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Leituras inextinguíveis (51): Aquela pérola comandava um lindo sonho, a maldade humana tudo perdeu

Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

John Steinbeck

A Pérola, por John Steinbeck, Livros do Brasil, reimpressão em 2021, é uma novela que nos põe a refletir sobre aqueles sonhos em que organizamos o nosso desenvolvimento pessoal, as expetativas em que procuramos assentar o nosso caráter, e como o nosso o crer pode conhecer a perdição por cobiça, inveja e outros atributos da maldade humana. Steinbeck faz-nos crer que existe por detrás uma narrativa oral, talvez uma parábola que nos ajuda a descobrir a própria vida. Quem está sempre em cena é Kino, o pescador, a sua mulher, Juana, e o filho do casal, Coyotito. Kino levanta-se ao amanhecer, ouve o rebentar sereno das ondas matinais na praia, observa com enlevo mulher e filho, constituem uma família muito humilde temperada por afetos firmes e delicados. “Kino era jovem e forte e os seus cabelos negros caiam-lhe sobre a testa morena. Tinha uns olhos quentes, ferozes e brilhantes e um bigode fino e áspero”. O seu pequeno-almoço é um bolo de milho quente, é nisto que aparece um escorpião, picou o ombro da criança, há que recorrer ao médico, acompanhados pela vizinhança batem-lhe à porta, como não têm dinheiro o criado anuncia que o médico não está. Enraivecido, encaminha-se para a praia, está absolutamente seguro que hoje encontrará um tesouro, lá vai a família numa canoa por cima do banco de ostras. E é nos dado a saber como se forma uma pérola preciosa:

“Podia acontecer um incidente a essas ostras, um pequeno grão de areia podia introduzir-se entre as pregas do manto e provocar uma irritação até que, em autoproteção, a ostra envolvia esse grão de uma camada de massa macia. Mas, depois de principiar, a carne continuava a cobrir o corpo estranho até ele ser libertado pela força da maré ou até a ostra ser destruída. Durante séculos, os homens tinham mergulhado e arrancado as ostras daquele baixio e tinham-nas aberto, em busca dos grãos de areia recobertos. As pérolas eram acidentes, e só se encontrava uma por sorte.” Kino mergulha, viu lá no fundo uma ostra muito grande, uma concha parcialmente aberta, vislumbrou um brilho antes que a concha se fechasse. “Lentamente, libertou a ostra e agarrou-a contra o peito. Soltou o pé da argola da pedra e o seu corpo elevou-se até à superfície e o seu cabelo negro brilhou à luz do sol. Agarrou-se ao rebordo da canoa e pousou a pérola no fundo”. Juana pede-lhe para abrir a ostra e foi então que apareceu a maior pérola do mundo.

A notícia correu célere, ricos e pobres daquela cidade mexicana logo souberam o acontecimento transcendente, era a essência da pérola a misturar-se com a essência dos homens. “Toda a gente, subitamente, começou a viver em função da pérola de Kino e a sua pérola penetrou nos sonhos, nas especulações, nos planos, nos futuros, nos desejos, nas necessidades, nos apetites, nas ansiedades de toda a gente”. Perguntam a Kino o que é que ele vai fazer agora que é um homem rico e ele responde com toda a inocência que quer casar na igreja e dar um futuro bom à sua família, quer que o filho tenha boa educação, era o que ele esperava da pérola.

E o pesadelo começa. Vem primeiro o padre, adverte Kino que não se esqueça de dar graças aquele que vos deu o tesouro; vem depois o médico e anuncia que traz curativo para a mordidela do escorpião, Coyotito não está nada bem, contorce-se de dores, o médico promete que ele vai ficar bom. Kino começa a ter medo de toda a gente, será atacado por ladrões, procurará vender a pérola, sente que o querem explorar ou roubar, um comprador observa que a pérola é grande e desajeitada, oferece 1000 pesos, Kino replica que vale 50 mil, outro comprador diz que a pérola é uma monstruosidade, a família regressa a casa, o negócio não se fez, Kino parece estar perdido neste mundo novo onde o que tem forma é o seu sonho do futuro, sofre mais ataques que vêm pela noite escura, Juana suplica-lhe que é preciso fazer desaparecer aquela pérola, coisa maligna, mas Kino quer lutar por manter o seu sonho firme, pela primeira vez o casal tem uma rixa violenta, Kino vê-se forçado a matar alguém em legítima defesa, casal e Coyotito procuram fugir a perseguidores que anseiam possuir aquela pérola.

Cartaz da primeira versão cinematográfica de “A Pérola” (1945)

John Steinbeck tem aqui os seus parágrafos mais avassaladores, o vento a uivar e a sacudir o mato, aquela família a caminhar durante toda a noite sem nunca alterar o passo, aqui e ali comem bolos de milho macios, a inquietação é permanente, há sinais dos perseguidores, há mesmo cães excitados na sua peugada, Kino tudo faz para esconder vestígios da passagem, chegam a uma plataforma de onde se podia ver o deserto castigado pelo sol até ao golfo azul, ao fundo, é preciso trepar até às cavernas para desorientar os perseguidores. E Kino decide dar luta a quem pretende apoderar-se daquela pérola, um a um abate os perseguidores. E o casal decide regressar à sua casa. Mas quando chegam ao golfo, é tomada uma decisão drástica, irreversível, a pérola vai desaparecer, o pescador índio, a sua bela companheira e o filho de ambos precisam de viver em paz, libertam-se da pérola, e assim acaba a parábola:

A pérola mergulhou na maravilhosa água verde e desceu até ao fundo. Os braços oscilantes das algas chamaram-na, fazendo-lhe sinais. Os reflexos na sua superfície eram verdes e belos. Pousou no fundo de areia, entre as plantas submarinas, semelhantes a fetos. Por cima dela, a superfície do mar era um espelho verde. E a pérola repousou no fundo do mar. Um caranguejo que percorria ao fundo ergueu uma pequena nuvem de areia e quando ela assentou a pérola tinha desaparecido.

A música da pérola desvaneceu-se num murmúrio e finalmente desapareceu também.”

São assim as parábolas, metam elas pérolas, o achado de outros tesouros, fazem parte de provérbios, anexins, para já não falar de tanta literatura oral que há no mundo. Há leituras perversas, do tipo “quem tudo quer, tudo perde”, o que mais dói neste casal índio, e nos sonhos inocentes de Kino é que tudo passava pelo desenvolvimento da pessoa humana, e a entrada em rompante da pérola do mundo parece que teve o condão de trazer as bestas do Apocalipse. E daí o equívoco que afinal a novela de Steinbeck pode induzir, depois de tanta maldade que a gente vê no mundo o melhor é não sair da pobreza. As parábolas são assim, comportam por definição leituras muito elásticas, quase para todos os gostos. Parece que ele se terá baseado num conto popular mexicano e não deixa dúvidas, seja qual a leitura que possamos fazer desta parábola, pode muito bem acontecer que um tesouro desejado, de aparição inusitada, nos obrigue a pensar que este nosso mundo se cobre de grandezas e misérias. E o resto é a literatura extraordinária de Steinbeck, a quem tão se justamente se conferiu o Prémio Nobel da Literatura.

Mário Beja Santos

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