Segunda-feira, Março 27, 2023
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Leituras inextinguíveis (59): A História da Europa cortada a meio, mas o olhar de Duroselle era inexcedível

Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

jean Baptiste duroselle
Jean Baptiste Duroselle

São coisas que acontecem, pediram-me para falar da Europa para uma turma de adolescentes. Disse que sim e fui logo procurar um livro relativamente atual, acessível a jovens, com uma exposição didática vivaz e graficamente atraente. Seduziu-me A Minha História da Europa por Elisabete Jesus e Eliseu Alves, Porto Editora, 2019, folheei regaladamente, mas sempre com aquele incómodo de que falamos de uma parte da Europa, a greco-latina, a romano-católica e protestante, com invasões bárbaras, feudalismo, a arte das catedrais, os Descobrimentos, o Renascimento, o Absolutismo e o Parlamentarismo, as revoluções depois do Século das Luzes, os Impérios Coloniais, as Guerras Mundiais, a Guerra Fria e a reconstrução europeia, o fim do Muro de Berlim. Andando a frequentar numa academia sénior um curso sobre a História e Cultura da Rússia, tive um choque na primeira aula quando a professora mostrou no ecrã o mapa da Europa em 814, tinha falecido o imperador Carlos Magno, era uma Europa que incluía viquingues, lituanos, eslavos do Leste, e muito mais. E então a professora observou que estes povos, para além do que são hoje as fronteiras da Alemanha, os Estados Bálticos ou a Bulgária, eram o maior denominador linguístico da Europa, falavam línguas eslavas. Estudei desde os bancos da escola uma parte da Europa, uma Pré-História da Europa Ocidental, a grande família dos indo-europeus e a presença celta, Grécia e Roma, como a Europa afastou a presença árabe, e nos tais séculos IX, X e XI, assim de uma forma difusa e apressada, falava-se dos viquingues, os eslavos, e voltava-se para o cristianismo ocidental, a Guerra dos Cem Anos, o Renascimento e a Reforma, para não incomodar mais o leitor, acompanhávamos as conquistas napoleónicas e a sua derrota, a Revolução Industrial, a alvorada do nacionalismo europeu no século XIX e mesmo nos bancos da universidade não havia tempo para chegar ao século XX, obviamente que nem se falava na construção europeia, nas propostas antigas e modernas para unir os seus povos na diversidade.a minha historia da europa

Consultei os livros escolares, a História e a Geografia de Portugal, o que os adolescentes estudam até chegar às universidades, no fundo era o mesmo pedaço da Europa que estudei há mais de 60 anos e que não tinha só a ver com a Guerra Fria, não se devia só ao facto de eu ter sido educado no Estado Novo que abominava a democracia, o parlamentarismo, o liberalismo, era, em síntese uma Europa que praticamente ficava confinada à Europa que resultava da cisão entre o Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente.

Quando Mikhail Gorbatchov procurou a revitalização da União Soviética, abrindo portas à liberdade de expressão, e procurou seriamente dialogar com o chamado Mundo Ocidental para pôr termo à Guerra Fria e desviar as despesas do armamentismo para a modernização do país, o conceito da Europa foi submetido a um olhar renovado, foi nesse contexto que um conjunto de intelectuais se lançou num projeto da História da Europa, encarada numa perspetiva universal e com o objetivo de que tal trabalho conhecesse tradução da generalidade das línguas europeias. Entregou-se a colaboração do projeto a um grande mestre, na altura já considerado o expoente máximo do estudo das relações diplomáticas europeias, Jean-Baptiste Duroselle. O livro estava pronto em 1990, é o ano em que é publicado em Portugal pelo Círculo de Leitores e pelas Publicações Dom Quixote. É uma obra inesquecível, na introdução Mário Soares refere-se a esse peso pesado da cultura europeia que era o professor Duroselle, e não deixa de observar a importância da conjuntura em que surge a obra:

No momento em que vivemos, quando se esboça entre sobressaltos de esperança e justificadas apreensões, a nova construção europeia, nada poderia ser mais oportuno e atual. Naturalmente que os caminhos que iremos percorrer, derrubados o Muro da Vergonha e a Cortina de Ferro, serão totalmente novos e, em alguns casos, mesmo, inesperados. Contudo, o conhecimento objetivo da História e das idiossincrasias e singularidades de cada povo – que em tanto lado voltam a irromper com inusitada força – são importantes para iluminar os caminhos do futuro e para mostrar como, apesar de tudo, há traços e valores comuns que persistem para lá das diversidades.”

Falamos de uma edição de rara beleza e com um acervo informativo opulento. Logo a explicação de que vivemos numa Europa de configuração estranha e uma geografia original, recortada e simétrica, onde prepondera a zona temperada, um mosaico de paisagens, sistemas de vegetação profundamente variados, o ADN indo-europeu a que se juntaram celtas e germanos. E diz-se mesmo que no termo da Segunda Guerra Mundial não voltou a haver qualquer guerra na Europa Ocidental, que se foram democratizando todas as nações da Europa Ocidental, que declinou o nacionalismo, etc.

E começa a longa e prodigiosa narrativa com o sugestivo apanhado sobre a Pré-História, passamos pelos celtas e pela Idade dos Metais, pela sabedoria grega e a grandiosidade romana, o que mais impressiona é a perfeita adequação das imagens ao valor do texto; chama-se a atenção para o fator de assimilação do Império Romano, para o impulso da conquista cristã no Ocidente, para a chegada dos germanos à Europa e como a sua disseminação irá enriquecer, a prazo, identidades nacionais, os Visigodos em Espanha, Ostrogodos em Itália, Burgúndios, Alamano, Francos, as migrações marítimas dos Germanos às Ilhas Britânicas, a formação das línguas nacionais, a primeira tentativa de construção europeia com Carlos Magno. Não é esquecida a importância dos viquingues, como fizeram incursões no Ocidente, e há uma curta referência aos eslavos que aí pelo século IV a.C. irrompem de Leste para Oeste, eliminam no plano político búlgaros, cazares, mongóis e outros. E séculos fora forma-se a Morávia, a Polónia, a Hungria e ocorre um acontecimento dramática para a formação europeia, a rotura do Ocidente com Bizâncio, tenho para mim que é este o acontecimento que me levou a estudar a Europa reduzida a uma Europa Ocidental, com incursões centrais e nórdicas. Porque a partir daqui, e continuando a ler este trabalho soberbo dirigido por Duroselle, temos o apogeu do cristianismo ocidental, as cruzadas, as universidades, o românico e o gótico, a tal Guerra dos Cem Anos, o progresso científico na Europa, os Descobrimentos, parece então que se apagou a palavra Europa com o aparecimento de novos mundos e com os turcos à porta; a Reforma e a Contrarreforma abrem caminho para uma nova visão do poder político, do conceito de monarquia de direito divino a umas ascensão das liberdades, que fortificará na Era das Luzes.

A narrativa prossegue com o tempo das revoluções e esta obra monumental desembocará nos passos dados para a construção europeia e Duroselle deixa-nos uma conclusão depois de apreciar a profunda alteração que se deu no continente com o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim. Prevê um caminho penoso e lento para a unidade política, havia que deixar sedimentar as reviravoltas havidas na Europa Central e de Leste desde a primavera de 1989, a construção europeia exigiria um amplo olhar e uma estratégia que contrariasse a ideia de decadência, que voltasse a posicionar a Europa como terra da inovação, e diz algo que me parece que aguarda uma concretização para o ideal europeu em que certamente se forjarão as novas gerações:

Nenhuma região na época europeias podem ser analisadas como fenómenos isolados. Todos nós somos originários de culturas megalíticas, Iberos, Lígures, Celtas, Italiotas, Germanos, todos temos, vincadamente, um cunho de helenismo e ainda mais da Bíblia e da cristandade. Megálitos, estradas e construções romanas, direito civil, arte românica, catedrais, universidades, navegação, Revolução Industrial, direitos humanos, é tudo isto e muito mais que forma a essência da Europa.

E, mais adiante: “As forças de cada uma das nações europeias somente podem desdobrar-se na Comunidade e os progressos verificados na nova Europa Central parecem concorrer para uma consolidação destas forças e desta unidade. A criatividade sempre fez parte da essência da Europa. A unificação da Europa deve concretizar-se segundo um padrão inteiramente novo e esboçado passo a passo.” E digo para mim que este é o trajeto obrigatório para que o ideal europeu seja acolhido por todo o Continente, a tal Europa do Atlântico aos Urais.

Um grandioso trabalho, esta coordenação de Duroselle e a sua profecia otimista de que naquele tempo em que se derrubara o Muro de Berlim o conceito europeu iria ser engrandecido.

Mário Beja Santos

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Mário Beja Santos
Mário Beja Santos
Toda a sua vida profissional, entre 1974 e 2012, esteve orientada para a política dos consumidores. Além da atividade funcional, foi representante associativo, tendo exercido funções no Comité Consultivo dos Consumidores, na Comissão Europeia, e na direção da Associação Europeia de Consumidores. Foi autor de programas televisivos e radiofónicos, bem como de dezenas de trabalhos no campo específico do consumo. Ao nível da sua participação cívica e associativa, mantém-se ligado à problemática dos direitos dos doentes e da literacia em saúde, domínio onde já escreveu algumas obras orientadas para o diálogo dos utentes de saúde com os respetivos profissionais, a saber Quem mexeu no meu comprimido?, 2009, e Tens bom remédio, 2013. Doente mas Previdente, dá continuidade a esta esfera de preocupações sobre a informação em saúde, capacitação do doente, o diálogo entre os profissionais de saúde, os utentes e os doentes.Colabora frequentemente com a imprensa regional e blogues, e exerce benevolato com associações de consumidores, como seu representante. Desde 2006 que se dedica igualmente a estudos sobre a colónia da Guiné portuguesa e a vida política na Guiné-Bissau, temas sobre os quais publicou uma dezena de livros.
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