Ser ator em Portugal, por Jacinto Lucas Pires, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022, é uma viagem/inquérito a seres humanos atraídos pelas artes do palco, haverá depoimentos confessionais tocantes e inevitavelmente esses atores irão falar das relações do teatro com o cinema e a televisão, farão previsões sobre o mundo teatral, haverá de tudo como no teatro: paixão, desapontamento, lágrimas e suspiros.
Jacinto Lucas Pires cria uma magnífica ilusão, faz-nos supor que tem diferentes ofícios, é contrarregra, carpinteiro, anda na luminotécnica ou na cenografia, mas o que acima de tudo o leitor extrai é uma ode triunfal ao ator e ao teatro, pois é enredado numa escrita magnífica, com tal fulgência que até somos levados à convicção que todo o texto é fruto do imaginário, vejam-se parágrafos esparsos, soltos, aparentemente voláteis:
– Cresceu sem saber que ser atriz podia ser uma profissão. Na família, não tem ninguém ligado às artes. Não frequentavam o teatro, nem sequer como público, mas eram incentivados a fazer coisas. Viviam todos perto, avós, tios e primos; eram muito próximos. Viam pouco a televisão, mas tinham grande liberdade para brincar. A vocação para ela está muito ligada a isso: o prazer. O prazer de fazer teatro é análogo ao prazer que a criança tem a brincar.
– Precisavam de uma miúda no espetáculo do pai, que era ator, e a irmã mais velha disse que não. De maneira que foi ela. Tinha catorze anos.
– Logo desde pequeno, o que queria era comunicar. Hoje parece-lhe que isso vinha de uma sensação de incompletude aliada a um qualquer impulso narcísico. Numa pecinha do jardim de infância, os colegas saíram do palco mal acabou a representação, e ele ficou, todo contente, a pedir palmas ao público.
– Estava a ver uma peça, como já tinha visto tantas. Quando o espetáculo acabou, ficou sentado, não se conseguia levantar. Era como se o corpo tivesse percebido antes dele. Já era espetador e leitor de teatro há um bom tempo, e aquela talvez nem fosse das melhores peças que tinha visto, mas, de repente, teve a certeza. Queria ser ator. A ideia apareceu-lhe com uma nitidez impressionante.
O leitor que se prepare para esta catadupa de descobertas vocacionais, umas insólitas, outra não tanto. E da vocação segue-se para a formação, a escola artística. Novos depoimentos de inquiridos ou fruto da imaginação do autor, recorde-se que escreve para o teatro, trabalha com diferentes grupos e encenadores:
– Uma escola artística tem de ser exigente. Deve ensinar-nos a pensar por nós próprios. Pôr-nos a usar a arma da curiosidade. Há escolas que querem fazer dinheiro em vez de fazer atores. Nalguns casos, os alunos acabavam por servir como marionetas de professores que não faziam encenações cá fora e usavam a escola para satisfazer esse gosto. Noutros casos, não; os professores davam espaço aos alunos para contribuírem criativamente e aprenderem a ser atores em vez de bonecos.
– No ensino comum, não há uma educação artística transversal. O teatro que se vai fazendo nalgumas escolas do país depende da paixão, da carolice deste ou daquele professor. O ator defende que a escola ideal deve ter uma companhia ou uma unidade de produção. Deve ter um teatro aberto ao público ou, ainda melhor, fazer parte de um centro cultural.
– É importante perceber que o teatro implica uma aprendizagem de várias técnicas, mas é mais do que a soma de todas elas – porque o teatro, como um todo, constitui um saber. Implica estudo e escuta; e capacidade de diálogo com as diferentes tradições que o formam.
Temos agora o ator em cena, o palco pode parecer o paraíso ou o inferno, antes há que aquecer o corpo e a voz, domesticar os nervos, controlar a espera antes de entrar em cena, ultrapassar o medo de falhar. Antes, há uma convivência num universo que escapa ao senso comum, quem não é do teatro não pode imaginar o que é ensaiar: “Não é possível explicar a sala de ensaios a quem não é do teatro. Se dissermos o que fazemos lá, chamam-nos malucos, é o lugar onde nos despojamos de todo o preconceito, um lugar onde podemos vencer o medo de falhar. Para uns, é um lugar sagrado, onde se tem de tirar os sapatos que se usa no mundo. Para outros, é uma espécie de recreio ou campo de jogo.” E registo, mais adiante: “A vida, às vezes, aparece na sala de ensaios.” Atenção, há a leitura, a discussão do texto, a sua locução impõe ou não movimento, alterações faciais, expressões de fúria, de risota, tiradas sob a forma de monólogos é aqui que o ator se ultrapassa, não é para todos fazer de Rei Lear a arrastar o corpo da sua bem-amada filha Cordélia, num tom plangente, soluçante, que nos contagia, pois aconteceu-me ver um notável Ruy de Carvalho a fazer-me chorar, tal a intensidade da sua representação.
E há os problemas de gestão, os estatutos que regem a carreira (o Estatuto do Trabalhador de Cultura), como criar um futuro para o teatro. E a relação com a televisão e o cinema;
“Na televisão, somos o ator-máquina, a quem só se pede que execute. É o público que pede isso. No teatro, somos o ator-criador, a quem são permitidos caminhos diferentes, inesperados. No cinema, somos o ator-subtração: como é que damos a ver alguma coisa retirando a maior parte do que encontrámos. Na televisão e no cinema, o ator está no fim da cadeia das prioridades. No teatro, não. Porque o teatro depende do ator. O projetor pode estoirar, o cenário pode ruir, mas se o ator se mantiver em cena, o espetáculo continua. O teatro é o ator. Para além disso, mas talvez também por causa disso, o ator é mais responsável pela criação no teatro. Há um fascínio dos atores em relação ao cinema, diz o ator. O teatro vai-se, fica só na memória de quem viu o espetáculo em dado momento. O cinema tem o prestígio daquilo que fica.”
Há o ator e há a companhia, há o problema da idade, a perda de memória, saber domesticar as brancas, os deslizes, um sapato entalado, e o ator até pode estar doente quando representa:
“Estar em cena é muito forte. Quando se faz um espetáculo estando-se doente, parece que tudo passa durante aquele tempo. Podemos ter febre, gastroenterites, coisas assim, mas vamos para cena e esquecemo-nos. O corpo dá-nos uma trégua durante aquele tempo. Só no fim nos volta tudo.
Leitura imperdível, uma obra imaginosa, entre o caleidoscópio e uma sala de espelhos, para conhecer vocações, formações, um meio de vida, os ciclones do palco.
Mário Beja Santos