Sábado, Abril 20, 2024
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Raposas; ainda assim; era uma vez no inferno

O Instituto de Luta Contra a Fraude e Corrupção da União Europeia está a investigar o caso português das incendiárias golas anti-fumo e das centenas de milhares de euros que é suposto os dezoito arguidos terem lucrado com as mesmas. Tudo normal, até o facto aparente do dito instituto confiar pouco na justiça lusa e nisto de alguém lucrar com tanto fogo enquanto o resto fica a arder.

Estava o autor destas linhas posto em sossego, rodeado do plácido e fresco azul das águas de um lago a desconstruir um salmão na grelha com salada e uma garrafa de rosé estupidamente gelada, como dizia a canção, naquele engano de alma ledo e cego que este mundo cruel não deixa durar muito com tanto míssil a voar por aí, quando recebi um e-mail que pelo hábito não me surpreendeu de um grupo chamado Fox-Trot Contra a Corrupção Incendiária e Outras Músicas, mandado ao que parece por um grupo de raposas desalojadas pelos últimos incêndios deste país e mais calamidades actuais, as várias secas, incluindo as linguísticas, a guerra, o S.N.S., ninguém querer comprar o Ronald ao Manchester United ou a falta de paciência para aturar tanto maroto. Aí vai o dito e-mail que o autor tem de voltar ao almoçinho que arrefece.

«Ilustre cronista da bicharada sem fala e das falas doutra bicheza, saúde!

An image of a family of foxes, with a mother fox and her little ones

Ainda assim! E ainda assim, são as expressões obsessivas, psicóticas, redutoras, mais usadas para ligar as orações gramaticais nos noticiários, reportagens, directos, etc., pela vossa última leva de jornalistas televisivos, carne fresca para os dráculas da maioria dos media actuais, cujos pegaram no satânico jogo do domínio e embrutecimento dos humanos, onde um pérfido demónio à la Putine, feito manso que nem o José Miguel Júdice, dá as cartas por detrás da cortina, o sangue escorre como a neve que derrete nas calotes, e o trunfo é espadas. Ainda assim, alguns dos ditos bordões repetidos ad absurdum nos linguados jornalísticos cá o raposedo aprendeu latim com o autor das Geórgicas –, conseguem ser menos maus do que os propalados livros das Fátimas Lopes, Moitas Flores e quejandos amoitados na lixeira nacional da escrevinhagem dominante, apesar de utilizarem amiúde metáforas parvas, pseudo poéticas cheias de narizes de cera, como um certo correr atrás do prejuízo (só malucos correm atrás de algo que se quer longe) o qual, não obstante ter vindo a perder fôlego, vai alastrando, nos telejornais, política e futebolês, mais do que as centenas de fogos actuais que já destruíram 50 mil hectares de floresta onde habitávamos com centenas doutras espécies destruídas, o qual prejuízo, ao que parece, ainda não lhes chega, e é preciso correr esbaforido atrás dele para ir buscar mais. E o mais dramático é que é. Aproveite-se então estas brasas tautológicas e disparates metafóricos para meter mais uma sardinha no entendimento disto, pois, como na fábula, também vocês estão no tempo das uvas de serem pisados na vossa língua de um povo antigo, no nexo do real que essa linguagem cria, e por arrasto em tudo o mais (antes, fica já aqui o aviso ao atento e culto leitor destas altas desconstruções científicas – muito obrigado! – que a intertextualidade manifesta das mesmas corre por nossa conta e nada por correr atrás de qualquer prejuízo ou mesmo sem juízo, igual à pandémica metáfora e o mais que adiante se dirá).

Ainda assim, para a maioria de vocês, a quem as vossas televisões, e os milhares de comentadores de tudo e arredores, nada disseram sobre as outras espécies, como nós, afectadas pelos incêndios, isto ainda não é o Apocalipse ou sequer a confusão de Babel. É pior. Quem deveria estar aqui a contar estas coisas era um certo jornalista da SIC, Pedro Miguel Costa, repórter na Ucrânia, que fala como o Mário Viegas e o Villaret diziam superiormente poesia, cujo parece estar sempre, enquanto discursa, a declamar Os Lusíadas, «As armas e os mísseis atirados/ Da oriental Rússia prà Ucrânia/ Reportando espalharei por toda a parte/ Que prà poesia é que tenho engenho e arte». Infelizmente não conseguimos o contacto de tão poética personagem, o qual quando vier de lá irá desbancar o grande vate, e outros poetas e poetisas daquele canal enfrascado em águas claras e odes pindáricas, numa sentida epopeia, a Ucrâníada, logo aproveitada pelo Marques Mendes para mostrar aos espectadores como publicidade gratuita, algo superior mesmo ao fino poeta setecentista do Pinto Renascido, Empenado e Desempenado, por isso estas congeminações vão em prosa e não digam que vão daqui.

Ainda assim, para os felizes portugueses – entre os quais vivemos há tantos séculos, ou eles entre nós que já cá estávamos antes –, verem quanto são invejados das outras nações nestes tempos de fome, peste, e guerra, a Fundação F. Manuel dos Santos acaba de publicar um rigoroso inquérito no qual conclui que em Portugal há menos diferenças sociais e económicas que nos restantes países da Europa. E explica isto com suficiência científica dizendo que, neste país, mais de metade das vossas famílias humanas são igualmente pobres não havendo por isso tantas diferenças económicas e sociais como noutros onde a pobreza não é tão grande. Nós, as raposas, também achamos que sim, e que o dinheiro que agora vem da Europa deverá servir antes de tudo para pagar estudos científicos desta categoria, depois discutidos em programas televisivos, fóruns etc. de várias horas e dezenas de especialistas, todos unânimes em concluir que sim, inquéritos deste calibre são valiosos e feitos a bem da nação.

Ainda assim, também pensamos que o restante da vossa bazuca, (que o país é pobre como Job, tirando ser rico em aldrabões e turismo suspenso, dentro em pouco, com a renovada epidemia da peste negra e seguintes), depois de repartida pelos amigos – será a última bazuca ou canhão sem recuo que vocês irão receber, que o dinheiro da Europa irá ser preciso, e não é pouco, para apoiar os antigos países da Cortina de Ferro onde o futuro livre do vosso mundo, também nosso e doutras espécies, está a decidir-se – deverá ser empregue nos sucessivos aumentos dos médicos e anexos do S.N.S. os quais, no fim de os terem, serão tentados pelos salários ainda mais altos dos privados, que nada gastaram na sua formação, deixando morrer à míngua o S.N. S., com poucas excepções de alguns carolas, agarrados a antigos conceitos de solidariedade humana como sucede na Ucrânia ou repúdio pelo mercenarismo profissional e oportunismo histórico. Com a morte do S.N.S. virá por antecipação a morte de milhões dos vossos pobres sem dinheiro para ir onde quase todos os médicos foram.

Ainda assim, afirma a Fox-Trot, há uma única solução para isto, que seria em vez dum S.N.S terem um E.N.S., exército nacional de saúde, mas disso ninguém vai querer ouvir falar por causa duma coisa que anda nos astros, além de cheirar muito a comunismo, não este revisionista do Jerónimo e correlatos que, para sobreviver e agradar às classes médias (as mesmas que apoiam a esquerda caviar em queda), a única solução que propõem para este problema (e todos os problemas do país), é no fundo dinheiro a rodos (vai longe o tempo em que também falavam de arte, beleza e literatura como superestrutura do novo mundo) e aumentos salariais ad aeternum para os injustiçados médicos – sem se importarem nada que o dinheiro venha do capitalismo europeu, depois do fim histórico do proletariado – o que nem isso os irá salvar da morte lenta onde já agonizam, sem remédio ou espaço social, nem capacidade para dela renascerem como Fénix chamuscada. E é pena por que tiveram momentos de autêntica glória e tenacidade combativa por um ideal político, económico, artístico e verdadeiramente poético, participando em certas conquistas históricas no mundo, justas e transformadoras, dizemos nós que descendemos daquela raposeta, pintalegreta, senhora de muita treta, desses tempos.

Ainda assim, há os fogos, os incendiários apanhados em flagrante delitro de gasolina caríssima, muitos deles surpreendidos agachados atrás de oliveiras e um, o mais perigoso, a observar um pica-pau a fazer o ninho num choupo e o vôo das gralhas ao entardecer. Segundo o Chega devem ser fuzilados para exemplo e acabarmos de vez com esta calamidade anual dos incêndios, proposta que vai apresentar em breve no Parlamento só p´ra chatear o Santos Silva que nunca pactuou com desmandos nem corruptos no seu partido. O resto da população nacional, à excepção do ministro dos aeroportos à pressa, aterrado com o susto da reprimenda, são todos, segundo António Costa, numa reflexão muito freudiana e acertada, incendiários em potência, cheios duma pulsão de morte avassaladora por fogos, igual à dele próprio, actual primeiro-ministro, e à de todos os anteriores, que deixaram plantar eucaliptos voláteis para as papeleiras em tudo quanto é sítio. Isto, contra o pacato Marcelo que andou a arrancá-los que nem um doido e agora assevera que não vai aos fogos tirar selfies por que pode vir de lá com o rabo a arder. É verdade que o vosso presidente não tem rabo, nem de palha dizem, nós as raposas é que sabemos o que isso é. Por conseguinte, e termos ficado sem toca nem onde a fazer, como milhares de outras espécies apanhadas pelos fogos de que nenhum especialista fala, é que estamos aqui a erguer o nosso protesto contra a vossa incúria todos os anos, além do interesse nas golas anti-fumo e sem fumo de todo o tipo algumas que são só fumo, embora haja quem diga que não há fumo sem fogo, a menos que seja aquele fogo que arde sem se ver que dantes se lia muito e agora só o faz aquele jornalista da SIC de que falamos acima e outros poetas de água doce das televisões em tempo de guerra, perdão em tempo de operação especial.

Ainda assim, o actual líder do PSD, Luís Montenegro, com aquele ar risonho eterno de carinha-na-água, semelhante à do Joker do Batman, depois da operação, não inspira às raposas e restante bicharada, qualquer confiança nem promessa de ventura no futuro, metido entre uma seca parlamentar de quatro anos (maior do que a do Tejo que podia servir, alcatroado entre Santarém e Abrantes, para o novo aeroporto), num gabinete alternativo sem voto na matéria, e um deserto de ideias, lugares comuns, pontuado da antiga clientela à coca, de biquinho aberto, assombrado pelo espectro do populismo que não há camelo que aguente.

Ainda assim, nós as raposas, não iremos falar da lenha dos presentes fogos com que se aquecem alguns madeireiros; os Fire Boss a martelo que pelo nome não percam; as televisões a rezar no íntimo para que um fogo ideal eterno alimente os noticiários ao preço da chuva; os comentadores que só nesta ocasião aparecem como cogumelos na televisão; certos ambientalistas amarrados à coluna dos interesses privados; algum povinho que com o eucaliptal vai pagando as contas no hospital (privado é claro); os partidos da oposição, estes, os anteriores e os futuros, p´ra quem tudo isto é uma reinação de mais achas prà fogueira; e o espectador no sofá a gozar o prato de tanto fogo e casas a arder, sem ser a dele, se deus nosso senhor quiser. Ámen.

Ainda assim, no meio de tanto fogo, e outros maiores de todo o género em perspectiva com a recessão global, a exemplo de Orpheu que resgatou Eurídice das chamas do Inferno, o pai de António Costa, Orlando Costa, que era um romancista dos bons, daí estar esquecido, escreveu um livro Podem Chamar-me Eurídice que é de modo premonitório uma alusão ao optimismo incurável do filho que no meio do maior inferno em que tudo arde, e o mundo não sabe o que fazer, encontra sempre um lado bom nas coisas, como agora os milhões de euros de lucro da Galp à custa dos portugueses, sem taxas de maior, achando que enquanto houver uma bazuca que pule será tudo um douro azul. Ainda assim, que fique claro que estoutra Fox-Trot, não vai no bote, a menos que lhe arranjem golas anti-fumo para resistir aos incêndios. Salvé!»

Mário Rui Silvestre

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