Terça-feira, Abril 16, 2024
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Leituras inextinguíveis (61): És espião para toda a vida e nem a reforma nos tira a faculdade de abater o mais temível dos inimigos

Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

Se o romance O Espião Que Saiu do Frio alcandorou John le Carré a um lugar cimeiro da chamada literatura de espionagem, então no topo devido à Guerra Fria, um romance subsequente, datado de 1979, A Gente de Smiley, e que tem tido várias edições entre nós, especialmente nas Publicações Dom Quixote, é uma obra-prima de enredo, um enleamento em espiral, com entrada em palco de agentes e de muitos figurantes inocentes, que vai acicatando o leitor a procurar entender o que leva George Smiley, um ex-chefe dos serviços secretos britânicos (o Circus) a voltar ao serviço depois do assassínio de um ex-general soviético em Londres que requerera encontrar-se com ele com máxima urgência, antes de ser morto à queima-roupa. É uma autêntica caça ao tesouro.

John Le Carré
John Le Carré

O general Vladimir, antigo herói soviético, exilado em Londres, liderava uma teia de contactos, sobretudo através de exilados dos países bálticos, descobrira algo de explosivo graças a uma carta que lhe chegara de uma outra exilada, de apelido Ostrakova, obrigada a sair da sua solidão por um processo de chantagem, devia receber a sua filha Alexandra, resultado de uma relação ilícita que mantivera com outro opositor ao regime soviético. Os novos dirigentes do Circus pretendem abafar o potencial escândalo daquele assassínio perpetuado pelos serviços secretos de Moscovo. O mundo vive uma época de distensão, houveram a Ata Final de Helsínquia, o mundo parecia corretamente repartido entre a esfera soviética e o chamado mundo livre, não se queriam agora mais empecilhos ou potenciais escândalos. Só que George Smiley vai mergulhar no mundo desses exilados que trabalham na rede de informações do general, passo a passo vai chegar ao segredo mais escondido do seu eterno inimigo, Karla, o senhor todo-poderoso da espionagem soviética.
O que mais me apraz nesta leitura é sentir que a narrativa está totalmente embebida do espírito da época, John le Carré não se poupa a expor a ordem reinante no mundo ocidental, continuar a crescer e a prosperar, deixar os soviéticos e os seus aliados do lado de lá do muro, na perceção (que, aliás, se revelou certa) de que os soviéticos se mantinham atrasados e incapazes de se adaptar aos sucessivos saltos tecnológicos.
Smiley vai socorrer-se da sua gente, de rotas clandestinas, do baixo mundo dos negócios por onde também circulam os espiões, havia que descobrir quais as pessoas que se propunham fazer fortes relações sobre Karla, atua sempre fora dos circuitos burocráticas em que se enredara a espionagem britânica.

Alec Guinness no papel de George Smiley, representação inultrapassável, no cinema e televisão
Alec Guinness no papel de George Smiley, representação inultrapassável, no cinema e televisão

É graças à gente de Smiley, gente que discretamente abandonara a espionagem, que ele vai juntado os fios da meada, há momentos deste romance de altíssima qualidade, caso da conversa que ele tem com um colaborador do general Vladimir, Mikhel, na Biblioteca do Báltico Livre, o seu encontro com Toby, um velho colaborador que agora se dedica a negócios, mas que também mantém relações com gente do passado, e fundamentalmente o encontro com Connie, outra velha colaboradora, a sofrer de bronquite e reumatismo, mas que tem uma memória à prova de bala, toda a rede de contactos e a radiografia do Centro de Moscovo é peneirado numa conversa tumultuosa, as achegas de Connie abrem novas janelas para a peregrinação de Smiley que vai até Hamburgo, procura um agente de ligação que já foi torturado pelos enviados de Moscovo, será uma peregrinação avassaladora até chegarmos à Suíça, ao local onde vive Alexandra, então o Smiley está possuidor de como pode derrotar Karla, escreve-lhe uma carta e vão se encontrar num ponto nevrálgico, Berlim, prosa mais poderosa não pode haver, a teia de espiões aguarda a chegada da mais temível figura dos serviços secretos soviéticos, são parágrafos irrepetíveis, jamais se atingirá tal intensidade:
E, de súbito, lá estava ele, como um homem que se introduz despercebidamente num átrio repleto de gente. Com a pequena mão direita espalmada e pendente ao longo do corpo, segurava timidamente um cigarro na esquerda, atravessada sobre o peito. Um homem baixinho, sem chapéu, com uma sacola. Deu um passo em frente e sob o círculo luminoso Smiley viu-lhe o rosto, velho, gasto e batido, o cabelo embranquecido pelos borrifos de neve. Trazia uma camisa suja e gravata preta: dir-se-ia um pobre que ia ao funeral do amigo. O frio tinha-lhe encovado muito as faces, o que lhe dava um ar estranho (…) Ouviu o retinir de qualquer coisa metálica a cair no empedrado gélido, e soube que era o isqueiro de Ann, mas mais ninguém pareceu dar por isso. Trocaram mais um olhar fugaz e talvez ambos, nesse segundo, vissem no outro alguma coisa de si próprios. Ouviu o crepitar de pneus de automóvel e os sons de portas a abrirem-se, enquanto o motor continuava a trabalhar.
Era a operação de espionagem mais retumbante de todos os tempos. Toby Esterhase lança-se a abraçar Smiley, com os olhos rasos de lágrimas, o impossível acontecera. E assim termina esta obra-prima absoluta:
– Adeus, George – disse Toby. – Passe bem, ouviu?
Smiley ouviu a equipa de Toby partir, um por um, até ficar apenas Peter Guillam. Voltando um pouco atrás pelo talude fora, Smiley tornou a olhar para a ponte, como que para verificar se alguma coisa tinha mudado, mas claramente não era o caso e, embora o vento parecesse um pouco mais forte, a neve continuava a rodopiar em todas as direções.
Peter Guillam tocou-lhe no braço.
– Venha, meu velho amigo – disse. – São horas de ir para a cama.
Obedecendo a um hábito antigo, Smiley tirara os óculos e limpava-os distraidamente com a ponta da gravata, embora tivesse de procurá-la por entre as dobras do sobretudo de tweed.
– Ganhou, George – disse Guillam, enquanto se encaminhavam lentamente para o carro.
– Ganhei? – retorquiu Smiley. – Sim. Sim, suponho que sim.”
De todas as leituras que regularmente retomo deste portentoso John le Carré, rendo-me a esta história tão hábil e engenhosa de um reformado, a contraciclo do espírito da época, de conversa em conversa, ressuscitando memórias em antigos camaradas, consegue chegar ao ponto frágil do temível Karla, algo de premonitório do que irá acontecer no fim da década seguinte, quando cair o Muro de Berlim.

Mário Beja Santos

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