A indomável morte das rainhas – Carta a um poeta

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Estaçãodo Metropolitano de São Paulo – Gontran Guanaes Netto. Detalhe de Marianne I, 1989. Parte do conjunto de murais chamado A liberdade e o Povo.

«Julguei que isto era o fim e afinal é o princípio. Aquela fogueira, António, há-de incendiar esta terra! Adeus meu amor, adeus! (Para o Povo) Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira. Abram as almas ao que ela nos ensina! Esta noite foi feita para que a víssemos até ao fim… (Pausa). Felizmente – Felizmente há luar! (Desaparece o clarão da fogueira. Ouve-se ao longe uma fanfarra que vai num crescendo de intensidade até cair o pano).

Talvez, ó Poeta, nunca tenhas ouvido falar deste terrível drama acontecido uma vez em Portugal dominado pela pérfida Albion, peça escrita oito anos depois daquele teu poema, nem saibas nada dos escritores deste país. Quando um dia te prenderam, por teres declamado em público aquele poema à tua Guiana mártir, violada pelas baionetas do opressor, ainda este grito teatral não ecoara no silêncio espectral, de raiva e lágrimas, das salas de teatro deste povo lusitano muitos séculos espezinhado, agora novamente de rastos, curvado sob o manto esfarrapado de rainhas estranhas, após a morte de tantos irmãos dele povo pela implantação da República que hoje os une com maior dignidade, e honra de seres humanos, do que a servidão a reis por suposto direito divino, que a si-mesmo se entronizaram e transmitiram aos sucessores o trono bordado a sangue e crime. Como na tua Guiana e um pouco por todo o mundo, os nossos queridos aliados, que nos tinham ajudado em 1810 a libertar dos franceses, tomaram conta deste reino de um rei que fugira em pânico para o Brasil e lá ficaria longos anos, deixando o povo sofredor entregue aos marechais, príncipes e reis, que já tinham britanizado com mão de ferro a Índia, e começavam a sonhar com um vasto império de Alexandria ao Cabo, com vice realezas por tudo quanto era terra africana, do lago Tanganica ao Nilo Branco e mais além, que primeiro os portugueses haviam colonizado, levando aos povos indígenas, muitas vezes inimigos entre si, com a escravatura – também praticada por esses mesmos povos, convém não esquecer -, alguma cultura universal e civilização. Portugueses colonizadores sem dúvida, porém colonizados outrossim longos séculos na pobreza do seu próprio país por reis, príncipes, rainhas, fidalgos e clero, a maioria um magnífico bando de loucos, fanáticos religiosos, e corruptos.

Enforcamento do General Gomes Freire de Andrade, 1817

Felizmente há luar, como se diz no término daquele documento assinado pelo marechal Beresford cujo ordenava o enforcamento no forte de S. Julião da Barra, do general luso Gomes Freire de Andrade acusado de conspirar contra Sua Majestade escondida no Brasil a ouvir o canto dos sabiás, indiferente para a sorte do seu povo escravo, sob a bota de Londres, e daquele marechal inglês a sonhar já com o domínio também das possessões ultramarinas desta infeliz nação. Felizmente há luar, exclamação que se transformaria, de uma simples nota de bom augúrio luminoso para aquela noite escura em que esse general lusitano patriota seria enforcado, o corpo depois reduzido a cinzas e deitado aos cães que vagueavam pelas margens do Tejo, no Felizmente há luar! revolucionário, grito de revolta contra o domínio britânico, cujo fim sucederia nesse dito país daí a três anos, com a Revolução Liberal de 1820, libertando esse mesmo povo das garras de leão da querida e nossa mais velha aliada, como disse há dias um Presidente da República Portuguesa, de cócoras, subserviente e reles, no funeral duma rainha criminosa. Presidente já a preparar o próprio povo, frente ao qual pavoneia a sua histrionice e falta de cultura histórica (parece que só ouviu falar no Ultimatum inglês), beatismo, irrequietude compulsiva e parvoíce congénita, para a glorificação santificada próxima (2023) dessa aliança. Tudo sob o espectáculo inominável de televisões – com caras de luto, desfiguradas, olheiras de dó e gravata preta, de tristes comentaristas e pivôs, destoutra farsa -, desde a RTP estatal, desavergonhada e ofensiva da memória dos milhares de republicanos mortos para libertar este país de rainhas beatas, assassinas, e reis doidos, às televisões privadas a contar os milhões que lhe rendeu, e renderá no futuro, aquela marca britânica da morte dum espectro shakespeariano cujo ainda paira – mas por muito menos tempo do que poderão pensar – sobre uma parte da humanidade ameaçada, em perigo, deste planeta, do qual espectro de subserviência se libertará um dia, algo infinitamente mais importante que a morte de qualquer raquítica rainha.

Fuga da família real após a implantação da República em 5 outubro de 1910

Saberás, querido Poeta, preso e oprimido por esta rainha defunta por ergueres a tua pobre voz contra a tirania, que por cá os poetas, desde há séculos, vêm também esconjurando a errada e cega monarquia, ou como nestes versos dum dos seus maiores: E um dia, ó flor do luxo, nas estradas/ Sob o cetim do azul e as andorinhas/ Eu hei-de ver errar, alucinadas/ E arrastando farrapos as rainhas. Menos de trinta anos após estes proféticos versos escapavam pela pedregosa praia da Ericeira, ao lusco-fusco, sôfregas de medo, arrastando pela areia húmida os reais pés depostos, rasgando na penedia acerada as pálidas sedas, as últimas rainhas e os futuros reis ainda por nascer, que nunca o seriam, deste país. Antes disto, e das batalhas travadas para implantar nele a República, contavam-se dezenas de séculos de humilhações; mortandades na guerra; foros, décimas, laudémios, morgados, comendas etc; pagos pelos mesquinhos à classe dominante, ao clero pedófilo e corrupto, e aos reis (com a honrosa excepção de dois ou três que governaram com justiça; a favor dos pobres; obrigando os ricos e poderosos senhores feudais a repartirem com o Estado os seus tesouros roubados; ou dando o corpo ao manifesto em batalhas pela independência do reino contra estrangeiros ou gente egoísta da sua própria classe). Mas nada desculpa tanta subserviência rasteira, como a que agora observamos dos representantes portugueses, entre estados soberanos, e humilhação a que expuseram os cidadãos livres desta Pátria, cujos, noutras ocasiões, saíram vencedores da prosápia britânica, como naquele torneio que o nosso Poeta narra no Poema máximo da Língua, dos doze magriços triunfadores lusitanos sobre os ingleses; mesmo lembrando a Ínclita geração que eles nos deram com alguns dos nomes maiores da nossa história, já que, em contrapartida, muitos outros momentos houve em que nos traíram, ofenderam ou ameaçaram com armas em punho, ou hipócrita amizade, cuja culminou naquele Ultimatum de 1890, em que reclamaram os territórios portugueses ganhos por Serpa Pinto entre o Zimbabwe e o Malawi, ameaçando com uma intervenção militar sobre Portugal (o Hino republicano «A Portuguesa» recorda ainda hoje esse ultraje), quando éramos o único estorvo em África à sua sede de ouro (jazidas auríferas na Lobengula na margem do Zambeze), diamantes, escravos e dilatação do sangrento Império, transportado tudo pela East-African Company, com passagem pela região de Masona e do Niassa, ocupadas já então pelos portugueses há duzentos anos, que os nossos queridos aliados reclamavam na sua imparável rota para sul. É esta fraterna aliança que o actual Presidente da República se prepara para comemorar, com apoio das mesmas nojentas televisões e jornalistas mercenários, no próximo ano, não num curto programa, recatado e singelo, por respeito para com a República à qual preside e aos portugueses honestos, mas com o alarido e pompa bacoca por que se pela, e pelam os canais de esgoto televisivos que nos couberam em sorte. Já vês, ó Poeta, quão semelhante à tua é a nossa dura pena e triste condição!

Gravura da implantação da República Portuguesa, 5 outubro de 1910

Como não fazer nossas, ó corajoso Poeta, as palavras da nossa irmã americana sobre esta morte indecente da rainha duma corte de adúlteros, pedófilos, e corruptos?: Hoje estamos de luto por todas as vidas roubadas, violadas e traumatizadas que foram destruídas durante o reinado de Isabel II. Os criminosos de guerra são homenageados enquanto sociedades inteiras sofrem as marcas da guerra e da violência (Phoebe Bridgers). Atrocidades em África, Ásia, Américas e Caraíbas, jamais reconhecidas, muito menos com um simples pedido de desculpa, por esta monarca arrogante. Enterrada num caixão de chumbo para não cheirar mal aos súbditos de toda a espécie cuja irá, apesar disso, se não estava já, apodrecer como os restantes mortais, mísera condição humana que lhe valerá ainda algum respeito e dó. Fora disto, nem o jubileu lhe valeu! Do Gulag do Quénia (independente em 1963) que a rainha comandou, quer o quisesse quer não, escreveu a escritora Shailja Patel: Alguns sobreviventes de violação, castração, fome, trabalhos forçados e tortura no Gulag colonial britânico do Quénia ainda estão vivos. Nunca receberam qualquer pedido de desculpas.

Sim, Poeta, tinhas razão quando te revoltaste contra alguém que nem sequer conseguiu alguma vez pedir-te desculpa pelo que fez, mandou fazer, deixou que fizessem, ou simbolizou, figura máxima dum império vasto ganho com sangue em grande parte à custa de povos e impérios anteriores, como o português, o qual, não obstante, e de modo diferente, teve, por intermédio dos seus próprios heróis, poetas, escritores, artistas e libertadores duma ditadura de meio século, cuja revolução findou também com a nossa colonização doutros povos, a capacidade humana de reconhecer os erros e, com humilde generosidade e sensatez, de pedir desculpa.

Deixa apenas, ó Poeta, agora que a Morte fez a justiça que faltava com estoutra morte, a qual também simboliza a morte futura, demore o tempo que demorar, da subserviência degradante para a condição humana a monarquias e ser súbdita de alguém igual a si na miséria temporal que a todos iguala, onde apenas é digna a condição livre e soberana que eleva cada ser humano ao seu próprio rosto, que eu lembre aqui os versos que um dia escreveste e te levaram à prisão, de brando, lúcido e magoado protesto contra a ocupação e os crimes cometidos pelo domínio britânico na tua Guiana a que chamaram inglesa: Este é o tempo escuro, meu amor/ Ao redor de toda a terra, besouros rumorosos rastejam/ O sol brilhante está escondido no céu/ Flores vermelhas inclinam a cabeça com terrível tristeza/ Este é o tempo escuro meu amor/ O tempo da opressão, do vil metal cheio de lágrimas/ O festival de armas, o carnaval da miséria/ Em todos os lugares os rostos dos homens estão tensos e ansiosos./ Quem vem lá, avançando no escuro da noite?/ De quem, o sapato de aço que avança e pisa a relva?/ É a figura da morte, meu amor, o estranho invasor/ Conhecemos a sua história. Fomos alimentados com a sua imagem/ Chávenas de chá, bolinhos finos, reverências/ Porém tudo quanto vês foi servido com injustiça e sangue. (Martin Carter)

Sim Poeta, na tua Guiana, aqui, em todo o mundo, um clarão, uma pequenina luz brilha, ainda brilha, se perpétua, obstinada, luminosa contra as trevas que avançam de novo neste mundo em perigo, metido na subserviência, na mediocridade, no calculismo, no medo e na rudeza, duma apagada e vil tristeza. Contudo ainda brilha, repara querido Poeta: Felizmente há luar!

 

Mário Rui Silvestre

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