Saramago nasceu antes de nascer; não deveria ser chamado deste modo; não morreu no dia em que morreu; não é o maior escritor de língua portuguesa; nem tão mau como primeiro o pintaram, um dos maiores críticos literários portugueses e uma romancista lusitana cheia de suficiência, nem tão bom como depois de 1998, e do Nobel, o louvaram e louvam alguns dos que o de início o negaram.
Traduzido, após esta data, em meia centena de países, tal facto em nada anula o que fica dito acima. Um crápula como Putin é traduzido hoje em muito mais nações do mundo, e um grande político como Churchill, ganhou por ser político, um prémio Nobel de literatura.

O Homem (o colectivo Homem, apesar destes artigos, julgo que ainda não vigora no título do programa televisivo a Fé dos homens dos imbecis católicos nacionais – também os há bons – resistindo à gramática e aos supervisores da RTP do assim se fala em Bom Português), pois o Homem é ele e a sua circunstância, foi dito por um filósofo sem circunstância nenhuma. Einstein não teria tempo para pensar na velocidade da luz e inventar a Relatividade em 1915 se não fosse a circunstância de ter encontrado emprego estável naquela empresa de patentes da Suíça, e do mesmo modo nunca seria o maior génio da humanidade que foi ao lado de Newton, ou recebido o prémio Nobel que recebeu. Kafka jamais seria o escritor do absurdo que é, e o termo kafkiano nunca teria existido, sem a circunstância do amigo que lhe sobreviveu não ter, contrariando o seu pedido, destruído os manuscritos deixados e depois impressos com tanto êxito dos seus livros. O primo leitor e este escriba não estaríamos aqui a ler e escrever isto se as algas e alforrecas donde vimos, ó martírio!, expostas nos mares primordiais a uma seca-extrema, secassem mais depressa do que aquela primeira-ministra inglesa, de que já ninguém sabe o nome, secou em quarenta dias e noites, arrastando à demissão o menos mau líder Cotrim, devido à iniciativa liberal da senhora ter saído malograda na dita ilha. Muitos dos políticos do actual Cop27 do Ambiente (quantos copos ainda serão servidos nesta bebedeira colectiva antes da tragédia final?) jamais teriam visitado o Egipto, em poluente jacto gratuito, sem a circunstância possível dos filhos, por este andar, virem a protagonizar entre eles um Mad Max em breve. E tudo assim, sujeito à ventura, perdão, à sorte ou azar do destino, como aquele azar que o Costa teve com a escolha dos ministros e secretários de Estado deste governo, e os portugueses também. Quanto a Saramago já veremos a circunstância que o levou à sorte grande do Nobel.

Saramago nasceu, antes de nascer para o Registo Civil, em 16 de novembro de 1922. O patronímico era alcunha do pai e entrava como vegetal colhido nos campos, junto às folhas do cardo, aos arelhos, ao poejo etc. na culinária ribatejana dos pobres de há cem anos. Não morreu com a morte física e este centenário prova-o. Não é o maior escritor português de sempre consoante sabem quantos conhecem a opera omnia de poetas, cronistas e romancistas portugueses de Fernão Lopes para cá. Não era, já antes do «Memorial», tão tosco na escrita como quis um notável crítico luso, ainda por cima marxista, e uma, também agora centenária, romancista sibilina invejosa, nem tão bom como o louvou um famoso ensaísta americano judeu quando lançou «O Evangelho Segundo Jesus Cristo», renegando-o mais tarde chamando-lhe «estalinista irredutível» quando redigiu o «Caim» do Velho Testamento.
Viu primeiro a luz das oliveiras do magro quintal da humilde casa de telha vã onde nasceu, alumiada a azeite, na Borda d´Água de campinos e gaibéus no tempo do varejo, qualidade de pobre que nunca enjeitou e constitui um dos leit-motiv da sua escrita, exibida com orgulho no discurso de recepção do Nobel que o fez rico. Nascença humilde que já tinha acontecido a um deus a que hoje rezam milhões de pecadores interesseiros, pobres e ricos, e foi também, assumido e divulgado, o segredo do êxito do romancista do «Evangelho Segundo Jesus Cristo», pormenor nunca apontado pela maioria dos hermeneutas que o incensam com termos muito apropinquastes na garabulha da análise textual dita científica não intuicionista, copiando-se uns aos outros, ou saqueando o já dito na Internet, método favorito da actualidade literática e cultural moderna, que o tema vende até nos pasquins regionais oportunistas, e as editoras arrecadam os lucros respectivos da exegese (ainda que pouco, que o meio é mais pobre em leitores de Ensaios puxados das canelas que Saramago quando nasceu). Adiante.
À semelhança de Jesus Cristo também Saramago abriu primeiro os olhos num exíguo e pobre presépio, casebre rural, rodeado do cheiro seminal da terra, plantas e animais. Conforme os quatro Evangelhos canónicos mostram que o seu herói, deus-filho feito homem (não existiam ainda as feministas do Bloco de Esquerda para provarem que a segunda pessoa da trindade é uma mulher), falava por parábolas, fábulas, segundos sentidos, do mesmo modo a obra de Saramago é a partir duma certa altura uma alegoria pegada. Não era novo isto em Portugal. Bernardim Ribeiro, Samuel Usque, e outros alumbrados e judeus, há séculos que tinham adoptado este método alegórico para iludir a Santa Inquisição de pau carunchoso que os queria transformar em toucinho fumado para exemplo. Editados primeiro fora de Portugal, estes e muitos outros, marranos e não só, edificaram toda uma literatura de falar trocado e sentido figurado, que faz hoje as delícias de esotéricos, astrólogos, e grupos mediúnicos, além de académicos de número que não fazem mais que arrombar portas há muito abertas e gastar papel.
Gaba-se também muito, como a descoberta da pólvora, o realismo mágico de Saramago com as personagens e a efabulação de «O Memorial do Convento», um dos seus maiores livros e do séc. XX nacional, com aquela Blimunda que via através dos corpos, personagem copiada duma verdadeira que existiu no século XVIII antes dos inquisidores a libertarem na fogueira das diabólicas visões, ou do padre Bartolomeu, a que chamaram nas crónicas desse século «o voador», que existiu de facto mas não consta que tenha achado mais etérea a passarola que muitos padres, bispos e cónegos actuais. Também aqui há exagero a mais, ou leituras a menos, dos tais hermeneutas da exegética mágica.
Os autores de «O Piolho Viajante», de «A Constante Florinda» e centenas de folhetos de cordel, e literatura pícara setecentista portuguesa, à semelhança do que fizera Cervantes, já tinham embrechado nas suas novelas e contos toda uma poética alegórica que Saramago aproveitou como bom leitor e autodidata que foi, nas bibliotecas públicas lisboetas, destes e semelhantes livros.

Realismo mágico há, no século XX antes do «Memorial», em Raul Brandão, no teatro imóvel de Pessoa, em alguns contos de Almada, em muitas novelas de Régio, Torga, Sena, ou Manuel da Fonseca, para não irmos além destes maiores. Mesmo o «Barranco de Cegos» do Alves Redol, tido como obra máxima do neo-realismo que não chega a ser, tem na parte final com a personagem do Relvas muito de realismo mágico, e não foi pouco o que Saramago bebeu neste autor, e método de escrever livros tão próximos das suas vivências ribatejanas. Vamos à circunstância do Nobel antes de mais duas coisas.
No 25 de novembro de 1975 este escriba era oficial de cavalaria destacado no quartel da P.M na cidade dos Jerónimos (cidade agora sem o Jerónimo do P.C.P, partido hoje tão pétreo e a esboroar-se como aquele monumento de Belém, ex-líder muito saudado pela direita, corruptos, pedófilos, ditadores do mundo, e poderosos dos offshores que nunca incomodou em primeiro lugar, honra lhe seja, apenas ocupado em reclamar salários mais altos para o nosso povo e trabalhadores, que são todos, dos sem-abrigo aos Ricardos Salgados e Varas, que se fartaram de trabalhar para sacar aquele pastel todo), regimento atacado e vencido nessa noite dramática pelos Comandos. Depois desse ataque, e vitória da linha mais à direita do exército e da política portuguesa, foram saneados dos seus postos centenas de militares e doutras figuras civis, intelectuais e artistas, lançadas para o caixote do lixo da história donde não mais saíram muitos deles como do inferno. Este caixote naquele tempo era ainda uma coisa sólida e menos má. Agora (como prova a hodierna saga dos Gonçalves do PSD e outros alves e santos afins por todo o lado, que estão a lançar esta boa democracia nos braços do fascismo que nem ginjas), devido à reciclagem política e judicial do gamanço, não há caixote que os receba e eles lá se aguentem antes de voltarem à acção.

Saramago também foi, por tabela política, naquele 25 de novembro, saneado do cargo de director-adjunto do Diário de Notícias com muita alegria dos trabalhadores daquele jornal para parecerem que não eram comunistas, qualidade então muito ruim de se ser. Pouco conhecido e desempregado, o poeta dos «Poemas Possíveis», desterrou-se, como Ovídio, no Alentejo, e – à semelhança do que já fizera Alves Redol, exilando-se na Glória do Ribatejo, e numa aldeia ribeirinha do Tejo, para escrever os «Avieiros» -, abancou em Lavre, cheio de camaradas rústicos, para redigir o romance mais inovador, do ponto de vista formal, da segunda metade do séc. XX português: o «Levantado do Chão». Um livro com parágrafos maiores que léguas do Alentejo há meio século; pontuação fora dos cânones gramaticais; discurso indirecto livre e directo à mistura no mesmo período; narrativa no presente do indicativo, com oralidade até dizer chega etc. etc. Uma coisa deste mundo e do outro na literatura pátria estou a topar, parece que estou a ouvir daqui o/a leitor/a ilustre dizer com ironia? Bom, bem vê, é assim como quem diz. Com esta pertinácia na terra lusitana não digo que não. Porém, na literatura estrangeira de um certo e anterior realismo mágico, sobremodo na sul américa e no «Outono do Patriarca» (1975) em particular (livro de García Marquez outro Nobel), o formalismo inusitado é tanto, os parágrafos, como os Andes, tão longos e afiados, que o leitor nem pode levantar a cabeça massacrada do livro que está a ler para respirar, beber um café, ou cerveja. Mas lavrar em Lavre (1979), fora do rego das normas da escrita, ou assim tidas pelos Dantas de todos os tempos, ainda não bastava para Saramago semear novos ventos e colher daí aplausos da confraria sueca e, antes desta, dos autóctones, muito entregues a meia dúzia de oráculos. Sim, não basta habitar Dublin para ser um Joyce (muito mais de monólogos interiores que o autor do «Memorial» e do «Ano da Morte de Ricardo Reis» dois dos melhores livros do autor de «Viagem a Portugal»). Joyce hoje com lugar cativo no templo dos inventores da literariedade moderna, a mesma que Homero já havia inventado há milénios. Então como foi que o júri sueco descobriu Saramago como a pólvora que Nobel, o capitalista, não descobriu, mas lhe valeu a fortuna cuja serve hoje para dar aos premiados amansando-os na rebeldia, se a tinham, em grande parte?
Encontrei várias vezes Saramago no tempo em que estive ao serviço da CDL (Central Distribuidora Livreira), ligada à editora Caminho, chancela original do «Levantado do Chão» (1980) e de todas as obras posteriores deste escritor (antes da venda admirável desta editora de esquerda a um grupo capitalista), ambas, a distribuidora e a editora, associadas ao P.C.P, e por ele à União Soviética. Responsável por duas livrarias da CDL (a Caminho de Santarém e a 18 de janeiro da Marinha Grande, bastião comunista à época), tive oportunidade de assistir à ascensão de Saramago ao cume da literatura lusa, antes do «Levantado do Chão» pouco menos que ignorado poeta e autor de um razoável livro «Manual de Pintura e Caligrafia» (1975) além de um conjunto de crónicas notáveis, reunidas em duas obras «Deste Mundo e do Outro» e «Bagagem do Viajante», do melhor que o autor produziu, deixando a milhas na escrita concisa, carregada de sentido e poesia, alguns dos livros do período final.

Comercializados nestas livrarias da CDL (mais de uma dezena espalhadas por todo o país), pela editora Caminho anexa; nos Centros de Trabalho do PCP de norte a sul e ilhas; nos países da Internacional comunista e amigos destes; sobremaneira na Festa do Avante, comprados por solidariedade por camaradas que nunca os leram como acontece com a Bíblia, no auge de afluência com participação dos países de Leste, Cuba etc., intelectuais e artistas nacionais e estrangeiros de todos os quadrantes; sindicatos, e corporações afins; os novos livros do pós 25 de novembro de Saramago (um nome estranhamente eufónico, quase bíblico, confundido nos centros literários da Europa e América, até pelo estilo, com os de Gabriel García Marquez, Mario Vargas Llosa e outros contestatários da ordem e desordem mundial e humana), estavam, escapos ao anátema da Igreja e das editoras do capitalismo, no rumo à vitória, no tempo, e no sítio certo para o êxito, circunstância que não voltaria a suceder depois com a queda da cortina de ferro, e não podia ter acontecido antes com a ditadura de Salazar. Eis o que ninguém dirá neste centenário e nunca foi dito antes deste artigo, por que destas coisas não sabem, nem curam de saber, os decifradores de semantemas, hipálages, estilística e sintaxe narrativa, retórica que em boa verdade conta pouco para ajuizar da grandeza ou não dum escritor, por que de minimis non curat praetor, só que… Só que, sem isto, e o mais que direi à frente, não haveria Nobel e sem Nobel este centenário assim tão cheio de comadres e compadres do signo, comovente biografia e cortejo de lágrimas lambidas (o cão das lágrimas, lembram-se?) ao homenageado.

Apenas mais uma heresia, as quais, como se vê, não colidem com o respeito deste escriba pela arte de Saramago, em três ou quatro livros um dos maiores romancistas que não poeta do século XX nacional, logo a seguir a Mestre Aquilino, que só não foi nobelizado antes dele, como esteve para ser na década de sessenta daquele século, por que Portugal era uma ditadura e a academia sueca incapaz de traduzir o vernáculo português da «Casa Grande de Romarigães» e a grandeza daquela escrita difícil para a língua de Shakeaspeare, a dona disto tudo ainda hoje (radicará também nisto a bem do comércio livreiro do Zeferino Coelho e correlatos no mundo, o despojamento estilístico dos livros de Saramago, para melhor traduzidos, um pouco antes e logo após o Nobel, alvitre que deixo aqui ao hermenêuta, do Eça em especial, sabedor de livros e análises textuais, que é Carlos Reis, a grande figura e verdadeiro pilar da preparação deste centenário).
Tal como Saramago adquiriu notoriedade literária, cá e no estrangeiro, depois do 25 de novembro de 1975, com o «Levantado do Chão», quando ficou no desemprego e se refugiou em Lavre, no Alentejo, para escrever com tempo este livro revolucionário do ponto de vista formal (até certo ponto), duma temática próxima de «Avieiros» e dos «Gaibéus»(1940), de Redol que introduziram o neo-realismo em Portugal, notoriedade devida em grande parte ao P.C.P. (partido que nesta despedida e discurso de Jerónimo de Sousa não teve uma palavra para este centenário, dominado que está pela ganga trabalhista e sindical e desprezo pela cultura e intelectualidade que por lá ainda possa existir, sem um líder culto e literato como Cunhal), através dos seus meios editoriais, de distribuição e divulgação nacional e internacional à época. Assim, também os grandes culpados próximos pela atribuição do Nobel ao autor do «Evangelho Segundo Jesus Cristo» foram o P.S.D., os seus governantes então no poder, e a Igreja Católica cheia de ortodoxos e do bispo Clemente que fulminaram este livro sem capacidade para o ler como obra literária que é.

Saramago jamais teria ganho o prémio Nobel de literatura sem a circunstância do 25 de novembro, o apoio político, editorial, de distribuição própria e publicidade do P.C.P, este anátema do P.S.D e da Igreja, e a conjuntura internacional com o caos na Rússia na década pós-União Soviética cujo caos até fez ter saudades da mesma (tudo isto, em especial a parte política, explica outrossim por que Lobo Antunes nunca ganhou nem já ganhará o Nobel, causa das insónias que, depois dele ser dado a Saramago, o vêm atormentando tanto).
Quando Sousa Lara, o secretário de Estado de Cavaco Silva, ambos ainda com dificuldade para dizer quem escreveu o best-seller «O Que Diz Molero», veio afirmar que o governo vetava que o «Evangelho Segundo Jesus Cristo»(1991) concorresse ao Prémio Literário Europeu, e um eurodeputado deste partido proclamou naquela tribuna europeia um tenho vergonha de ser compatriota de Saramago, estava meio ganho, pelo autor do «Ano da Morte de Ricardo Reis», o Nobel.
Só faltava usar de um velho recurso de vitimização do inimigo que nos persegue que naquele tempo de perseguidos na União Soviética (Soljenítsine e mais uns milhões de vítimas) causava um frisson do catano. Esse recurso da honra ofendida, seria o exílio na ilha de Lanzarote onde Saramago começou a escrever uns cadernos de mágoas, crítica do mundo globalizado, e honrarias recebidas, que lhe veio com a nova companheira Pilar del Río, espanhola com mais salero publicitário que a recatada e literata Isabel da Nóbrega anterior esposa de Saramago.

«O Evangelho Segundo Jesus Cristo» esteve na génese do Nobel atribuído a Saramago e contudo é no essencial um livro medíocre. Como crítica religiosa à Bíblia, tirando alguns apontamentos irónicos originais, e outros já referidas por Erasmo, Voltaire ou Bakunin, a factos totalmente inverosímeis e díspares da literatura bíblica, escrita na diáspora grega muitas décadas após os acontecimentos que relatam, o «Evangelho Segundo Jesus Cristo» vale menos pela crítica social que como obra literária, e do ponto de vista narrativo é, a espaços, uma empada que começa com aquela, longa e arrastada cena, de José e Maria a caminho do Presépio (todos os livros deste autor têm um casal muito fiel de amorosos e defendem a mulher, algo que lhe fica bem, em especial no tempo em que foram escritos, mas contrastam com os casamentos de Saramago na vida real e dos livros dedicados a duas esposas), cena tão lenta e redundante que até causa brotoeja. Salva-se certa poética similar a uma experiência da infância de Saramago, descrita, salvo erro, na «Bagagem do Viajante», quando acompanhou o avô, ambos a pé, pela campina do Alviela, da Azinhaga à Feira de Santarém, conduzindo uma vara de porcos numa noite mágica sob uma lua imponderável, aproveitada, menos os porcos, estou em crer, para aquela primeira cena do romance. Quem primeiro, nos grandes meios da crítica internacional, gostou disto foi Harold Bloom, um professor judeu nova iorquino, educado entre ortodoxos, que ao tempo dava cartas, e ensinava aos americanos que a cultura ocidental valia por três, e que o romance moderno e as novas técnicas narrativas, desde que não ofendessem os judeus, eram uma coisa muito de se ler, e dentre estas este livro de Saramago. Foi aqui que a academia sueca levantou as orelhas e ficou à escuta do que diria a seguir este mago das letras do Saramago que ele elogiava.
Entretanto, por cá, os críticos portugueses não cabiam em si de felicidade por finalmente a literatura moderna portuguesa ser notícia na América culta, por isso resolveram atribuir ao escritor do «Ensaio Sobre a Cegueira» o Prémio Camões (1995), categoria de cegos a que não queriam pertencer por antes de Bloom não terem visto a grandeza deste autor. Harold é que viu assim confirmada a sua opinião e voltou a lembrar que se tinha rido muito ao ler o «Evangelho» e que Saramago, com aquela ironia toda neste livro, era bastante cómico, qualidade que mais tarde deixou de ter, segundo o mesmo Harold, quando escreveu o «Caim», um judeu problemático anterior a Cristo, (obra mediana e no grau zero do estilo, como a maioria das obras saramaguianas depois do Nobel), chamando-lhe estalinista irredutível. Não obstante, tudo se encaminhava para o grande prémio sueco e mundial que viria, como as abóboras, no final de 1998. E afinal, apesar do riso de Bloom, Saramago não sabe rir, literariamente falando. É sim irónico, nalgumas passagens dos seus livros. É inteligente. A ironia inteligente tem humor. Mas não sabe rir como soube o Camilo do «Bazílio Fernandes Enxertado» e em tantas outras novelas deste mestre do sarcasmo e da literatura lusa; ou o Eça da «Relíquia», apresentada pelo Raposão à Titi beata, quase a desmaiar; ou, mais perto de nós, o Mário Zambujal dos «Bons Malandros» e daquele finamente anedótico «À Noite Logo Se Vê». A única piada verdadeiramente risível, para afastar a concorrência futura ao panteão nacional, foi ele ter dito que o Gonçalo M. Tavares é um grande escritor (hipérbole também atribuída a outros peixotos na peixeirada que é hoje a literatura caminho-de-ferro, onde se escreve mais rápido do que se pensa, todos in pluribus unum na casa dos bicos d´obra).
Espicaçado, como Cristo na cruz, o bom escritor da «História do Cerco de Lisboa», produziu a eito, melhor ou pior, até ao fim da vida, deixando incompleto um romance (que outros ainda virão acabar), a esconjurar os seus demónios de estimação: os senhores da guerra; a globalização; e o ser humano alienado. «A Viagem do Elefante» foi já, pela vulgarização da temática, fôlego angustiado, respiração curta, estilo pobre (mesmo o estilo de o não ter é pobre), o desmanchar duma feira cabisbaixa.
Próximo da morte, impelido apenas por uma estranha força que dominava o seu espírito severo, caminhando para a tumba com maior lucidez poderia ter gozado melhor o tempo que lhe restava, o que, por respeito à sua memória de grande escritor de quatro ou cinco livros, me inibo de analisar.
Saramago, o segundo nobelizado nacional, primeiro na literatura após as candidaturas falhadas de Pascoaes e Aquilino, conseguiu com esforço notável e uma série de acasos felizes, ganhar o Nobel e para este tempo vão, e literatura industrializada, contada a peso de ouro nas sucessivas edições, é o que conta, para a dita indústria e o vulgo, a maioria que lhe compra os livros mas não os lê. Filho das ervas, numa qualquer Azinhaga ou atalho dos ninhos de aranha, autodidata, agnóstico, chegou onde jamais chegarão a totalidade dos que primeiro desdenharam a sua impreparação académica, que se a tivesse é duvidoso que chegasse onde chegou.
Aí fica, oferecida à exegese bisonha, procissão de beatos acríticos e grandes pachecos, e improvável novo futuro centenário, que a espécie humana de cegos, e o interesse pelo romance ao jeito deste século, não chegará a tanto, esta análise biográfica, algo inédita, exótica, e um pouco fútil.
Mário Rui Silvestre