Segunda-feira, Março 27, 2023
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Leituras inextinguíveis (60): Uma grande dama da literatura infantojuvenil que nos deixou um romance memorial ímpar

Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

Li O Mundo Em Que Vivi, de Ilse Losa, há um ror de anos, pergunto-me, tendo eu lido algumas das suas páginas às minhas filhas, como foi possível ter esquecido a importância desta obra de características únicas na literatura portuguesa, como um dia observou esse grande senhor da crítica que era Óscar Lopes.

Em momento afortunado, numa dessas bancas de livros usados, encontrei de novo esta obra terna e pungente, um relato da nossa aprimorada língua, bem sublinhado por alguém que estava a frequentar o sétimo ano e que escreve a lápis logo na primeira página, seguramente para resumir diante da turma, trabalho de casa: primeira parte – infância – alegria; segunda parte – final da infância – pré-adolescência – tristeza/alegria, agora vive com os pais, morreu o seu adorado avô, fala da sua condição judaica, da religião e da sexualidade; terceira parte – adolescência – tristeza/alegria, vive com a mãe, fala de Berlim, da inflação, da crise política, do amor e do emprego; quarta parte – chamada pelas SS, passou a ter um estatuto humilhante, não tem residência. E mais o jovem não escreveu, a Ilse irá para o exílio e em 1934 chegará ao Porto, aqui viverá até falecer, em 2006. Deixou-nos estas memórias admiráveis, em jeito de romance, vamos desde a I Guerra Mundial até ao nazismo, começara a caça ao judeu, são as primícias que conduzirão ao Holocausto.
O que nos vai arrastar do princípio ao fim é a magia com que fala de pessoas e citações com o domínio da simplicidade. Ela (de nome Rose) vive com os avós, ainda não sabemos porquê, tendo os pais vivos, uma avó severa, um avô torrão de açúcar, mexe nos álbuns pesados sobre a mesinha coberta com uma toalha de rendas, com capas de marfim e letras floreadas:
“Ao virar as folhas de cartolina detinha-me sempre na fotografia da minha mãe. Era bonita, a minha mãe: a testa alta, os olhos grandes, a trança a contornar a cabeça como uma coroa e uma blusa de gola engomada com a rendinha a tocar-lhe nas orelhas, o que lhe realçava o pescoço alto.” Há dois tios na América, quem controla a economia da casa é a avó, a menina bem quer a Boneca-Mais-Linda-Do-Mundo, é uma despesa que fica para depois porque se estava em tempo de guerra, a menina faz perguntas, o avô responde que é para defender a pátria, a guerra aproxima-se do fim, vai chegar um outro tio, vem de licença, foi retirado da frente dos combates, é lacónico nas suas descrições, diz estar subordinado a um tenente que detesta os judeus e lhe chama de porcos.
A guerra acabou, a tia que vivia na América morreu. Ficamos a saber que o avô Markus negoceia em cavalos, a menina quer saber porquê e o avô explica: “Houve um tempo em que não era permitido aos judeus viverem e trabalharam como se lhes apetecesse ou lhes desse prazer. Forçados ao isolamento em vielas escuras, só se podiam dedicar a determinados negócios.” O avô fazia parte de uma tradição de negociar com cavalos. Fala nas idas às sextas-feiras ao anoitecer e aos sábados de manhã à sinagoga, o avô Markus sentava-se em baixo, na secção dos homens, a avó Ester e a menina subiam a escada para a galeria das mulheres, a menina pergunta candidamente à avó se os homens ainda têm mais importância que as mulheres ao que a avó responde que as coisas já estiveram piores, aliás a avó Ester, terminadas as cerimónias, não queria perder mais tempo em conversas, pela lei da religião não devia executar trabalhos no dia de sabat, ela contestava: “São leis para mandriões ou para gente com escravos, porque se ninguém se ralar com o almoço não aparece na mesa.”
E, inopinadamente, a menina vai viver com os pais. Aqui se pode ler uma descrição que nos faz perceber como esta senhora foi mestra na literatura infantojuvenil: ”Chegámos. O pai tocou a campainha do portão de ferro. Vi a casa, a partir daí a minha casa. Que diferente da da aldeia! Branca, de dois pisos, portadas verdes, erguia-se no meio do jardim relvado e de maciços de flores garridas. O choupo de tronco grosso e copa farta irradiava tranquilidade, enquanto a faia de folhas vermelhas como sangue parecia arder sem sossego. Os cedros, direitos como velas, faziam lembrar o jardim solene da sinagoga, do lado de lá do meu ribeiro. No lagozinho saltava um repuxo e havia o caramanchão coberto de vinha brava.”

Ilse Losa
Ilse Losa

A menina tem muitas dificuldades de adaptação: “O avô Markus sabia falar do amor, sabia amar e mostrar que amava. A minha mãe escondia os sentimentos. Uma noite, eu fingia dormir, entrou sem fazer ruído. Acendeu a luz da mesinha de cabeceira e contemplou-me uns momentos. Teria gostado de abrir os olhos, deitar-lhe os braços ao pescoço, mas o amor é dar e receber, isso adivinhava sem que ninguém me o tivesse ensinado.”
Frequenta agora a escola primária, começa a pôr-se o problema de ser judia. Está dispensada de frequentar as aulas de religião protestante, começa a ter aulas de religião, faz perguntas embaraçosas ao seu professor. Por exemplo, o que significava ser sionista, vem a resposta: “Sião foi o nome de uma fortaleza de Jerusalém conquistada por David e, depois, do monte em que se construiu o templo. Os sionistas sonham com uma terra onde não sejam humilhados e onde os judeus vivam todos juntos como nos tempos da Bíblia.” Conta-nos o primeiro grande dia de festa religiosa, o Rosh Hashanah ou dia do Ano Novo, aniversário da criação do mundo. “Nesse dia, Deus tem um na sua frente onde estão registados os nossos nomes e determina quem, no ano a entrar, cá fica ou morre.” Chegou a idade das perguntas: como nascem os meninos, os que fazem os grandes à noite na cama. Descreve-se a festa de Passah, a Páscoa dos judeus.
Vai detonar a atmosfera dramática, é assassinado o presidente da Alemanha, era judeu, chamava-se Rathenau, entram muitos judeus em cena, a menina está agora no liceu e anuncia que é israelita. A menina tem a inquietação na alma: “Nunca me sentia totalmente livre. Torturava-me o receio de que alguém pudesse escarnecer dos judeus.”

Hindemburgo, Marechal, é o novo presidente. Há um rabino que vai dar aulas de religião às alunas judaicas, a menina não simpatiza muito com ela, e, entretanto, vai vendo os rapazes com outros olhos. Há casamentos e funerais, o pai morre, há mudança de casa, a mãe procura por uma pensão. O antissemitismo aumenta, fala-se cada vez mais em Adolf Hitler. Surgem histórias de amor. A menina arranja emprego, vive num apartamento em Berlim. Deixou de ir à sinagoga, a história da sua vida acelera-se, a sua amiga Elsa anuncia-lhe que está grávida e confessa o seu temor, pois chamam bastardos às crianças de mãe ou pai judeu. Em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler era chanceler do Reich. “Nessa noite marcharam as tropas de uniforme castanho. Em cada mão um archote, em cada boca um grito de entusiasmo. Braços erguidos. Botas, botas, botas a bater no pavimento, num ritmo igual, sempre igual.

A polícia de Hitler não a deixa em paz, estupefacta, fica a saber que os nazis queimam livros, os de Thomas Mann, Heinrich Mann, Franz Werfel, Sigmund Freud. É interrogada pelas SS, assina um documento a declarar que retira as ofensas que fez a Hitler. Chegou a hora de partir:
Alexanderplatz. O mar da multidão que me absorve, a mim, a gota insignificante, que vivia, respirava, via o céu, o sol. Ao meu lado, diante de mim, atrás de mim, corpos, rostos, vozes. Gente como eu. Mas ninguém sabe que a minha vida esteve em jogo, poucos minutos antes, que eu, judia Frankfurter, tenho cinco dias para deixar o país.”
Nada, absolutamente nada na literatura portuguesa, possui esta vibração, o que aqui se conta não é ficção nem se ouviu da boca de outro, foi o mundo em que ela viveu antes de, para extrema felicidade da cultura portuguesa, ter o Porto como seu destino.

Mário Beja Santos

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Mário Beja Santos
Mário Beja Santos
Toda a sua vida profissional, entre 1974 e 2012, esteve orientada para a política dos consumidores. Além da atividade funcional, foi representante associativo, tendo exercido funções no Comité Consultivo dos Consumidores, na Comissão Europeia, e na direção da Associação Europeia de Consumidores. Foi autor de programas televisivos e radiofónicos, bem como de dezenas de trabalhos no campo específico do consumo. Ao nível da sua participação cívica e associativa, mantém-se ligado à problemática dos direitos dos doentes e da literacia em saúde, domínio onde já escreveu algumas obras orientadas para o diálogo dos utentes de saúde com os respetivos profissionais, a saber Quem mexeu no meu comprimido?, 2009, e Tens bom remédio, 2013. Doente mas Previdente, dá continuidade a esta esfera de preocupações sobre a informação em saúde, capacitação do doente, o diálogo entre os profissionais de saúde, os utentes e os doentes.Colabora frequentemente com a imprensa regional e blogues, e exerce benevolato com associações de consumidores, como seu representante. Desde 2006 que se dedica igualmente a estudos sobre a colónia da Guiné portuguesa e a vida política na Guiné-Bissau, temas sobre os quais publicou uma dezena de livros.
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