Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.
Compreende-se perfeitamente as sucessivas reedições de O Meu Irmão, por Afonso Reis Cabral, Leya, 2014, obra consagrada pelo Prémio Leya desse ano. Então, num quadro de uma completa revelação literária, um jovem na casa dos vinte anos ia escrever um romance de uma enorme densidade e amadurecimento, , falando de um país em profunda crise, de um dificílimo relacionamento fraternal e numa interioridade em vias de extinção, com páginas luminescentes como aquela que precede a última narrativa, assim:
“O nevoeiro cresce do rio e toma a várzea de assalto. Nos campos veem-se apenas os paus espetados que servem de espantalho, nos quais garrafões de plástico enfeitados com panos abanam ao vento. Velado pelo nevoeiro, o rio ultrapassa as margens e fustiga os amieiros, cujas copas se inclinam. O rio sova as árvores, parte os ramos, açoita os troncos, mas não toca no nevoeiro. Este acompanha as curvas do Paiva, qual outro rio sobre o rio que corre, adensando-se e galgando as encostas.
Um ou outro pássaro arrisca mergulhar no nevoeiro. Uma garça-boieira aventura-se e não regressa. Quando as nuvens abrem, mesmo que só em traços momentâneos, o nevoeiro ganha novas tonalidades de cinzento, quase até branco puro, reflexos de azul e um brilho mais intenso.
Sem aviso, o vento vindo do oeste, do mar, traz consigo de longe, bem visível, uma vaga de nevoeiro que galga as montanhas destruindo o fio do Paiva, que desaparece num som de folhas a bater. É como se o mar invadisse a bacia do Paiva e inundasse tudo em colateral: os campos, as montanhas, Ponte de Telhe, a Paradinha, Meitriz, Arouca, e agora, subindo a várzea a um ritmo constante, o Tojal. Primeiro o caminho que leva à várzea, depois a encosta e então, sim, numa lufada, a nossa casa e o resto da aldeia.
Porém, o tumulto acalma. A vaga de oeste trava depois de engolir a paisagem por inteiro. O Vale Encantado ainda afunila alguma brisa que estanca ao alcançar as cercanias do Tojal; e a bruma ganha volume, trazendo calma, embora ocultando o que era dado a ver.”
O escritor captura-nos, enfeitiça-nos, comove-nos, vamos entrar no Tojal para lá ficar, acompanhando a saga destes dois irmãos, a pouca gente que lá vive, o realce será dado à senhora Olinda, ao senhor Aníbal e ao Quim, pressente-se uma tragédia anunciada, e depois as memórias daquela família, o sonho subjacente àquela casa, a velocidade dos diálogos, conversas curtas e a soberba arquitetura literária de pôr em itálicos não só o que merece realce como o que nos endossa nesta espantosa caminhada para a revelação de tão inusitado amor fraternal.
O Tojal irá funcionar como palco principal (é perto de Arouca e longe de tudo o resto) e os parágrafos indicadores do território são uma ode à natureza:
“As montanhas, como deuses, bebem água diretamente das nuvens. E molham-se como deuses. Mas nada interessa, ainda que à nossa volta as nuvens entreguem um abraço ao cume dos montes. Nós só temos a estrada, e mesmo assim uma estada batida nas bermas, gasta pela falta de uso e pelo corredor da água”, etc. e tal. É um ponto de partida, um incansável ponto de chegada. O irmão mais velho, a quem cabe a guarda de um mano mongoloide, é um professor universitário solipsista, desencantado, imagine-se, fanático pelo estudo dos verbetes, aquela casa do Tojal obra dos pais, ambos falecidos num intervalo de 4 meses, as filhas delegaram no irmão mais velho a custódia de Miguel. Andaremos aos altos e baixos na cronologia dos acontecimentos, o Miguel passava o dia em instalações da APPACDM, Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, seremos inseridos neste universo, é fulcral entender a paixão de Miguel pela Luciana, iremos conhecer outros seres em tumulto, como o Caranguejo e o Masturbador. Há sempre ternura, mas sem vulgaridade, toda esta ficção de primeiríssima água nos prende, são situações que nós sabemos que existem, mas que parecem reservadas aos outros.
Há a deficiência e há igualmente a doença, é o caso do Quim, deficiência e doença vão convergir para nos apercebermos da ternura e a simbologia da morte do Quim, mais uma pazada de cal na interioridade. E há amores de Romeu e Julieta, Miguel sonha permanentemente com ela, o plano foi afastá-los, Miguel entra na nossa vida, tolhe-nos os sentimentos: “Choramingar como uma criança num corpo de homem, num corpo de muitos quilos. Choramingar assim e não ser uma criança, não ter quem o console, quem lhe diga que tudo ficará bem mesmo que não seja verdade. Alguma mãe que apesar de velha encoste as rugas à cara dele recomeçando uma cantiga de infância como se nunca tivesse interrompido.” Miguel e a sopa, Miguel e as telenovelas, Miguel e as afeições familiares, Miguel e as brincadeiras, Miguel e a paixão pela Luciana, saberemos algo desta menina franzina, disfuncional: “A mãe da Luciana vivia num daqueles barracões de metal que existem onde há espaço para se alojarem os que são miseráveis, numa transversal esconsa à Rua da Constituição. Vendia lenços de papel Renova de porta em porta. Nos Aliados, percorria os restaurantes, as lojas de roupa, os antiquários, os alfarrabistas, os quiosques para turistas, os emolduradores, as padarias, as tascas, as boutiques de mezinhas. Os lenços Renova eram mais passatempo do que necessidade. Recebia o cheque do Estado nos últimos dias de cada mês e não pagava renda naquele sítio entre sítios mais decentes. Chamava tesouro a um saco de lona para onde atirava as moedas da Renova. Encheu-o quase até cima e não lhe mexia porque achava que um tesouro requeria um sítio fixo – como no mapa o local marcado com um X – e porque o saco pesava vários quilos.” Virá a ser roubada, espera que venha a nascer um outro tesouro.
E vamos chegar ao clímax, Miguel desaparece à procura de Luciana, é a descrição mais pungente que nos oferece este romance notável, o irmão mais velho percorre locais fétidos, recorrerá à violência. A vida prosseguirá omitindo-se o nome da Luciana.
Guardo o parecer o júri do Prémio Leya, é a clara certidão da verdade quanto ao destino desta leitura inextinguível: “O livro premiado trata de um tema delicado, que poderias suscitar uma visão sentimental e vulgar: a relação entre dois irmãos, um deles com síndrome de Down. A realidade é trabalhada de uma forma objetiva e com a violência que as situações humanas podem desenvolver, dando também um retrato social que evita tomadas de decisão fáceis e obrigando um investimento numa leitura que nos confronta com a dificuldade de um mundo impiedoso. Há, no entanto, uma tonalidade lírica na relação que se estabelece entre dois deficientes e que salva, através de apontamentos de poesia e de humor, o desconforto de quem vive este problema.”
Mário Beja Santos