A narrativa vem de janeiro de 2003, da cidade de Porto Alegre no país irmão, na única vez que fui ao Brasil para participar no Fórum Social Mundial (FSM).
Luís Inácio Lula da Silva, tinha acabado de ser eleito presidente da República. Ao fim de quatro tentativas o operário metalúrgico conseguia o apoio maioritário do povo brasileiro sustentado numa enorme onda de entusiasmo e alegria, de grande participação popular, de vigor e amplitude de movimentos sociais, de uma cidadania que fazia lembrar o pós 25 de abril em Portugal.
Foi uma viagem inesquecível e marcante, que me abriu a mente e os horizontes da reflexão para a pluralidade e um diálogo mais aberto a novas realidades e soluções.
Em todos os lugares se respirava criatividade. As ações culturais assumiam formas nunca antes vistas por mim; as formas de estar, exprimir e pensar eram muito diversificadas. De todos os lados surgiam novidades e a minha mente fervia de perguntas tentando compreender toda a amplitude vivenciada.
Conversar com povos índios nativos, agricultores ou trabalhadores agrícolas dos confins “sem fim”, sentir o pulsar enérgico do Movimento dos Sem Terra e os seus exemplos como vi na Cooperativa dos Assentados de Tapes… Este assentamento foi uma lição de cidadania: o papel liderante das mulheres com implicações democráticas, igualitárias, de maior visibilidade às crianças e às suas necessidades, da aliança do assentamento com a universidade para a produção avançada de produtos biológicos e sustentáveis, da coragem de quem ocupou as terras dos latifundiários e fez sucesso do lema “a terra a quem a trabalha”, que fez do abandono das terras um lugar solidário de fertilidade e sustento de centenas de pessoas.
Porto Alegre tinha sido o “farol” do Orçamento Participativo, hoje disseminado por todo o mundo, importante ferramenta democrática e de valorização da cidadania, mas também de responsabilização das pessoas pela terra onde vivem.
Como foi viva a interação com sindicalistas [em particular da Argentina] que pagaram o seu ativismo com a fome, ou ambientalistas que transportavam a mensagem do grande Chico Mendes assassinado pela sua defesa da natureza e da selva amazónica.
É duro fazer política no Brasil, como Chico Mendes muitos ativistas pagaram com a vida o seu empenho na defesa dos direitos humanos. Está viva a memória do assassinato de Marielle Franco, por ativistas de extrema-direita que afirmam ser seguidores da “linha Deus, pátria e família”. A violência faz parte da política do ódio, dos mesmos que manipulam milhões de pessoas pela fé, para preservar os anacrónicos privilégios da elite antidemocrata do país.
Voltando ao FSM, a três momentos.
Um dia, numa espécie de esplanada de rua, estava a comer frango assado com delegados e delegadas de vários países quando um menino de uns 11 ou 12 anos se abeirou da mesa do lado e perguntou a uma senhora se já tinha comido tudo. A mulher respondeu então que sim e poderia levar o prato, pensando tratar-se de um pequeno empregado de mesa. O menino pegou no prato, afastou-se uns 20 metros e começou a comer os restos do frango. A pele arrepiou-se-me e fiquei sem voz, tal como quem me acompanhava.
Outro episódio ocorreu no pavilhão do Gigantinho, um enorme pavilhão circular, propriedade do Internacional. Absolutamente lotado, dez mil pessoas para ouvir alguns dos maiores ativistas culturais do mundo. Uma bandeira imensa, com as bandeiras dos países presentes cozidas umas às outras numa mensagem de união, começou a circular nas bancadas, movidas por centenas de braços, num momento de enorme fraternidade. Após isso começou o debate principal; durante este, entra um homem no pavilhão com dois cartazes no corpo [um atrás e outro à frente] que diziam “vende-se rim para curar a perna”, circulou por vários lugares até que um segurança se lembrou de o agarrar para o expulsar. O incidente gerou um coro brutal de assobios e protestos que parou o evento e fez o segurança largar o infeliz portador de uma perna visivelmente doente.
O terceiro episódio foi com Lula, que presidiu a um comício de rua com centenas de milhares de pessoas. O operário metalúrgico, recém-eleito presidente, mostrou todas as suas capacidades oratórias empolgando a assistência ao êxtase. Entre os vários momentos do seu empolgado discurso disse: “eu vou a Davos, falar com eles de olho no olho, contar de a gente aqui não tem comida no prato todos os dias, dizer que criança tem de ter escola…”, o povo exultava perante o desafio que Lula ia fazer à nata do capitalismo mundial que se reúne no Fórum de Davos… Que se saiba, a ida de Lula ao fórum da elite financeira não lhes suscitou nenhuma compaixão pela miséria do povo brasileiro!
A presidência de Lula foi um avanço significativo na diminuição da fome, da pobreza e do avanço da escolaridade, mas manteve a essência da estrutura de um dos sistemas mais geradores de desigualdade do mundo. A manutenção dessa estrutura, aliada à “captura” para as instituições dos dirigentes dos sindicatos e movimentos sociais, a retirada de direitos sociais aos funcionários públicos, a mitigada reforma agrária, a contaminação pela corrupção (…) provocaram uma fratura no Partido dos Trabalhadores e o nascimento de novas forças à esquerda como o Partido Socialismo e Liberdade.
Agora, a vitória de Lula traz consigo um respirar melhor. Esse respirar é também um auxílio aos presidentes Pedro Castillo do Peru, Gabriel Boric do Chile, Gustavo Petro da Colômbia, Alberto Fernández da Argentina, ou Lopes Obrador do México, na consolidação democrática, de alguma viragem à esquerda e de ultrapassar a pressão da extrema-direita.
Esperemos que a derrota de Trump, nos EUA, agora secundada pela derrota de Bolsonaro auxilie também a Europa a respirar melhor e mais democraticamente. Assim as políticas governativas, por cá, também façam por isso, para que não haja meninos a comer restos de frango.
Vítor Franco