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Viagens ao interior da literatura de crime e mistério (29): Onda esotérica, Deus e o Diabo, a cabala e o horror, ali estão o polícia e o detetive

Já Dante, na Divina Commedia (Inferno IX, se me não engano), dizia que existem obras, como a sua, com um significado oculto, puramente doutrinal (de que o sentido exterior e aparente é apenas um véu).

O qual deve ser procurado pelos poucos que serão capazes de o penetrar.

Dante quis perscrutar (e antecipar) as pertinentes, mas imprevisíveis decisões do seu Deus.

Sem outra luz que a da sua mente falível, num sonho incipiente, mal desligado do rumor do mundo, tentou traduzir mistérios que só alguns poderiam decifrar.

Há policiais assim.

Linda Blair no filme O Exorcista, realizado por William Friedkin em 1973

Walter Benjamin fala-nos de uma decadência quase ontológica da linguagem (não disse R.

  1. Stevenson que “as personagens de um livro são enfiadas de palavras”?) e usa, como

exemplo, um comentário aos primeiros capítulos da Génesis, numa leitura pessoal. Refere-nos as três etapas na história da linguagem:

A primeira, a da linguagem divina, criadora do Mundo (… “no princípio era o Verbo…”). Nesta fase, inclusive anterior à diferenciação entre palavras e coisas, a linguagem representa a essência mesma da realidade.

A esta sucede a linguagem paradisíaca, a que o Homem já teve acesso, na qual reina uma perfeita adequação entre palavras e coisas. É a linguagem “adâmica”, que atinge o seu fim, com a construção da Torre de Babel, na qual se converte num mero instrumento de comunicação.

No tempo histórico, diríamos hoje, a dimensão semântica das palavras surge pelo exercício do discurso do Homem em sociedade.

Os diferentes e mutáveis significados das palavras (recorde-se o conto “Tlon Uqbar Orbius Tertius”, em “Ficciones”, de Jorge Luis Borges) são produto do dinâmico e multifacetado caleidoscópio que é o mundo material.

Embora sejam portadores, em estado latente, de uma infinidade de significados virtuais, a que o Homem chegará.

A referência a Borges não é gratuita, pois são contos seus, de carácter policial (e não falo da série Bustos Domecq, que escreveu com Adolfo Bioy Casares) que melhor representam este tipo de obras. Refiro-me, nomeadamente, a “La espera”, que lembra “The Killers”, em muito melhor, “El acercamiento a Almotásim” (“The Approach to Al-Mu’tasim”), fabuloso, como poucos, “El Tema del Traidor y del Heroe”, “El jardin de senderos que se bifurcan” (“Le Jardin aux Sentiers qui Bifurquent”), “La forma de la espada” (“La Forme de l’Épée”); são verdadeiros clássicos, do melhor que até hoje se fez.

E simples, pela infinidade de significados virtuais que comportam.

Se refletirmos bem, “The Charles Dexter Ward Affair”, de Howard Philips Lovecraft, encerra

uma multiplicidade de leituras, todas legítimas.

Entre humanismo e espiritualidade, o romance policial, por vezes, cria obras onde, para falar como Goya, essas multirreferências possíveis “falam dos monstros engendrados pelo sono da razão”.

E, de facto, nos últimos anos, tentando colorir o cinzento de um consumismo (nivelador, na sua abjeção), tem-se desenvolvido, como que uma compensação da sociedade globalizada, uma onda crescente de literatura de ficção (popular, não; populista).

Confusamente ligada ao misticismo, ocultismo e religiões eminentemente esotéricas, muito New Age, em geral mal digeridas e mal citadas pelo autor, facilitadora no seu primarismo, que parece explodir, como esporos de cogumelos, por toda a parte, em diapasões de todo o tipo, do histórico-religioso ao alquimista-xamã.

São, a meu ver, resultantes de uma carência de conhecimentos sobre a vida eterna, deuses ou Providência, de que sofre o consumidor de centros comerciais.

O mistério ficcional evolui para um mistério místico, um magma desagregador da racionalidade das histórias que se comprazem numa religiosidade e ocultismos ambíguos, que apagam o que há de dedutivo, social e racional no género1.

Tom Hanks no filme O Código Da Vinci, realizado por Ron Howard, em 2006, baseado no romance de Dan Brown

E surgem livros no mistério e policial, (de vertente “racionalizante”) como “Les Allumettes de la Sacristie” de Willy Deweert, “La Maison assassinée”, de Pierre Magnan, “Pardonnez nos Offenses”, de Romain Sardou ou “The Da Vinci Code”, “Angels and Demons”, “The Lost Symbol” de Dan Brown; ou, indo mais longe no paramisticismo, com o “Messiah”, de Boris Starling, “The Geographer’s Library”, de Jon Fasman, “The Holmes-Dracula Files”, de Fred Saberhagen ou “Hideaway”, de Dean Koontz, “The Talisman” de Peter Straub e Stephen King, ou “The Exorcist”, de William Peter Blatty.

O que mais impressiona, neste tipo de livros de matriz anglo-saxónica, é a maceração masoquista, em quase todas as personagens principais, no sofrimento, às ordens ou por imposição de um deus cruel ou pela da sua contraparte, o diabo.

Exemplo muito recente desta abordagem, encontramo-lo flagrantemente ilustrado nos últimos romances de Jean-Christophe Grangé, “Le Serment des Limbes” (Albin Michel, 2007) onde num desafio cruel a um polícia ex-seminarista (fervorosamente católico), se encontra a omnipresença sarcástica, crime após crime, de um Belzebuth-Pazuzu-Lucifer, polícia também e igualmente ex-seminarista. Reincidindo nesta temática “Miserere” e “La Ligne Noire” de Maxime Chatham2 e Franck Thilliez3.

Entra-se nas cavernas profundas da perversidade da mente do homem, por entre incontáveis pesadelos aquecidos a fogo negro, torturas que duram dias, lamentos que são risos de hiena, regougares e uivos de prazer que já nada têm de animal, sussurros silvantes, roucas confidências de feitos inomináveis, num percuciente tropel de demónios, todos eles criados pela mente humana (a dos autores que fizeram a “enfiada de palavras”), a que dizem não haver saída neste mundo frenético e paranoico em que competimos.

Mas, porque tudo compreender é tudo perdoar, há chaves, séries de operações secretas, oníricas ou simbólicas, iniciáticas, ou ocultas aos olhos dos ignorantes (porque a sua própria estupidez os impede de ver), que permite ao leitor (e ao polícia ingénuo ou erudito, mas em geral, impotente para prevenir e punir), chegado ao fim da obra, adquirir o conhecimento infuso das causas, o conhecimento real do que é (e não do que parece ser) o mundo visível, a verdadeira elucidação do mistério.

As figuras fantasiadas e fantasistas dos Conde de Saint-Germain, Claude Louis (1700-1784), de Joseph Balsamo, do Conde de Cagliostro (1743-1795), de Fulcanelli, já em pleno século XX, deram pasto a inúmeras obras de enigma e mistério e de saborosa digestão mental, para uma classe média citadina, alimentada a fast-food, tetanizada pelo stress profissional, a insegurança urbana: a burguesia sem saber sonhar ou pensar por si própria.

Há pior, leitores, creiam-me, pior que o vosso gerente ou supervisor: existe, talvez, disse, talvez, um delicioso “horror de que nem suspeitam” (Chatham), nos corredores desertos do metro onde viajam diariamente (Joshua Brolin, o profiler meio psicopata, criação do francês Maxime Chatham, que vos diga), ou nas longas noites de inverno, na vivenda perdida na serra, herdada de um ignoto ascendente, onde passam os fins de semana.

Sem falar daqueles deuses estranhos, aterradores ou lúbricos, infinitamente mais atraentes que o velho pároco da missa dominical, ou do idoso rabi, de bronquite persistente. Verdadeira operação de charme, de marketing político, para venda de packages baratos de espiritualidade já avariada, a habitantes dos subúrbios urbanos.

Que já vem de longe.

E, desde Alexandre Dumas (ciclos “Joseph Balsamo”, “Le Collier de la Reine”) a John Dickson Carr (“The Burning Court”), de Christian Jacq (“L’Affaire Toutankamon”, “La Pyramide Assassinée”) a Graham Masterton (“The Sphinx”, “The Devils of DDay”, “Tengu”, “The Hell Candidate”), de “Mystery” de Peter Straub a Jean-Paul Reamdonck (“Han”), encontramos uma alquimia, uma transmutação, muitas vezes impregnada de metafísica, entre enigma, crime, mistério e fantástico, magia, quase sempre horrenda, nunca revelada, parcialmente à espera que alguns (muito poucos) leitores, sejam capazes de ler o que de mais importante se esconde nas entrelinhas. Pois há sempre mensagens ocultas para os iniciados (dizem os textos promocionais das editoras).

Com a ajuda do sol toledano-cabalístico de Espanha, por exemplo, aparecem excelentes livros, onde a alquimia tem um tónus e uma criatividade muito especiais.

Devo classificar, como nobres membros deste compartimento, três obras que passo a referir? Ou dá-los como inclassificáveis?

De Manuel Vicent, nascido em Castellón, em 1936 (“Balada de Caín”, de 1985), recebemos um espantoso conjunto, eufónico e arrepiante, de reflexões sobre um assassino, que transgride o próprio decurso do tempo. “Dios lo ahuyentaba todo de sí, y en mitad de las tinieblas sentí que me llamaba, ladrándome como un chacal para revelarme un destino semejante: huir siempre y ser feliz sin esperar nada”.

Deste escritor nasce o mérito de fazer ressaltar (na obra) o sarcasmo, tragédia e farsa que é, ao fim e ao cabo, a Humanidade, no seu todo, descrevendo-a com uma incontida amargura que disfarça com um tom brincalhão e desprendido.

Jack Nicholson no filme The Shining, realizado por Stanley Kubrick em 1980, baseado num romance de Stephen King

Carlos Ruíz Zafón, nascido em Barcelona, em 1964, deixa-nos boquiabertos, pois usa um estilo muito seu para instilar o medo4, ao oferecer-nos um arrepiante quadro (muito realista e socialmente profundo), da Espanha do pós-guerra civil5.

Em “La Sombra del Viento”, livro a merecer leitura, que publicou em 2003, apresenta-nos a peregrinação em busca de um estranho Graal: um escritor desconhecido, Julián Fortuny.

Cuja existência se revela ao protagonista, Daniel Sempere, após a sua descoberta num misterioso local secreto de Barcelona: “El Cementerio de los Libros Olvidados”.

Passado no imediato pós-guerra civil, o livro, que revela alguma influência de J. L. Borges e talvez dos checos Perutz e Capek, é sem lugar a dúvidas, de uma originalidade notável.

Um livro maldito, que leva Stephen King a dizer: “se havia quem pensasse que a novela gótica tinha morrido com o século XIX, este livro fá-lo-á mudar de ideia”.

Repito, a originalidade no entrelaçar do mistério, do enfeitiçamento pelos livros, a impressionante dinâmica do desenrolar da intriga, merecem as cinquenta e quatro edições já publicadas, só em castelhano. Depois, publicou mais alguns, nesta linha, todos de igual qualidade. A sua morte recente deixa um vazio difícil de preencher.

Por fim, cabe referir o meu preferido: Arturo Pérez-Reverte (n. Cartagena, 1951) que, com “La Tabla de Flandes“, 1990, “El Club Dumas“, 1993, “La Piel del Tambor“, 1995 põe o seu cosmopolitismo de jornalista internacional e um ingente trabalho de documentação histórica, ao serviço de uma espantosa descrição de conteúdos, emoções e enigmas que todos temos dentro de nós. Com uma juvenil lufada de ar fresco nas palavras em que os traduz. Mesmo nos temas mais sombrios.

Falámos de Espanha. Mudemos agora de país.

Os franceses encontraram em Grangé, Chattham, Christine Adamo e M. Thilliez, os arautos atuais deste tipo de obras; Peter Straub, Clare Clark, Chelsea Quinn Yarbro salientam-se entre os anglo-saxónicos.

A inglesa Amanda Cross, no livro “The James Joyce Murders”, dá-nos uma curiosa abordagem da literatura, intimamente imbrincada ao crime cometido. É curiosa (e reveladora) a reflexão de uma das personagens, que nos diz: “o fascínio dos policiais é que nos permitem ler sobre as aventuras de outras pessoas sem termos nós próprios que as sofrer”.

Parafraseando-a, poderíamos igualmente afirmar, sem receio de contradição, ”o possível êxito (e fascínio) destes policiais é que nos permite jogar com o oculto, a metafísica e o demónio, sem termos de ser, nós próprios, crentes ou ocultistas”.

Jogando até, sem respeito pelos Deuses do policial, com nomes consagrados. Randall Collins, num livro-pastiche sobre Sherlock Holmes, “Draco, Draconis”, mergulha-nos num mundo fantástico, o da sociedade iniciática “Golden Dawn”.

Ou Brett Spencer e Dorian David, em “The Case of the Philosopher’s Ring”, que proporciona um olhar sub-reptício para outras dimensões, igualmente através de um mitificado Sherlock Holmes (e o seu Boswell, Watson), acotovelando Wittgenstein, Bertrand Russell, Maynard Keynes, Aleister Crowley, Klimt, e o matemático Ramanujan, numa história místico-científica, de diminuto interesse.

É curioso como até a cínica Patricia Highsmith não consegue resistir ao ambíguo fascínio deste tipo de livros e, em “The Snail-Watcher”, descreve-nos, sem explicação racional, uma condenação a um particular tipo de Inferno.

Muito seu. E muito repulsivo, como toda a sua obra.

Recorda-nos sensatamente Graham Greene: “a determinada altura, damo-nos conta que o nosso mundo não é tão racional como isso. E, de súbito, com um sentimento de pavor, pensamos: é deste mundo que eu faço parte”.

O enigma racional descreve-se linearmente e é irreversível; o romance deste tipo tem um tempo sagrado e mítico: reitera indefinidamente uma mensagem.

Para terminar estas sugestões de leitura, leia-se o conto “El Congreso” (“Libro de Arena”) de Jorge Luis Borges, onde o protagonista, Alejandro Ferri, nos diz, em confidência: “las palabras son símbolos que postulan una memoria compartida.”.

Com quem?

Na nossa incerta memória, na nossa angústia, mais ou menos assumida, face à morte, às estranhas entidades (deuses ou demónios) que criámos e continuamos a criar, este é o tipo de livros (se tiverem alguma valia intrínseca), de que mais facilmente nos tornamos dependentes. E desejamos, obscuramente, partilhar com os anti-heróis que, lugubremente, neles se passeiam, povoando os nossos pesadelos.

(continua)

Carlos Macedo

1 Parece que se caminha para um estilo policial enfeudado ao culto de Hermes Trimegistus (“o três vezes grande”), às doutrinas dos gnósticos de Antioquia, aos bruxedos e missas satanistas, para extrapolações delirantes ou ousadas da Bíblia, do Corão, das tábuas do egípcio Moisés, dos resultados das pesquisas de Qumrâm ou dos ditos “Evangelhos apócrifos” que nos são oferecidos por semi-ignorantes, “sem estados de alma”.

2 Na trilogia “L’âme du Mal”, “In Tenebris”, “Maléfices” de 2004/5 ; em “Les Archanes du Chaos”, de 2006 ; em “Prédateurs”, de 2007.

3   Com o seu “Homme en Noir” do derradeiro círculo do Inferno de Dante: “Gataca”, “Atomka”, “Le Syndrome E”, “Puzzle”, “Angor”, entre 2007 e 2014.

4 Atualmente é um dos romancistas europeus com maior projeção mundial. Traduzido em mais de quarenta línguas, publicado em mais de sessenta países, mantem o estilo “novela juvenil” que torna “um espectro de fogo, um comboio atravessando a cidade e semeando o terror na noite de Calcutá”, em algo credível e assustador.

5 “El Príncipe de la Niebla”, 1995, “El Palacio de La Medianoche”, 2006, “Las Luces de Septiembre”, 2003.

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