A propósito de um cartaz e das atitudes de duas estrelas da sociedade. Passei por um cartaz onde a fotografia de um figurão que há uns tempos defendia nas Tvs os negócios sujos da bola e as sujas “vivências” dos agentes da bola, tudo gente séria, como se sabe. Clamava o dito no cartaz o grito de guerra da sua claque (agora reunida sob a respeitável denominação de partido político): Vergonha! O dito Ventura, em primeiro plano, anunciava com cara séria que ele, à frente da sua milícia, ia fazer uma limpeza no regime político! Bastava entregar-lhe o voto, ele fornecia as vassouras (e os jagunços, presume-se).
Ventura, o antigo comentador da bola e dos negócios do ramo, um negócio em que devem ser poucos os empresários e comissionistas que não sejam arguidos em processos que vão da prostituição à lavagem de dinheiro, da participação em negócio à falsificação de documentos, de pagamentos por debaixo das mesas à extorsão e à agressão física, em que um dos empreendedores de maior sucesso é conhecido no meio pelo «Macaco», o futuro almeida Ventura, saído do impoluto mundo da bola, apresentava-se à sociedade como candidato a “almeida da Pátria”! A sociedade, ao que parece, toma com complacência esta atitude gozo e desfaçatez. Os mais críticos, olhando para o cartaz pensarão que se trata do anúncio de um Motel, ou a um filme da Mafia, agora que um dos principais capos foi preso na Sicília.
Não é o dito Ventura e o seu desplante que me chocam, mas sim a complacência da sociedade para com um vendedor de banha da cobra, um dos muitos viciosos, falsos defensores da virtude para os outros que andam por aí à babugem (dos dicionários: espuma produzida pela água que se agita ou que está poluída). A mesma sociedade que se tem encarniçado contra o futebolista Ronaldo e a comunicadora Cristina Ferreira – porque um decidiu ir terminar a sua milionária carreira na Arábia Saudita e se fez fotografar ao lado de um RollsRoyce oferecido pela sua companheira, a outra porque realizou um espetáculo de conversa num grande auditório e contou um episódio tomado como premonitório do seu êxito ao encontrar uma imagem da Senhora de Fátima dentro de uns sapatos de alta gama, – admite um Ventura como um santo franciscano e não como uma tainha, o peixe que se alimenta dos dejetos saídos dos esgotos.
Numa sociedade limpa (aproveitando o slogan dos Chegas) a proposta do tal Ventura que se propõe limpar Portugal e as atitudes das duas estrelas do espetáculo deviam motivar reações contrárias às que de facto provocaram, porque elas são radicalmente distintas. A do chefe do Chega é do mais básico populismo, demagogia em bruto: Vão por mim que não vos engano! Ele é o que vende o que não tem. O que me impressiona não são os tipos que vendem cabritos sem terem cabras, mas que haja tanta gente que compre os tais cabritos que não existem!
Quanto ao futebolista Ronaldo e à vedeta da TV Cristina Ferreira, criticados, um por ter ido para a Arábia Saudita terminar a carreira com um carregamento de petrodólares (o que Calouste Gulbenkian fez com muito maior proveito) e a outra pela invocação de uma ocorrência de contornos miraculosos com o aparecimento de uma imagem da Senhora de Fátima dentro de um sapato (o que originou a construção de uma cidade e a credenciação de eminentes figuras do pensamento, incluindo a do atual presidente da República). Ambos, Ronaldo e Cristina Ferreira, pertencem ao mundo dos que se apresentam à sociedade como são, a vender o melhor que têm: os seus talentos. Nada prometem, mas ambos transmitem a mensagem de que é possível escapar ao destino marcado pela origem. Compreendo e respeito as atitudes de ambos. Todas as sociedades cultivam figuras simbólicas de êxito, que por sua vez exibem perante as massas os objetos que representam as suas vitórias, sejam báculos, coroas, peles, sejam agora automóveis (os RollsRoyce de Ronaldo) ou sapatos com solas vermelhas (o que as perdizes também usam). Os gregos divinizavam estas personagens que enfrentavam as leis e os costumes, que violavam interditos e saíam como vencedores dessa luta: atribuíam-lhes a categoria de semideuses.
O que Ronaldo e Cristina Ferreira estão a dizer aos comuns é que podem aspirar ao estatuto de semideuses, se os candidatos correrem os riscos inerentes, se esforçarem como eles e se tiverem a sua sorte. Eles correram os riscos e venceram. Tenho um sincero respeito pelos que à custa do seu talento conseguem ter sucesso. Cristina Ferreira apresenta uma particularidade reveladora da sua perspicácia. Ela limitou-se (o que não é pouco) a recuperar o episódio da medalha da santa no sapato a parábola da moeda perdida, relatada no Novo Testamento da Bíblia: “Qual é a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo uma, não acende a candeia, não varre a casa e não a procura diligentemente até achá-la? Quando a tiver achado, reúne as suas amigas e vizinhas, dizendo: Regozijai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido.” (Lucas)
Em «Apocalíticos e Integrados», Umberto Eco escreveu uma frase que se aplica a Ronaldo, ele “é o herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular de Hércules e Siegfried, de Roldão a Pantagruel e até Peter Pan”. Nos livros mais antigos de várias civilizações, da Odisseia de Homero à epopeia de Gilgamés e às modernas obras de Ficção Cientifica, nas palavras de um crítico que li algures: os astros (eles são estrelas) representam apenas um dos fins do percurso; eles são, antes de mais, um símbolo da insatisfação eterna do homem. A raça humana mal tinha nascido já pensava em evadir-se da Terra. Em todos os tempos as estrelas foram objeto de ambição dos homens; e acabaram por as atingir. […] Falta qualquer coisa aos homens que eles esperam encontrar nas estrelas. É este qualquer coisa que figuras como Ronaldo e Cristina Ferreira materializam num estádio ou num pavilhão. Eles demonstram uma superação visível e leal entre as limitações que lhes seriam impostas pelo nascimento e uma carreira abençoada pelos deuses.
A lealdade entre estes seres eleitos e os seres comuns distingue-os de forma irredutível dos populistas que utilizam os truques mais iníquos da demagogia para arrastar os seres comuns, ludibriando-os com promessas de salvação, regeneração e de limpeza, segundo a mais recente promoção nos cartazes, sejam de bispos da IURD, de Trump, Bolsonaro, Salvini ou do indígena Ventura. Os pastores religiosos de várias empresas de embalar almas com dízimos e os pastores políticos de diversas coletividades obtêm sucesso com a mais velha falácia da História: convencer os outros de que existe uma Justiça a posteriori reparadora das infelicidades e sofrimentos dos homens comuns no presente. Que existe um Além (muito além) de Justiça, de acerto de contas! Aceitai as dores do presente que na Eternidade receberão unguentos reparadores!
Mesmo antes do surgimento dos “deuses morais”, 2800 anos antes da nossa era, no Egito, com a figura do deus Rá e da sua filha Maat, que serviram de modelo aos deuses das grandes religiões monoteístas, existiram os “deuses justiceiros”, que castigavam os humanos mais por faltas quanto às obrigações com as divindades que lhes garantiam justiça do que por ofender outros humanos. Os “deuses justiceiros” foram as primeiras divindades a quem os homens prestaram culto; deuses que exigiram obediência antes da prática do Bem. É ao regresso a esses deuses primordiais, vingadores, que estamos a assistir e é para irmos aclamá-los e servi-los que os populistas nos estão a convocar.
Os modernos populistas políticos e religiosos voltaram a utilizar a prática de exigir sacrifícios por faltas cometidas contra a divindade, punindo os hereges que negam o divino, que não pagam o dízimo, que respeitam estrangeiros, que não acreditam em milagres. Julian Assange, preso à ordem dos interesses dos Estados Unidos por ter desvendado segredos do regime, ou a jovem Masha Amini presa e morta pelo regime dos ayatolas do Irão por não vestir de acordo com a moda imposta pelo profeta Maomé aí pelos idos do século sete são vítimas desta visão do “deus justiceiro” contra os que ofendem o seu poder totalitário. O populista político e religioso promete justiça, condenação, razia dos descrentes. Os cartazes dos populistas afirmam querer limpeza, mas eles querem a limpeza dos que os desmascaram e não acreditam nas suas promessas!
Nunca vi Ronaldo jogar, nem vi qualquer programa de Cristina Ferreira, mas é uma questão de gosto, de interesses pessoais, no entanto reconheço que não pertencem à categoria de figuras esbracejantes que clamam pela obediência dos seus crentes! Ronaldo e Cristina Ferreira vendem-se (sem qualquer desprimor) a si, não vendem um produto virtual, um pechisbeque ideológico de domínio e obediência embrulhado sob a forma de uma divindade justiceira de que os demagogos e os promotores de limpezas são os representantes e de que recebem os lucros devidos pelas comissões.
Entre quem se esforça todos os dias e se apresenta como é, independentemente dos méritos, e o vendedor (ou pregador) que faz sermões sobre a virtude, a salvação e se apresenta em cartazes a fornecer serviços de limpeza, vai a distância entre o trapezista que corre os riscos das acrobacias nas alturas e o candongueiro manhoso que, rente ao chão, vende bilhetes para um circo que não existe.
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RB – NORDIC