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Gente obscura, práticas interditas, uma viagem pelo Estado Novo numa escrita voluptuosa

As Pessoas Invisíveis, por José Carlos Barros, Grupo Leya, 2022, foi galardoado com o Prémio Leya 2021, é indiscutivelmente uma bela narrativa, tem como fio condutor várias décadas do Estado Novo, seremos embrenhados no mundo rural nortenho ao tempo da corrida ao volfrâmio, confrontados com práticas curandeiras e fervor supersticioso por gente supostamente miraculada, agiganta-se uma estranhíssima figura que tem tanto de anjo como de besta, paira por toda esta longa viagem uma atmosfera sobrenatural, onírica, de pesado recolhimento campestre, seremos induzidos até ao centro de um massacre colonial que ocorreu em São Tomé, o massacre de Batepá, 1953, prenúncio de que o colonialismo irá ter os dias contados. E tudo sob uma arquitetura ficcional com laivos de realismo mágico, segredos que aparecem num caderno que nos levam a crer que há ouro em barda por explorar naquelas terras que já conheceram a corrido ao volfrâmio, e bem à portuguesa, com um pendor metafórico, quando tudo leva a crer que se prepara uma corrida ao ouro que iria mudar a face de Portugal matam-se dois homens a tiro como outrora, por causa de um marco de terras desviado se matavam dois homens à sacholada. O júri destacou da obra premiada o trabalho da linguagem, o domínio de uma oralidade telúrica a contrastar com a riqueza do vocabulário – será talvez esta a joia suprema desta obra de pessoas a quem os média não dão visibilidade, não serão figuras de proa de qualquer socialite nem terão lugar no registo das personalidades públicas.

O ponto de partida e o ponto de chegada têm lugar no Alto do Bardo da Pedra, um pouco afastado de Vilarinho, entra em cena Xavier e as suas curas, há por ali um alemão a investigar, fareja o volfrâmio. Mas o mais significativo são as curas, logo Mariazinha Magalhães, a menina parecia um caso perdido, Xavier Sarmiento instalou-se em casa da família Magalhães, emerge o sobrenatural que se vai cruzar com a cura das plantas, mas a moldura do quadro tem muito mais que se diga: “Xavier não tinha dúvidas de que havia uma relação entre o movimento das mãos e o movimento dos astros. E que o rumor das águas subterrâneas se confundia com o de um canto ou de uma música. E que cada coisa fazia parte de um todo e que o todo dependia da mais ínfima coisa. E que tudo se relacionava com tudo. E que a luz e a pele não existiam se uma não existisse na outra. E que uma parte de nós vive na folha de uma árvore ou de um fruto, assim como uma folha de árvore ou um fruto é uma parte de nós”. Talvez seja uma consideração panteísta, mas o Xavier curandeiro lança-se ao trabalho para salvar a Mariazinha, logo uma dieta com base em leguminosas e vísceras, feijão, rim de coelho, coração de cabrito, grão de bico, chícharos, minúsculos bolos de milho untados com azeite e vinho tinto, Xavier anda à roda da doentinha sem descanso, sem uma pausa na vigília, a menina emerge na banheira donde saía o odor forte e acre das folhas secas de urtemige , doze dias de tratamento, a menina começou a reagir, há uma operação de cilindros, a menina está salva. Na vizinhança, é a febre do volfrâmio.

Não distante dali, está montado um pérfido negócio para atrair gente supersticiosa ou desesperada, jaz no seu catre Santa Joaninha Miraculada da Nossa Senhora das Dores de Averboim, negócio explorado por Luciano e Esmeralda, Xavier é também convocado para salvar a Santinha, fala-se em levitação, ou ele sonha que voava, certo e seguro Xavier trata das infeções da menina, talvez uma paixão camiliana, assolapada, tenha nascido entre ambos, escapam àquele lugar do negócio, andam a monte até encontrar refúgio, Luciano e capangas contratados andam-lhes no encalço, Luciano é abatido por aquele que recolheu, lá num ermitério, o terno casal fugitivo. Desenlace trágico, Xavier é preso, a alegada Santinha morre. O doutor Magalhães, sempre agradecido pelo que acontecera a Mariazinha, por portas e travessas, encaminha Xavier para a Ilha da Província (São Tomé), iremos viver em cheio aquele tenebrosos acontecimentos de uma revolta ficcionada que acabou em massacre, mas agora Xavier é um chefe de capangas, um matador, executa o plano dos colonialistas sem dó nem piedade, prende-se, executa-se, metralha-se, inventa-se despudoradamente que está em curso uma tramoia comunista, inventaram-se documentos, mais tarde Salazar será informado por um inspetor da PIDE, Álvaro Lince, de tudo quanto realmente ali se engendrou, demitiu-se e condecorou-se aquele malfadado governador. José Carlos Barros molda aqui uma figura invisível da maior envergadura, Pedro Serrano, um daqueles funcionários que gostam da mansa burocracia e que inopinadamente se revelam heróis, símbolos da resistência.

Xavier desaparece, voltamos a Vilarinho, porque toda esta narrativa parece que tem um fio hegeliano, sente-se uma certa analogia com os labirintos forjados por Jorge Luís Borges e todo aquele organograma que Gabriel García Marquéz montou para uma das suas obras-primas 100 Anos de Solidão, voltamos ao lugar donde tudo principiou, ali vive Manuel Joaquim Sarmiento, estamos no início de dezembro de 1980 e o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro morreu num desastre aéreo ocorrido em Camarate, há quem pense que houve atentado e queira incendiar uma guerra civil. Acontece que aquele alemão que andara por aquelas terras no tempo da corrido pelo volfrâmio escreveu apontamentos num caderno que apareceram em Berlim, assinava Klaus Mahlendorf, a empresa que analisa o caderno pensa que chegou hora da fortuna, há para ali ouro às carradas. Os acontecimentos precipitam-se, querem-se comprar as terras, afinal são do Manuel Joaquim, ele habita a antiga casa da tia Arminda e do pai Xavier, começa a chegar muita gente àquele ponto, desde um cacique da região, o doutor Afonso Pereira, há quem o vigie, o sentimento anticomunista é violento na região de Vilarinho, há quem desconfie que Manuel Joaquim seja comunista, o vigilante do doutor Afonso Pereira interroga-se se este não está envolvido numa conspiração, há mesmo um advogado, o doutor Firmino Neto, contratado por uma importantíssimo escritório de advogados, que recebe instruções para saber tudo, e sigilosamente, de quem é proprietário das terras, António Benites está cada vez mais assarapantado com tanta visita a Manuel Joaquim, imagina que está em curso um golpe comunista, homens engravatados, em situação caricata, dão uns com os outros à porta de Manuel Joaquim, o que os levou ali a todos é deitar mão aos terrenos do Vale das Freitas, é nisto que dois capangas se matam um ao outro, a lenda, o mito daquele Portugal dourado acaba num banho de sangue. É esta a prodigiosa história de As Pessoas Invisíveis que, pode muito bem acontecer, nos cruzamos todos os dias neste país que depois da pimenta da ilha e do ouro do Brasil e das riquezas de África sonha com minérios estrondosos nos mais imperscrutáveis subsolos, o fausto e o sabor da grandeza, acreditem ou não, tomará conta um dia deste nosso Portugal.

De leitura obrigatória.

Mário Beja Santos

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