-se brincar aos murder parties. Ao que parece, não recidivou.

SÉCULO XIX

NAPOLEÃO (1790-1830)

Aqui, como em quase todos os subgéneros e temas do policial, não podemos evitar mencionar o inefável John Dickson Carr. Neste caso “Captain Cut-Throat”, publicado em 1955.

A história passa-se em agosto de 1805, envolve sem subterfúgios as intrigas pérfidas do exército napoleónico e um dos (principais) protagonistas é uma das figuras-fetiche de Carr: Joseph Fouché. É um perfeito romance de espionagem, com um desenlace que nem Hitchcock imaginaria. Este desenlace é supremo: como cento e trinta anos depois, trata-se de prevenir a invasão da Grã-Bretanha, pelo exército de um tirano odiado.

Odiado pelos ingleses, claro.

Em 1950, já fora publicado outro romance deste tipo (“The Bride of Newgate”). Neste já nos encontramos, à partida, a 22 de junho de 1815. Resulta (noutro capítulo o referirei) de um dos inúmeros desafios e apostas de dois gaiatos profundamente amigos: Clayton Rawson e John Dickson Carr. Passa-se em Inglaterra, na época tragicamente dissoluta de Guilherme IV, então indigno Regente do Reino Unido.

A história tem episódios de “crime impossível e quarto fechado”, perfeitamente estupendos. Na Ópera, em Convent Garden, cruzamo-nos com George Brummell, a Duquesa de Argylle, Caroline Lamb.

Carr cria um ritmo endiabrado às constantes peripécias, o que realça o mérito do enigma policial.

Devem-se-lhe também alguns outros “primores da época”.

“The Body Snatchers”, baseado no caso (real) de Burke e Hare em Edinburgh, em 1825, deu ideias a Carr para conceber uma fascinante intriga, sem pretensões, mas ainda assim, capaz de prender o rádio-ouvinte ou o leitor à poltrona adequada.

Passada em 1830, compraz-se, muito naturalmente, em citar (e felicitar) a aparição dos Peelers, polícia regular, enfim, numa palavra, os Bobbies de Sir Robert Peel.

“Fear is the Same” (publicado em 1956), com nova e absurda viagem no tempo, de um amável casal de contemporâneos nossos (Philip Clavering e Jennifer Baird) que acabam por aterrar no ano de 1795, em plena Regência de George IV de Inglaterra.

“Fire, burn!” faz, por sua vez, o simpático Superintendant Cheviot da Scotland Yard de 1957, aterrar de repente num fiacre londrino, no ano de graça de 1829.

O mesmo se passa em “Scandal at High Chimneys”, de 1959 e em “The Witch of Low-Tide”, de 1961. Estas três obras retratam, de forma muito didáctica:

a aparição da Scotland Yard (1829), que acabará por liquidar a sua rival, criada por Sir John Fielding;

a época da aparição dos investigadores privados na segunda, que decorre em 1865;

finalmente a terceira (passada em 1907) evoca, eloquentemente, como o tinham feito, na própria época, um Austin Freeman ou um Conan Doyle, os progressos das modernas técnicas científicas e médico-forenses, na evolução da criminologia e dos respectivos métodos de investigação.

Mas aqui, para não perdermos Carr de vista, já passámos por toda a época vitoriana e já vamos em Eduardo VII.

Ainda Carr em “The Hungry Goblin”, de 1972, faz aparecer o genial Wilkie Collins como detective. E, em “The Gentleman of Paris”, é-nos claramente apresentado (embora sem se identificar), o infortunado Edgar Allan Poe. Que até de West Point é solicitado (“The Pale Blue Eye”, 2006, do americano Louis Bayard) para descobrir um assassino.

“VITORIANOS” (1850 – 1914)

Michael Didbin coloca, com um discreto charme, adequado ao protagonista, o poeta Robert Browning (nascido em Camberwell, 1812-1889), investigando um assassínio numa colónia de anglo-americanos de Florença. O poeta, com efeito a seguir ao seu casamento, em 1846, com a poetisa Elizabeth Barrett Browning, escapou-se para Itália a um (imagino) insuportável sogro e restante família vitoriana. Onde viveram em Roma, Siena e por fim, Florença, até à morte de Elizabeth, em 1861. De visão otimista, mas lúcida, excelente poeta, “bluntness in tone, pugnacious and argumentative”, (como tal o descreveu Didbin), teria dado um excelente detective.

 

Não é possível deixar de referir, nesta época, os milhares (digo bem, largos milhares) de obras de contemporâneos nossos que se dedicaram a fazer pastiches, sequelas ou sátiras à época vitoriana tardia em que se moveu Sherlock Holmes… incluindo Didbin (“The Last Sherlock Holmes Story”).

Milhares, quase todas muito más.

Desde os longínquos tempos em que Sir Adrian Conan Doyle se aliava a J. Dickson Carr, ou Ellery Queen punha Holmes às voltas com o Ripper de Whitechapel, todos os anos saem fornadas de livros que nos restituem às delícias de Baker Street, sem Blogues, Internet e Twitters a fazerem-nos a vida num inferno.

Sem culpar Holmes, origem deste fenómeno penoso, devo dizer que muitos oportunistas (a par com escritores policiais de real valia) usaram o maná financeiro de reconstruir o final do século XIX, usaram o superlotado e abençoado período do interregno Holmesiano, após a falsa queda das cataratas de Reichenbach e é um vê se te avias, sem conta peso ou medida.

E assim já tivemos Sherlock Holmes a ser tratado da toxicodependência, por Sigmund Freud (que arranja das boas, coitado, para explicar as relações digamos afectivas, do velho estafermo que devia ser a mãe Mrs. Holmes com Moriarty); a ajuda em casos (sempre “de vida ou de morte”) de Karl Marx, Albert Einstein, Oscar Wilde, Bertrand Russell, Bernard Shaw (que ele devia odiar pelo que disse de Sarasate), Aleister Crowley, Ludwig Wittgenstein, John Maynard Keynes, Stephane Mallarmé, Paul Verlaine, o jovem pedante Winston Churchill ou Dracula (himself…), Jane Marple, até Peter Wimsey (ainda uma criança) e esqueço, misericordiosamente, imensos colunáveis!

Holmes é também mulher, vivendo por isso com Watson; noutros, apenas como um simples homossexual; Watson também é uma mulher disfarçada; é o pai de Nero Wolfe (uma noite de ramboia com a americana Irene Adler em Montenegro, num conto de 1982). É “Jack the Ripper”, mérito que partilha com Watson e com Gregson, da Scotland Yard.

Ou limita-se a ser apenas a vítima de um manuscrito maldito de Stevenson, que conduz ao crime, e é um alter-ego do super “serial-killer” Dr. H. H. Holmes, nos Estados-Unidos.

Viaja pelos países mais inomináveis, batendo mesmo o civil-masonic-servant Rudyard Kipling, numa viagem pelo Raj (no devotado interesse da rainha-imperatriz), espionando vários anos, pela Índia, pelo Tibete, Sikkim e Nepal, acolitado (ou não) por um Watson ainda mais débil mental (se possível) que o original: o sábio (e espião) bengali Hurree Chunder Mookerjee.

Salva a vida à jovem e inocente Jane Marple, descobre o cão perdido do jovem Peter Wimsey e ajuda uma odiosa Mary Russell (pelo menos segundo Laurie R. King), sem intenções brejeiras ou mercenárias.

Auxilia o heroico Sir Denis Nayland Smith na sua eterna cruzada contra o temível Fu-Manchu e, bravo dos bravos, auxilia Stanley Baldwyn a vencer a inflação (meu Deus, até Baldwyn…).

É um Robot-ciborg (segundo Robert Lee Hall) e é também o Diabo.

Quando não está disponível, Lestrade, seu irmão Mycroft, o mandarete irregular Wiggins, Mrs. Hudson e até o gato da porteira ajudam à festa.

No entanto, alguns (muito poucos) contos ou livros são dignos do autor que emulam, algumas reconstituições históricas são mais verídicas que a atmosfera dos contos e romances de Conan Doyle, algumas ideias são originais e brilhantes[3].

Merecem uma referência muito especial, contracorrente, dois livros encantadores de um brasileiro que, como J. L. Borges, me parece mais europeu que os europeus: Jô Soares.

Este extraordinário entertainer e humorista (que teria metido num chinelo Noel Coward, se uma competição idónea tivesse sido possível) resolveu lançar, em 1995, dois pastiches: de uma aventura de Sherlock (“O Xangô de Baker Street”), passado na corte de Pedro II, no Rio, onde se descobre que Jack the Ripper é, afinal, brasileiro e “Assassinatos na Academia Brasileira de Letras”, de 2005, onde o detective, Machado Machado, é um alias do escritor Machado de Assis.

O primeiro passa-se em 1896, no período final do império brasileiro, aonde se deslocam Holmes e Watson, a pedido da Corte Imperial de Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança-Habsburgo.

Vulgo D. Pedro II do Brasil, que, como disse o brasileiro Roberto da Matta “não nasceu, foi fundado”.

Desaparece um Stradivarius, oferecido à imperial amante, a Baronesa de Avaré; aparece uma torrente de serial killings, que parece não ter fim e Sarah Bernhardt, em tournée pelo país, sugere ao Imperador que contrate Holmes para resolver os nefandos mistérios. A reconstituição histórica é excelente, Holmes comporta-se como se esperava (falha em toda a linha, convencido de que acertou) e o desenlace é delicioso (mas só leitor o conhecerá, não Holmes…).

Já Peter Lovesey, mais hábil, arranjou maneira de saltar para a época pré-Eduardiana e fazer de Albert Edward VII of Saxe-Coburg-Gotha (Windsor, só depois de 1917), Príncipe de Gales, o detective de vários dos seus romances histórico-policiais.

Assim, nos anos oitenta surgem “Bertie[4] and the Tinman”, “Bertie and the Seven Bodies”, “Bertie and the Crime of Passion”, todos ocorridos à volta de 1890.

Melhor ainda (é um sardónico e impiedoso retrato da Belle Époque inglesa) é a saga (transformada, com felicidade, em série TV britânica dos anos oitenta) do Sargent Cribb e do detective-constable Edward Tackeray.

“A Case of Spirits”, “Abracadaver”, “Waxwork”, são sátiras poderosas a uma sociedade profundamente injusta, construídas com base em histórias de muito bom nível.

A Escócia do século XIX é o teatro de operações do Inspetor Faro, em obras de interesse da escocesa Alanna Knight (“The Coffin Lane Murders, “Blod Line”, “The Bull Slayers”, “To Kill a Queen, “Enter Second Murderer e muitos outros)

Mas, como em tudo, existem bons e melhores ainda.

Quanto à vida e obra de Anne Perry e Boris Akounine remeto o leitor para a terceira parte desta obra (biografias).

Julian Symons, nome mais do que consagrado no policial inglês, apresenta-se-nos com um livro, “The Blackheath Poisonnings”, que se desenrola na época vitoriana, em 1890, num agregado familiar de burguesia enriquecida. A denúncia da podridão hipócrita e dualidade de vidas dos protagonistas é o fator de ignição dos dramas, que atingem níveis de perversidade pouco habituais.

Claude Izner são duas irmãs, Liliane Korb e Laurence Lefèvre.

Bouquinista uma, arqueóloga outra, adoram o Paris da “Belle Époque” e aí situaram uma equipa de geometria variável, um pouco como Caleb Carr, que inclui dois livreiros, Victor Legris e Kenji Mori, o seu empregado Joseph, e uma ou duas jovens que vão variando.

“Le Carrefour des Écrasés”, “La Disparue du Père-Lachaise”, “Mystère Rue des Saint-Pères” e “Le Secret des Enfants-Rouges”, “Le Léopard des Batignolles”, centram-se em acontecimento realmente ocorridos.

O Chat Noir de Aristide Bruhat, os atentados de Ravachol, a exposição Universal de Paris, em 1889, o escândalo do projeto do canal do Panama, a epidemia de influenza de 1890 em Paris, são o pretexto para tramas bem delineadas, cuja dramatização nos pisca constantemente os olhos, para que não esqueçamos Paris.

O tremendo escândalo do Canal do Panamá (de corrupção financeira e política que fortemente abalou a república e a democracia francesas, em fins do século XIX) torna detective um neto e bisneto de Presidentes dos EUA, um tal Henry Adams, no livro “Panama” de Eric Zencey, de 1995.

Os italianos Francesco Guccini e Loriano Macchiavelli resolveram introduzir a crítica social violenta no seu livro “Macaronì”, que relata a exploração tenebrosa e a vida dramática dos emigrantes italianos na França da III República, mais precisamente em 1884.

Como o faz, em Madrid, mas numa abordagem ideológica quase oposta, o espanhol Arturo Pérez-Reverte, em “El Maestro de Esgrima”, de 1988.

Num verão de 1868, as figuras de Prim, Serrano, Sagasta, conspirando no exílio, Isabel II, beata e lúbrica, vistos pelos olhos de um homem de classe média desencantada, provinciana e sem horizontes, que o acaso e a sua proverbial honestidade a um código de corporação, mergulha numa história de homicídio e espionagem.

Até os EUA resolveram que resultaria (financeiramente), estava “in”, ou era útil, por orgulho patriótico ou filão político, explorar o manancial do vitorianismo dos próprios Estados Unidos.

Pois não o fizera já o inevitável e torrencial Dickson Carr, em 1968, com “Papa, Là-Bas”, excelente novela que se passa no alegre “Mardi Gras” de Nova Orleães, em 1858? Um “Her Magesty’s Consul”, uma “Creole Society Dame, Madame de Sancerre”, um Senador que tem existência histórica (Judah Philip Benjamin, Confederate Statesman, Secretary of War e depois de State, no governo sulista de Jefferson Davis) e estamos de pleno numa atmosfera envolvente e asfixiante, baseada, aliás, nos crimes (esses reais) da aristocrata Delphine La Laurie, em 1834.

Na esteira de Melville D. Post, o romance policial histórico, de temática puramente americana, começa a criar escola.

Barbara Hamblyn e o seu médico negro, formado em Paris e exercendo na Nova Orleães do século XIX!

Walter Satterthwait, que nos apresenta o detective Wyatt Earp (além de, imagine-se, Oscar Wilde).

Miriam Grace Monfredo, analisa, por seu lado, a sociedade do Leste americano, nos anos 1850.

Mas desta duvidosa constelação destacam-se dois nomes de primeira água.

Em primeiro lugar, Caleb Carr (Nova Iorque, 1955).

Típico produto de Greenwich Village, onde viveu, jornalista e escritor da beat generation, que acaba por abominar, licenciado em História, começa a sua carreira no policial com um livro que vence, em 1994, os Grandes Prémios da Crítica e o da Literatura Policial (EUA): “The Alienist”. Tendo como palco a Nova York de 1896, onde se esforçam, numa babélica equipa de investigadores, umas quantas figuras dignas de James, tendo até como membro Teddy Roosevelt, então Chefe da Polícia da cidade. O livro é de primeira água.

Um chefe da equipa de “investigadores”: um psiquiatra iconoclasta, Lazlo Kreizler e a sua grande história de amor; dois irmãos judeus, Lucius e Marcus Isaacson; o jornalista John Moore Schuyler, figura patética de recorte dramático, um pouco ao estilo Poe; a “sufragette” secretária da Câmara, cheia de traumas inconfessados, Sara Howard; um jovem sem abrigo, Stevie Taggert, o narrador que liga o leitor ao grupo, são figuras consistentes que, uma vez conhecidas, se nos prendem à pele e nos obrigam a continuar a ler um mastodonte de mais de quinhentas páginas onde ocorrem uma quantidade de serial killings atrozes, mesmo para a mórbida imaginação dos fãs de Stephen King.

Em 1997 teve sequela: “The Angel of Darkness”, que não aumenta nem diminui o prestígio do autor, mas tem a seu favor o relato, por vezes atroz, do envelhecimento e decadência da equipa do primeiro livro. Em parte física, noutros casos, moral; noutros ainda, resultante da própria degradação da sociedade americana, tornada rapace e imperialista.

Um trajeto de um novo autor, a acompanhar com atenção.

Boston e os seus poetas, por seu lado, inspiraram Matthew Pearl na invenção de um sentido e uso perversos da “Divina Commedia” de Dante Alighieri, na ainda perturbada cidade de Boston de 1865, sofrendo o trauma da Guerra Civil Americana, dos pogroms de negros em New-York e do assassinato do presidente Lincoln: o livro “The Dante Club”.

Começa com uma série de serial killings hediondos de personalidades conhecidas, assassinatos de um sádico imaginativo, inspirado em temas do Inferno de Dante.

Só um polícia negro (o primeiro constable de cor em Boston, graças à integração inevitável de forças negras no exército da União, que abriu o caminho), um tal Nicholas Rey e os ilustres membros do Club Dante (Henry Wadsworth Longfellow, Oliver Wendell Holmes, James Russell Lowell e George Washington Greene), em equipa, com respeito mútuo inquebrantável, conseguirão pôr fim ao pesadelo.

Uma capitosa viagem histórica pelo horror, com molho de Boston e sem recitativos de Hiawatha, anos sessenta, e uma reflexão original sobre os horrores da guerra, para aqueles que nela combateram, mesmo depois de terminada.

Segue-se-lhe o “The Poe Shadow”, de 2006, onde Quentin Clark, herói contra vontade, espalmado entre dois sujeitos que dizem ser o modelo do Chevalier Dupin, em que se inspirou Poe, tenta descobrir a verdadeira causa da morte de Edgar Allan, entre sinistras maquinações à sua volta, para o impedir de o fazer.

SÉCULO XX

Glendon Swarthout, em “The Shootist”, western-policial, pinta-nos com agudo sentido crítico de observação, o retrato de um bom malandro oriundo do oeste mítico americano (El Paso), em 1901, já com trolley-cars e telefones, visto pelos seus olhos de assassino profissional (hired-gun), moribundo de um cancro na próstata.

Max Allan Collins (1948, Iowa), dá-nos, numa reconstituição histórica impecável (“The Titanic Murders”), o relato de uma investigação criminal, conduzida pelo escritor de romances policiais Jacques Futrelle, o célebre criador da Máquina pensante, o Professor S. F. X. Van Dusen.

Local:  12 a 15 de abril de 1912, a bordo do “Titanic”. Em cujo naufrágio Futrelle, de facto, pereceu.

Joe Gore, em “Hammett”, de 1975, reconduz-nos ao feio mundo da depressão de 1929 e faz-nos viver a triste vida de Dashiell, ainda a trabalhar na agência de Nat Pinkerton.

Mas de facto, falarmos de romance de impregnação histórica (reconstituição do passado), torna-se, a partir daqui impossível.

Ou quase.

James Ellroy, no seu ciclo “L. A. Confidential” volta, é facto, à Los Angeles dos anos quarenta. Mas os romances de Chandler, Gruber ou Hammett, passam-se na mesma cidade e época, só que escritos sobre a atualidade.

Stuart Melvin Kaminsky, no seu ciclo dedicado aos anos de ouro de Hollywood, que começa em “Bullett for a Star”, em 1977, protagonizado por um típico private-eye da época, Toby Peters, faz uma reconstituição histórica muito razoável e irónica, só que com pouco interesse e estilo paupérrimo.

Charles Todd põe o seu Inspector Rutledge a trabalhar nas geladas campinas da fronteira escocesa, em 1919 (“A Cold Treachery”).

Fiquemo-nos, pois, por aqui.

Das sandálias de Octavius Augustus ao navio de Horatio Hornblower, passando por Jack, the Ripper e Alexandre Dumas, deu-se um novo aroma, mais rico em aventuras do que erudição (não é esse o objetivo dos autores) a este género.

Carlos Macedo

[1] Nomeadamente: “The Virgin in the Ice”, “The Piper in the Mountain”, “Death and the Joyful Woman”, “The Devil’s Novice”, “One Corpse too Many”, “Saint-Peter’s Fair”, “Brother Cadfael’s Penance”, “Flight of a Witch”, “A Morbid Taste of Bones”, “Monk’s Hood”, “Death Mask”, “Leper of Saint-Giles”, “The Rose Rent”, “The Sanctuary Sparrow”, “Dead Man’s Ransom”, “The Confession of Brother Haluin”, “The Hermit of Eyton Forest”, etc.

[2] “Sauve-du-Mal et les Tricheurs”, “Le Culte des Dupes”, ”Trop de Cabales pour Sauve-du-Mal, “Sauve du-Mal et L’Âppat du Gain”, “Sauve-du-Mal dans l’Ombre du Tsar”.

[3] Nomeadamente (falando do que merece ser lido): Ellery Queen (“A Study in Terror”), Michael e Mollie Hardwick (“The Private Life of Sherlock Holmes”), J. Dickson Carr e Adrian Doyle (“The Exploits of Sherlock Holmes”), Jean Dutourd (“Les Mémoires de Mary Watson”), Michael Dibdin (“The Last Sherlock Holmes Story”), John Gardner (“The Revenge of Moriarty”), Fred Saberhagen (“Séance for a Vampire”), além de um sem número de romances e contos de Anne Perry, Loren Eastman, Peter Lovesey, Edward D. Hoch, Jon L. Bren, Stuart M. Kaminsky, Howard Engel, Michael Gilbert, Dorothy Hughes, Lillian De La Torre, Stephen King, Arthur Porges, Robert L. Fish, Poul Anderson, assim como os franceses René Reouven, Alexis Lecaye, ainda em especial, Michael Moorcock, H. R. F. Keating; David Stuart Davies, June Thompson.

[4] “Bertie” era a alcunha carinhosa do hipopótamo lúbrico que foi Eduardo VII.

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