Sexta-feira, Março 24, 2023
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A Escola Minimalista do Estado Novo de Barreto – A Escola Minimalista do Estado Novo de Barreto

O regresso. Os ideólogos da restauração do integrismo estão aí, agora atrás da máscara neoliberal. Em Portugal o neoliberalismo é o regresso ao poder absoluto dos senhores e das elites sobre a sociedade. É o miguelismo com telemóvel e a doutrina do sucesso. Há dias António Barreto, um destes adaptados a extremos direitos, fez uma exposição sobre a ideologia da velha ordem no que respeita à educação. Sobre os objetivos da educação na formatação ideológica das novas gerações. A pretexto da desideologização, da neutralidade, da higienização, da desinfeção da educação na escola pública (as escolas privadas podem vender os seus produtos ideológicos à vontade — existem para isso), propunha a ideologia do salazarismo, em resumo, a teses de que para quem é (os destinados ao trabalho assalariado e sem direitos) bacalhau basta.

É revelador da ideologia proposta por Barreto a comparação com as justificações dos deputados da União Nacional e dos membros da Câmara Corporativa a propósito do apoio à Reforma da Educação de 1937. Para esse propósito socorro-me do texto “Novos rumos da educação no Estado Novo: influência da abertura da economia portuguesa no pós-II Guerra Mundial no sistema de ensino português” de Ana Maria Ferreira Campos, do Gabinete História Económica e Social — ISEG/UTL. (as adaptações e cortes são da minha responsabilidade).

A 25 de Novembro de 1937, o Ministro da Educação Nacional, Carneiro de Pacheco, apresentou uma Proposta de lei sobre a Reforma do Ensino Primário, no qual se focam as principais medidas e resultados das políticas educativas adotadas desde o séc. XIX até ao advento do Estado Novo. Apesar de Portugal se encontrar numa situação de grande atraso em relação à maioria dos países europeus, em matéria de instrução, tal não parecia ser a principal preocupação para os apoiantes e dirigentes do regime salazarista, incluindo o próprio Presidente do Conselho. O pensamento dominante convergia numa certa valorização da ignorância característica das classes populares, ao ponto desta ser encarada como uma virtude, questionando-se mesmo, relativamente ao problema do analfabetismo, “se, realmente, interessaria extingui-lo, ou se não seria preferível manter o povo na ignorância pois dela decorrem a sua docilidade, a sua modéstia, a sua paciência, a sua resignação ” Assembleia Nacional: Diário das Sessões — Diário nº 147, 27–11–1937.

O espírito por trás deste pensamento era óbvio: quanto menos instrução tivesse o povo, menor seria a sua capacidade em questionar as políticas do regime e a ordem social vigente, mantendo-se assim um clima de conformação geral. Contudo, não sendo possível limitar o ensino a uma “burguesia bem comportada”, procedeu-se a uma redução do ensino no tempo e nos currículos. O objetivo era a opção por uma política educativa minimalista, cujo objetivo era levar a escola ao maior número possível de crianças, sem, contudo, “desencadear novas expectativas sociais e minimizando os efeitos de uma hipotética utilização do capital escolar como fator de mobilidade social”. Neste contexto, defendia-se que cada um deveria ser educado consoante o seu estatuto social, para exercer a sua função na sociedade, valorizando-se valores como a simplicidade e a humildade. Assim, a escola (primária) surgia como um meio para “vivificar o lugar que cada um ocupa na ordem social, através de uma dimensão integradora, que fomenta a coesão moral e o respeito das hierarquias vigentes” A reforma do ensino primário proposta por Carneiro Pacheco e respetivo debate na Assembleia Nacional são demonstrativos desta conceção do ensino, que os ideólogos da escola neoliberal como Barreto defendem. A base da instrução e do combate ao analfabetismo (hoje o combate pelo conhecimento) era, portanto, a simplificação, como destacava o deputado Juvenal Araújo: “Abandona-se resolutamente a orientação enciclopedista (…)” “elabora-se a análise cuidada da natureza do ensino e da função que ele afinal tem a preencher na vida (…)”

Esta conceção minimalista do ensino do Estado Novo era acompanhada por uma atitude conservadora, retrógrada e opressiva. O discurso da maioria dos deputados revela alguma preocupação relativamente ao perigo que poderia resultar da elevação do nível de instrução do povo, como atestam estas palavras de Correia de Pinto: “Saber ler valoriza as atividades humanas e alarga os horizontes da vida. Mas vejamos: saber ler para acreditar cegamente o que dizem certos jornais e certas publicações? Saber ler para fazer a cultura do ódio entre os homens e do ódio entre as classes? Saber ler para poder ver até onde vai a prática e a ciência do mal? Pregunto: vale a pena saber ler para isto? (…)”

Este tipo de discurso comprova a ideia de que a escola no Estado Novo, a mesma que, com as adaptações resultantes das alterações produzidas durante um século, Barreto defende, é não só um local de aprendizagem dos conhecimentos básicos, mas assume-se como elemento fulcral para a tarefa de inculcação da ideologia e doutrina de um regime totalitarizante que substitua a que resultou da revolução do 25 de Abril e da Constituição da República, uma ideologia tendencialmente igualitária e integradora. Assim se justifica a rejeição do «estéril racionalismo enciclopedista». O enciclopedismo foi, como se sabe, um dos fundamentos das revoluções políticas e sociais baseadas na Igualdade.

A ideologia dos poderosos é sempre apresentada como uma bem-intencionada, natural e neutra forma de administrar os recursos da sociedade, de manter a ordem, um lugar para cada um e cada um no seu lugar, a resignação conservadora de que sempre assim foi e sempre assim será, uns em cima e outros em baixo. Uma ideologia que transformou os que vendem o seu trabalho de trabalhadores em colaboradores, em uberistas, em empresários a título individual, em recursos humanos disponíveis e em reserva, com a escola e o ensino a servirem de máquina de gravar ideologia em chips humanos. É a escola dos neoliberais (a de Barreto), uma escola ferozmente carregada de ideologia, integrista e desumana.

Não existem regimes políticos sem ideologia. Como não existem sociedades sem valores, sem um rumo, sem uma finalidade. Os neoliberais sabem-no, mas pretendem que os outros não saibam. Ser cidadão é diferente de ser súbdito. Isto é ideologia. Associar o pensamento à existência é ideologia e deve constar dos programas da escola. Cogito ergo sum — penso, portanto sou. Barreto e os seus colegas ideólogos propõem que Descartes seja saneado da escola! Há quem, em nome da liberdade, da justiça e da recusa à lei da selva do lucro se oponha a este saneamento!

Carlos Matos Gomes

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Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes nasceu em Vila Nova da Barquinha, em 1946. Coronel do Exército em situação de reforma, cumpriu três comissões na guerra colonial (Moçambique, Angola e Guiné), nas tropas especiais «comandos». Fez parte da primeira comissão coordenadora do Movimento dos Capitães, na Guiné. Pertenceu à Assembleia do MFA durante o ano de 1975. É investigador de História Contemporânea de Portugal. Publicou, em co-autoria com Aniceto Afonso, os livros Guerra ColonialOs Anos da Guerra Colonial e Portugal e a Grande Guerra. Desde 1983, escreve obras de ficção (incluindo romances, contos, guiões de filmes e séries de TV), sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz.
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