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O primeiro dos mestres contemporâneos na literatura de crime e mistério: O Último Caso de Trent, por Edmund Clerihew Bentley

Não subsistem dúvidas quanto aos dois países onde se lançaram os pilares do que está convencionado denominar-se por literatura de crime e mistério, Grã-Bretanha e os EUA, na viragem para o século XX.

Ao criar Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle estabeleceu as regras flexíveis do romance, conto ou novela com um problema criminal (pelo menos): um prelúdio que conduz à informação de que houve ou pode haver um crime, regra geral serve para apresentar o detetive que será envolvido na decifra da trama; seguem-se as diligências, que na arquitetura da obra podem ser labirínticas, é aí que os mestres destes tempos de literatura de dedução (que terão o seu período dourado entre as décadas de 1930 e 1940) se socorrem de uma construção que exige ao leitor um acompanhamento quase compulsivo, dando-lhe a ilusão de que ele terá os ingredientes suficientes para a descoberta do criminoso e móbil do crime, é aqui, em toda a sua extensão, que decorre o mistério; e temos depois o desfecho, umas vezes anunciado perante uma enorme audiência de potenciais arguidos ou cúmplices, outras vezes uma atmosfera de confronto.
O Último Caso de Trent, por E. C. Bentley, Livros do Brasil/Porto Editora, 2022, é uma obra de referência no subgénero literário. O seu autor era publicista, poeta assim-assim e em 1913 dá à estampa este romance onde estão claramente esboçadas as fórmulas que irão ser as ferramentas em mãos prodigiosas, anos mais tarde, como Ellery Queen, Agatha Christie, Dorothy Sayers, Dashiell Hammett, Margery Allingham, entre muitos outros. Obra tão respeitável que o torna credor em 1936, e na sequela O Regresso de Trent, de assumir a presidência do Detection Club. Que há francamente nesta arquitetura literária, que trouxe tanto alvoroço?

E.C. Bentley

A morte de alguém que era um nome profundamente influente na Wall Street, o seu desaparecimento trouxe grande tumulto na bolsa de valores de Nova Iorque, ainda por cima trespassado por uma bala, disparada por mão desconhecida, mas isto em Inglaterra. O braço direito do multimilionário assassinado liga para um conceituado jornal, e pede ao diretor a ajuda de um conhecido detetive, Philip Trent, este aceita, quer inteirar-se da situação, tem uma entrevista com um amigo que por acaso é familiar da mulher do assassinado, esclarece do que há verdadeiramente estranho de um senhor que foi assassinado, vestia extravagantemente, aparece morto num jardim sem dentadura, com escoriações. O dito amigo de Trent não esconde a satisfação desta morte, alegando que ele convertera num deserto a vida da sua sobrinha. Ficamos a saber que Trent ganhara a sua celebridade em consequência de um momentâneo impulso, ele que era pintor, pegara num jornal e lera a notícia de um crime, um caso raro, um assassínio no comboio, começou a ler vários jornais, envolveu-se na história, estudou o assunto e deu à polícia a chave do mistério, foi o seu primeiro caso a que se seguiram outros, sempre triunfando. Vai até ao local do crime, entra em casa, percorre as principais divisões, conversa com o agente policial, com os secretários do assassinado, avulta uma história bizarra de grande movimentação na noite do crime e ele apura que a vida conjugal estava manifestamente degradada. Interroga toda a gente que vive naquela casa, há pontas soltas, certas dissonâncias, fica bem claro que aquele banqueiro célebre era mais odiado que amado: “Planeou grandes investimentos de capital, planeou e centralizou indústrias, desenvolveu a iniciativa pública e privada. Muitas vezes, ao esmagar uma greve ou ao concentrar a propriedade de um grande campo de trabalho, lançou a ruína sobre uma multitude de pequenas habitações; e se os mineiros ou os trabalhadores do aço ou do gado o desafiavam e geravam discórdia, conseguia ser ainda mais implacável. Mas tudo isto era feito com a fé de quem serve uma causa: a do capital. Dezenas de milhares de pobres odiavam o seu nome, mas os financeiros e os especuladores não o detestavam menos”.


Trent interroga-se quanto ao modo como o assassinado aparece vestido, os secretários não escondem que nos últimos meses o multimilionário se tornara irrascível, por vezes brutal, o depoimento do secretário que se deslocara para uma estranhíssima missão imposta pelo multimilionário, longe de casa, é confirmada, a pessoa a quem o secretário iria entregar documentação e um bilhete de viagem não aparece, há pontas soltas, o inquérito feito pelo próprio tribunal é inconclusivo, Trent prossegue a investigação, entrevista a mulher do milionário, interroga-se mesmo se não existe uma relação amorosa entre esta e um dos secretários, a viúva insiste que ela teria dececionado o marido assassinado por não corresponder ao ideal de vida social que ele lhe propusera. O detetive elabora relatórios uns atrás dos outros, o assassinado afinal não tinha entrado em casa como se presumia, fora outra pessoa, alguém que propositadamente tirara a dentadura ao assassinado… O autor parece ter dado ao leitor um conjunto de pistas suficientemente elucidativas para se supor que aquele crime fora talvez uma vingança ou, não seria de descurar a hipótese, ter por base um drama amoroso, nesta instância o leitor tem várias hipóteses em aberto. E é surpreendido quando o detetive entra num idílio com a viúva, e assim caminhamos para um desfecho completamente imprevisto, para Trent houvera para ali um caso de ciúme, ele ainda supusera que um dos secretários fora o assassino, eis senão quando vem uma confissão que nos chega tão repentina que nos tira o fôlego. Trent parece capitular, falhara rotundamente e desabafa: “Estou curado. Nunca mais tentarei resolver problemas policiais. O caso Manderson será o último caso de Philip Trent. O seu orgulho inchado por fim se quebra a seus pés. Eu teria suportado tudo menos esta última revelação de impotência razão humana”. Como na lenda, E. C. Bentley não resistiu, muitos anos depois, a trazer a sequela O Regresso de Trent, em 1936, mas nessa altura já outros nomes gloriosos o tinham suplantado naquele conjunto de regras de que ele fora o iniciador, transformando a resolução de um crime numa operação de talento, só ao alcance de mentes prodigiosas. E já que estamos a falar de enigmas como o facto daquele multimilionário ter aparecido tão desadequadamente indumentado quando foi assassinado, pede-se à atenção do leitor para o romance que se segue nesta coleção, uma obra prima de decifra, o Mistério da Laranja Chinesa, cujo autor é muito provavelmente o nome de topo da literatura de crime e mistério, Ellery Queen.
O Último Caso de Trent é de leitura obrigatória.

Mário Beja Santos

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